sábado, 31 de dezembro de 2011

Meu reino por uma faca


Em minhas férias de 2011, na Itália e depois na Croácia, entreguei-me a algumas pequenas delícias gastronômicas. Entre elas, sorvete e Nutella. O sorvete italiano é excelente, convidativo e, para minha sorte, estava em praticamente qualquer esquina. Já Nutella... Não chega a ser uma novidade, afinal encontra-se Nutella também na Brasil. Mas se trata de uma marca italiana e é muito mais popular por aquelas bandas que por aqui. Está em potes de todos os tamanhos e em doces de todos os tipos, croissants, crepes, sorvetes... No meu caso, comprei um generoso pote de Nutella e com ele compunha meu café da manhã ou jantar.
Havia, porém, um problema: eu não tinha faca, nem espátula, nem nada parecido. Passar Nutella no pão era uma operação de guerra, e eu usava o que estivesse à mão: desde a própria mão, isto é, os dedos (feito criança gulosa) até um pedaço de uma tampa de plástico qualquer. Ou colocava mesmo um pedaço do pão dentro do pote de Nutella. Pois é, nada prático e menos ainda elegante.
Convenci-me de que eu precisava comprar uma faca mas, por um motivo ou outro, fui adiando a compra. Às vezes eu simplesmente esquecia, e também houve vezes em que procurei e não encontrei. O cúmulo foi quando, já na Croácia, entrei num grande supermercado, fui à seção de utensílios para cozinha e lá estavam elas, as facas. Todas da Tramontina! Cheguei a pegar uma na mão, pensei, pensei e coloquei-a de volta na gôndola: eu não tinha viajado dez mil quilômetros para comprar um talher fabricado em Carlos Barbosa! Segui em frente.
Daí que, falando em gôndola, voltei à Itália. Cidade de Veneza. Enfim comprei o que precisava! Uma espátula. De quebra, não uma espátula qualquer, mas uma de Murano, com o cabo em vidro colorido. Bonita e funcional. Para falar a verdade, só não foi mais funcional porque Veneza era minha última escala, então tive pouco tempo para aproveitar a espátula e meu pote de Nutella...
O pior é que sou teimoso. Fiz outra viagem, desta vez à França, e cometi o mesmo erro, agora de forma totalmente consciente: não resisti a comprar mais um pote de Nutella "para a viagem", mesmo sabendo que não tinha faca. De novo o mesmo malabarismo para espalhar o creme do pão...
Até que me sugeriram uma possibilidade incrivelmente simples: eu deveria guardar, no voo de ida, a faca de plástico que oferecem com o jantar ou com o café da manhã. Voilà! Resolve-se o problema de maneira prática, criativa e à prova de detectores de metais do aeroporto. Já posso voltar à Europa sossegado.

sábado, 3 de dezembro de 2011

Cuias de chimarrão


Em casa de ferreiro, nem sempre o espeto é de pau. Se eu tivesse de escolher o ponto mais emblemático do meu gauchismo, seria provavelmente o hábito do chimarrão. No trabalho ou em casa, são raros os dias em que não bebo chimarrão. As visitas que recebo, sejam ou não gaúchas, já se acostumaram a serem recebidas por um mate recém cevado. Estudando, assistindo a um filme, velejando, sozinho ou acompanhado, lá estou eu e lá está uma cuia na minha mão.
Minha bagagem sempre volta de Porto Alegre com um pacote de erva-mate. Sou encantado pelo ritual de comprar erva numa das bancas do Mercado Público.
E, se viajo para Uruguai ou Argentina, vou e volto embebido pela cultura do mate que não é só riograndense, mas de todo o Pampa e de todo o Prata.
Assim, aos poucos, fui juntando algumas cuias. Não chega a ser uma coleção, mas são lembranças particulares - não só dos lugares em que foram compradas, mas também dos momentos em que foram utilizadas.
Da esquerda para a direita:
1. Esta cuia veio comigo quando me mudei para o Rio de Janeiro. Durante um bom tempo, levei-a para o trabalho, até substituí-la por uma outra, um pouco menor e que consome menos erva!
2. Do Brique da Redenção. Claro que esta cuia chama a atenção pelo emblema do colorado, mas não é só isso: o porongo parece que foi escolhido a dedo, perfeito para um mate, e o entalhe é de um tipo que eu não conheço igual.
3. Esta é de Montevidéu, comprada em 2004 e, como praticamente tudo de lá, tem um forte laço afetivo comigo. Pequena, é perfeita para um mate à uruguaia.
4. A mais nova, e um pouco menor que a anterior, também é do Uruguai, mas de Colônia. O desenho de veleiro e ondas e o fato de ter sido comprada praticamente às margens do Rio da Prata dizem muito dela e de mim.

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A síndrome da mesa para uma pessoa

Meu maior medo é almoçar sozinho, jantar sozinho e me esforçar em me manter ocupado para não provocar compaixão dos garçons.
Fabrício Carpinejar

Muito já foi escrito sobre viajar sozinho. Sabe-se que tem vantagens e desvantagens. Entre as primeiras, a possibilidade de estar livre para fazer seus próprios planos, sem interferências (afinal, encontrar alguém que queira exatamente o mesmo que nós é possível, mas raro). Entre as desvantagens, o risco de não ter com quem conversar, não ter alguém para contar histórias e trocar impressões. Há quem drible esse risco se hospedando em albergues com quartos coletivos - não é a mesma coisa, mas existe a possibilidade de conhecer gente de outros lugares e com outras vivências, o que pode facilmente se tornar a parte mais gratificante de toda a viagem.
No final, dá-se um jeito e as coisas acabam se compensando umas às outras, às vezes com vantagens. Existe, porém, uma questão crítica com a qual é difícil se acostumar: poucos viajantes solitários escapam incólumes à síndrome da mesa para uma pessoa.
Chega uma hora em que a fome aperta e, seja almoço ou jantar, entra-se num restaurante. Fica-se sem ter com quem dividir este momento, a não ser o garçom, para quem pedimos uma mesa para uma pessoa. Passa-se pelas formalidades - a escolha do menu, a aceitação conformada de que a refeição será possivelmente mais cara ou menos variada do que se estivéssemos acompanhados. Mas viajar sozinho tende mesmo a ser mais caro, já sabemos disso. Então vêm os sintomas da crise: o viajante solitário está ali, mais sozinho do que nunca, esperando seu prato numa mesa em que não há ninguém a não ser ele próprio, num restaurante que, como todos os restaurantes, é um local de confraternização, onde à sua volta as pessoas não só comem como conversam, riem, fazem barulho, celebram datas, fecham negócios, propõem casamentos. É claro que o prato do viajante solitário, nessa ocasião, demora mais que o usual. Ele olha para os lados, para o alto, finge naturalidade. Lê o cardápio, os guardanapos, a parede. Amaldiçoa a bateria do celular que acabou justamente agora ou a conexão wi-fi que insiste em não funcionar. Lança olhares suplicantes a um garçom que, vindo com uma travessa fumegante, passa sem reparar nele. Pensa na vida, na família, na namorada, escreve mentalmente uma carta que nunca vai mandar. Suspira. Boceja. Está em uma linda ilha tropical com cacatuas e coqueiros ao seu redor... Tocam o seu ombro. É o garçom! O viajante solitário acorda, seu pedido chegou.
À sua volta, pessoas brigam, fazem as pazes, contam piadas, trocam presentes. Ele olha para o próprio prato, entretém-se com a salada, brinca com o molho. Por trás da comida, esconde-se do mundo. Na próxima vez, escolherei uma mesa mais no canto, pensa.
Nunca pensa em convidar outra pessoa. Ele se chama o viajante solitário e, no jantar seguinte, outra crise o espera.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Circo de Inverno, Paris

Ah, o circo. Le Cirque d'Hiver. Esse foi uma inesperada surpresa. Eu havia visto os cartazes pela rua anunciando o espetáculo, mas não reparara muito, não chamaram a minha atenção. Outra coisa foi quando, caminhando, topamos com o circo ao vivo, em cores, tijolo e madeira. Estou falando de uma construção grande e linda, num estilo que só pode ser tão eclético quanto o próprio circo. Em Paris, o Circo de Inverno não é uma lona debaixo da qual os artistas se apresentam; é algo que eu não conhecia, um prédio redondo que, na melhor das comparações, lembra a mistura (ou evolução) de um circo tradicional com um charmoso teatro.
Atraídos, passamos pela porta e o ambiente interno acabou de nos conquistar. A bilheteria anunciava ingressos a partir de 10 euros para dali a 10 minutos. Compramos, contagiados por uma excitação infantil.
Sobe-se escadas, tal como num grande teatro. Lá em cima, espantado diante da grandiosidade de tudo, quase exclamei que a vista era bastante boa para ser o lugar mais barato da plateia. Então uma mulher vestida de paquita se apresentou para levar aos nossos verdadeiros lugares, marcados: literalmente as duas cadeiras mais escondidas, ainda mais no alto do que onde estávamos e ao lado de uma espécie de tapume. Mas a paquita disse (ou foi o que entendemos) que poderíamos mudar de lugar depois de começado o espetáculo, e assim fizemos, já que nem todas as cadeiras estavam ocupadas. Lugares confortáveis e bem frontais, embora longe da primeira fila.
O que tinha suas vantagens, pois nos deixava a salvo das brincadeiras dos palhaços. De quebra, bem divertidas - gosto de palhaços. Fazia anos que não ia a um circo e esse me encantou. Não só pela grandiosidade do ambiente. A banda tocava em sintonia com as atrações: tigres, gatos, cavalos e pombos; trapezistas (e meu coração que pulava da boca, eu que tenho certo medo de altura); o mágico; malabaristas, amazonas, dançarinas. Tudo a que se tem direito, inclusive um pequeno intervalo: o espetáculo era em dois atos, lá pelas tantas eu não sabia se estava num circo ou num teatro.
Tão diferente dos circos itinerantes de lona, e tão nostalgicamente parecido. Fiquei paralisado por uns instantes quando terminou a última apresentação. Mas paralisado com um sorriso no rosto: tinha descoberto que sim, ainda se faz circo como antigamente.

domingo, 13 de novembro de 2011

Eu sempre amei Paris

E não sabia.
Ao contrário de outras pessoas, nunca tive Paris como sonho de consumo. Não era minha prioridade, a cidade que eu queria conhecer a todo custo. Antes sonhava com outros lugares no Brasil, na Europa e em terras exóticas.
Apesar disso, Paris me conquistou, em grande parte por ser quase exatamente como eu pensava ou, dizendo melhor, como eu fantasiava que fosse. Sim, porque, sendo uma das cidades mais presentes nos cenários de cinema e nas páginas dos livros, todos nós acabamos imaginando Paris de alguma maneira.
E calhou de eu imaginar uma Paris bem parecida com a que encontrei de verdade. Digo isso no sentido de que me surpreendi com a facilidade com que percorri suas ruas e com a facilidade com que me senti em casa, apesar de falar muito pouco francês. E a forma divertida com que encontrei, a cada esquina, exatamente o tipo de prédio que, com certa ingenuidade, esperava encontrar - milhões de livrarias, outros tantos de cafés e pequenos restaurantes. Verdade que também há as onipresentes lojas de quinquilharias e as multidões de turistas ávidos por elas, mas em compensação há ruas silenciosas, mercados com frutas na calçada e até lojas de artigos náuticos - França, Meca dos velejadores.
Lutécia, a cidade mais prodigiosa do mundo, como dizia Asterix. Isso inclui dizer que não é o lugar mais limpo nem o mais educado, mas deve ser, em compensação, um dos mais vivos. Gosto de imaginar os franceses um tanto cheios de orgulho pela sua língua, suas empresas, seus carros, seus esportistas e artistas. Soa meio preconceituoso da minha parte, talvez, mas sei que não posso generalizar essa imagem e, ainda que eu insista nela, reconhecer um orgulho desse tipo é motivo de sorriso e simpatia para um gaúcho como eu.
Tem mais. Paris tem as árvores coloridas de outono, as pontes para se caminhar de mãos dadas, a proposta que eu mal sabia para uma perfeita lua-de-mel. Mal sabia: imaginava, mas não acreditava.
E não importa se ainda falta muito da cidade para ver e viver ou se algo dela ficar para trás. Acontece que nós sempre teremos Paris.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Na ilha dos ônibus amarelos


Como preguiçoso eventual, gostei de Malta. A ilha, sendo relativamente pequena, é fácil de ser explorada e não requer esforço. Mais fácil ainda é explorar Valletta, a capital, que pode (e deve) ser percorrida toda a pé.
Eis algo de que eu gosto: conhecer uma cidade a pé, a princípio com um mapa na mão, depois deixando-me levar pelo instinto. Gosto particularmente dos centros, pelo que têm de síntese e símbolo. Ora, Valletta, sendo pequena, é toda ela o seu próprio centro. Daí que é uma delícia caminhar por ela, sentir as ruas, especialmente os calçadões em que não passam carros, entrar nas lojas, observar as fachadas. Valletta é rica de uma bela e multicentenária arquitetura mas, não sendo tão internacionalmente famosa quanto outras capitais europeias, conserva um suave ar de desconhecido que lhe dá ainda mais charme.
Entre uma caminhada e outra, deixo-me guiar pelo olfato e procuro umas pastelarias que são pouco mais que um buraco na parede - lá estão os pastizzi, espécie de folheados simples e irresistíveis. Nada mais tipicamente maltês que pastizzi de ricota ou de ervilha, e um par deles, por €0,50 cada, sacia maravilhosamente.
Refeito o estômago, vou além da cidade. Em frente ao portão de Valletta está a praça que é o terminal rodoviário da ilha e é aí que encontrava o que também parecia ter se convertido noutro símbolo maltês: os estilosos ônibus amarelos. Já havia os de desenho mais moderno, mas os que realmente chamavam a atenção eram os antigos, arredondados por fora e parecendo um bonde de madeira por dentro. Andar por Malta nestes ônibus era prático e divertido, além de barato - a maioria dos trajetos saía por €0,47, valor quebrado que me deixou, ao voltar para o Brasil, com um punhado de pequenas moedas no bolso, autêntico certificado de quem percorreu as ruas e estradas de mão inglesa do Mediterrâneo.
Bem, eu preferiria estar escrevendo no tempo presente, e não no passado, mas descobri que os antigos ônibus foram aposentados apenas dois meses depois que deixei Malta. Uma pena. Podiam não ser modernos ou econômicos, mas eram únicos, não é justo condenar espécies raras à extinção.
Lamento não ter dado a volta completa na ilha a bordo de um desses ônibus. A preguiça não permitiu. Em compensação, numa das viagens, fui parar no que parecia a garagem final onde dormiam os veículos. Lá, aproveitando que eu não tinha pressa, esperei pela saída da próxima condução para Valleta instalado num dos bancos de madeira, entre um cochilo e uma conversa com o motorista, que também esperava. Afinal, nem tudo na vida é passageiro.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A volta ao mundo em 80 sabores


Comer é um prazer. Claro que não haveria como dissociar este prazer do prazer de viajar. Não que eu seja particularmente glutão; acontece, porém, que gosto de experimentar novos sabores tanto quanto gosto de saborear novas paisagens. E viajar é um ótimo pretexto para uma coisa e outra.
Há o prazer da comida em si. Há também o prazer da descoberta - de um restaurante, de um prato, de uma combinação inusitada. Muito da minha atração pela culinária, quando viajo, se deve ao fato de que esta é uma das mais fortes e espontâneas manifestações de qualquer cultura local. Pela comida se infere história, influências e confluências. Através da comida, oferecemos ao nosso anfitrião a oportunidade de mostrar um pouco de si. De mostrar seu orgulho.
Mesmo que nem sempre compartilhemos do seu entusiasmo, mesmo que nem sempre este orgulho nos pareça justificado. Comer pode ser um risco, principalmente quando temos paladares sensíveis e estamos em terras exóticas. Já contei aqui uma das minhas experiências gastronômicas na China. Costumo dizer que todos temos um limite de tolerância diante da comida. Uns dificilmente se inibem ao deglutir gororobas quase impensáveis; não reclamam, lambem os beiços. Outros comem bastante coisa, exceto, digamos, vísceras. Outros param no peixe cru. Outros não vão além do arroz com feijão e da batata frita. Creio que me situo em algum ponto entre o meio-termo e o lado mais tolerante da balança. Em alguns casos, dispenso pratos que pareçam exóticos demais, mas não deixo de respeitar e admirar (ainda que à distância) quem vê iguarias em pescoços de galinha ou espetinhos de lacraia. É tudo uma questão cultural, como aprendi vendo meus conterrâneos comendo feijoada com orelhas de porco.
O bom de se comer fora é que não precisamos nos apegar sempre às esquisitices. Doses moderadas de ousadia são suficientes para recompensar o paladar dos viajantes. No Uruguai, um assado, alfajores, doce de leite in natura ou em forma de sorvete. Na Itália, pizzas e mais sorvete. Na Espanha, paella e tapas. Em Malta, pastizzi (prosaicos e tentadores salgados folheados). Na Índia, lassi (o aromático iogurte local) e todo tipo de massala (mistura). Em Portugal, pastéis de nata (pois logo se aprende que só são de Belém os fabricados em Belém).
Portugal é um caso à parte. Tenho minhas teorias para explicar a forma com que as histórias portuguesas assumem, para nós brasileiros, um ar inusitado. Talvez a proximidade linguística e cultural faça com que inconscientemente esperemos daquele país o mesmo que esperamos do nosso e, por outro lado, faça com que fiquemos atentos a qualquer detalhe que fuja do padrão (mas que passaria despercebido na Índia, na China ou em outro país de língua e cultura menos compreensíveis). Ora, pois. Um dos pratos do cardápio do famoso bar do Peter, na ilha do Faial, é a sopa de baleia. Como assim, perguntei eu ao garçom, a caça à baleia não está proibida? Não há baleia na sopa de baleia, respondeu-me ele, é uma sopa de pastagem. Neste ponto, só com muito raciocínio e experimentação foi possível concluir que pastagem é como alguns açorianos chamam as verduras, mas o principal ainda não havia sido esclarecido. Por que, então, o nome de sopa de baleia? E o garçom explicou que é a sopa que alimentava antigamente os caçadores de baleias antes de eles saírem para o mar. Concluo que a tal iguaria poderia facilmente se chamar sopa de pedra...
Em Lisboa, o cardápio oferecia peixinhos da horta. Como parecesse improvável a existência de um pé de sardinhas crescendo no quintal das casas, e mesmo a captura de pequenos peixes criados numa "horta" de arroz estava fora de questão, questionei o garçom. Ele me explicou que se tratava de simples vegetais, principalmente vagens, que, após empanados e fritos, assumiam a aparência de peixinhos à milanesa (é preciso um tanto de imaginação). Descobri depois que os peixinhos da horta, portugueses com toda certeza, haviam inspirado o tempura japonês - este um pouco mais conhecido dos brasileiros. Mal sabemos nós dos insondáveis caminhos da culinária em sua volta ao mundo.

domingo, 24 de julho de 2011

O litoral da Bósnia-Herzegovina


Já percorri, de ônibus, todo o litoral da Bósnia-Herzegovina.
A declaração impressiona, principalmente a brasileiros como nós, acostumados a um país e a um litoral de dimensões continentais.
É preciso dizer, porém, que a Bósnia-Herzegovina é um país quase completamente interior e que possui pouco mais de 20 km de litoral, estendidos em uma única cidade, chamada Neum.
E não é apenas isto que faz de Neum um lugar atípico. Esta cidade herzegovina está espremida entre terras da Croácia ao norte e ao sul. Divide a Croácia em duas partes, ou seja, quem quiser ir do extremo sul croata à parte norte precisa passar dentro do território da Bósnia-Herzegovina.
Foi o que eu fiz.
Fiquei ligeiramente decepcionado quando percebi que a polícia de fronteira não carimbou meu passaporte - o fluxo de gente que passa por Neum em direção à Croácia é grande o suficiente para que um acordo entre os países fizesse abolir certas formalidades.

Por outro lado, o ônibus fez uma parada em Neum, apenas suficiente para tocar com meus pés a Bósnia-Herzegovina, sentir a brisa local e tirar algumas fotos. E então? Bem, esta pequena faixa de litoral não poderia diferir muito do belo litoral croata que a cerca. No mais, é claro que não se pode julgar um país inteiro em tão pouco tempo e tão pouco de seu território. A alma da Bósnia-Herzegovina certamente está mais fundo, não no seu litoral. Entretanto, sim, Neum vale pela curiosidade.

domingo, 19 de junho de 2011

O Homem dos Cães

Gosto de pensar que há imagens que são poemas, como há poemas que são declarações de amor. Às vezes, é tudo a mesma coisa.
Assim como há imagens, poemas e declarações que são uma pessoa.
A maior dor de minhas últimas férias foi não poder viajar com minha namorada. Não é fácil estar longe de quem se gosta, ainda mais quando pretendia-se estar perto, quando planejava-se estar lado a lado.
Menos mal que vem o reencontro, as tristezas passam, ficam as lembranças boas.
Há detalhes que são as melhores lembranças. Há detalhes que são o mais importante.
Minha namorada adora cachorros. Quando parti, ela me pediu uma única coisa: não que lhe trouxesse algum suvenir, camiseta, chaveiro, garrava de vinho, buquê de flores, livro importado, brinco de pérolas, colar de presente; pediu que eu lhe trouxesse fotos de cachorros dos lugares por onde passasse.
Forma singela de atenção.
"Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...", disse a raposa ao Pequeno Príncipe.
Cães foram meus campos de trigo. Lembrei-me da princesa que me esperava, além do oceano, e quase sem perceber fiz uma viagem canina. Atentava sempre, percorria com os olhos as ruas e as calçadas, sacava de repente a máquina fotográfica com a velocidade do Velho Oeste - isso quando não a tinha já preparada, dedo no obturador.
Geralmente sou tímido demais para conversar com cachorros, ou com seus respectivos donos, no meio da rua. A maioria das imagens saiu tremida, improvisada, artesanal. No fundo, gosto disso: fotos espontâneas como o sentir. Às vezes, aproximava-me, ousava puxar assunto. Para uma ou outra pessoa, contava a história - eu, o homens dos cães.
Gosto de pensar que há detalhes que enriquecem as viagens. Como há detalhes que alimentam o amor. Minha amada gosta de cachorros, eu a amo, ela me ama. Aonde quer que eu vá.

terça-feira, 7 de junho de 2011

A Cidade Impossível

Veneza. La Serenissima.
Não sei dizer de onde veio este nome, Sereníssima República. Não há potência do passado que seja realmente serena, tantas e tão frequentes eram (e ainda são) as guerras, escaramuças e disputas por poder. Veneza tinha a particularidade de se valer, para sua proteção, não de muralhas como as de outras cidades mas do mar. Bom, o nome não terá vindo do mar, que não é exatamente sereno: é fascinante, mas este fascínio que exerce se mescla a uma perigo latente, quase traiçoeiro, quase como o canto das sereias. O mar abraça e defende Veneza, mas também dá a ela a incômoda acqua alta.
Mais que sereníssima, Veneza é uma cidade impossível - esta a conclusão a que cheguei ao percorrer suas ruas, suas praças e sobretudo seus canais. Aquilo tudo deveria ser pouco mais que um pântano, um punhado de traiçoeiros bancos de areia, quando muito um curioso balneário. A lógica diz que não se constrói uma cidade naquelas condições. E, no entanto, lá está Veneza com seu esplendor, seus palácios, sua vida dependente do mesmo mar que, segundo a lógica, deveria impossibilitá-la.
Veneza é sobretudo bela, tão bela que a frase soa redundante. Porém, não se trata apenas disto, Veneza vai além, Veneza é única. Usa-se o seu nome como moeda de comparação ao redor do mundo: fala-se na Veneza brasileira (Recife), na Veneza portuguesa (Aveiro). Bobagem! Nada contra estes outros lugares, que também têm seus atrativos, mas Veneza não admite comparação. Ela é diferente de todo o demais e isso fica evidente ao viajante já nos seus primeiros instantes de contato com a cidade. Em Veneza como em nenhum outro lugar a vida circula através da água, sobre a água e ao longo da água. Veneza é o seu mar que, tomando a forma de canais, transfigura-se também ele em algo único. Veneza e seus canais, suas cores e sons, seu labirinto de ruas que não raro terminam (ou começam) no mar. Uma cidade que se abre para o mar é uma cidade que se abre para o mundo. Talvez sereníssima seja a alma da cidade que se sabe inigualável. Como não se apaixonar por ela?

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Ja bih sok, molim vas

Eu sabia que meus conhecimentos de croata estavam muito aquém do necessário para manter uma verdadeira conversação nesta língua. Ao mesmo tempo, porém, estava ansioso para testar o quanto eu seria capaz de me valer dela.
No avião, agarrei o jornal local e me pus a decifrar as notícias naquela língua que eu só conhecia de longe – empenhara-me em aprender croata nos últimos meses, mas eu não sabia se um livro e umas gravações do tipo “estude por conta própria” seriam confiáveis. Nunca tinha tido uma conversa em croata. Então, quando passou a aeromoça perguntando o que eu iria querer beber, caprichei na pronúncia: “ja bih sok, molim vas” (quero um suco, por favor). Juro que me espantei com a naturalidade com que ela replicou – “jabuke ili naranče?” Eu havia conseguido me comunicar! Não tinha me ocorrido que teria de dar mais uma resposta – qual suco eu queria, maçã ou laranja? Mas aí não tive dúvida, suco de laranja é dos meus preferidos e a palavra em croata é facilmente reconhecível.
Em solo, fui descobrindo que eu estava até acima das expectativas. Sim, falta-me vocabulário e falta-me sobretudo fluência: não consigo pensar em croata, as frases levam um ano até se formarem na minha cabeça. Mas entendo bastante coisa. A gramática é complicada, mas a fala é surpreendentemente familiar, os croatas em geral pronunciam cada letra de maneira bem clara, facilitando o entendimento (só não esperem isso de uma dona de casa elétrica, daquelas que engolem as sílabas em qualquer parte do mundo).
Uma cena comum, ao menos em algumas cidades da Croácia, são banquinhas na rua em que se vendem saquinhos com lavanda. Eu não estava morrendo de vontade de comprar um saquinho de lavanda, mas queria vivenciar o pitoresco da cena: as mesinhas cheias de saquinhos e de essências, atrás de cada mesa um banquinho com um senhor ou senhora esperando possíveis compradores. Aproximei-me, então, e a velhinha daquela banca começou a me apontar os produtos, tateando o inglês e ansiosa por vender. Eu devia ter toda a pinta de um turista estrangeiro. Quando, porém, a mulher viu que eu estava falando (ou tentando falar) a sua língua, foi como se algo se iluminasse, ela abriu um sorriso e desandou a conversar comigo, a contar coisas de si e da cidade... Eu entendia, quando muito, metade do que ela dizia, mas estava fascinado pela situação! No final, claro, comprei um saquinho (pequeno, mas suficiente para deixá-la contente) e arrisquei pedir-lhe uma foto. Ela respondeu: não tem problema, mas para que foto, eu sou tão feia!
Ora, nunca é feia a pessoa que nos faz sorrir, ó senhorinha a quem eu infelizmente esqueci de perguntar o nome!
Deixei a Croácia de barco (modo fácil e cômodo de atravessar o norte do Adriático) numa manhã de céu claro. Era bem cedo. Quis comer alguma coisa e fui até a lancheria de bordo. Eu sabia que aquela tripulação falava inglês e italiano (idiomas mais familiares para mim) e que possivelmente não eram croatas. Mesmo assim, ao escolher um sanduíche e algo para beber, fiz questão de falar em croata. Uma forma de praticar ainda uma vez esta língua da qual já sinto saudades. E uma despedida singela daquela terra e daquelas pessoas a que me afeiçoei.

terça-feira, 31 de maio de 2011

The magic of traveling

The magic of traveling is all about meeting people.* Há lugares que sei que são lindos mas que para mim não tiveram graça porque eu estava sozinho Há também lugares que poderiam passar em branco mas que a presença de alguém torna inesquecíveis.
Faz 15 anos, fizemos as contas. Há 15 anos, eu e Darko começamos a nos corresponder - ele na Croácia, eu no Brasil. Tornamo-nos amigos, trocamos histórias sobre nossas vidas e nossos países (quão pouco se ouve falar da Croácia por aqui!). Nosso meio eram as cartas, cartas mesmo, só bem recentemente passamos a nos escrever pela Internet.
E, mais recentemente ainda, o que era um convite vago se tornou real: estive finalmente na Croácia, Darko e sua família me receberam com tudo que alguém poderia querer.
Foi uma mescla de novidades e de (re)encontro com o que já me era familiar. Conversamos muito, lembramos histórias, vimos fotos. Mas estar com alguém pessoalmente sempre é diferente de se corresponder à distância, e neste ponto não me decepcionei. Darko tem quase que exatamente a mesma idade que eu, é interessante descobrir o quanto nossas vidas, em países distantes, são ao mesmo tempo parecidas e diferentes. A casa é uma joia, a cidade é pequena e encantadora (e quase colada a outras cidades um pouco menos pequenas e ainda mais encantadoras).
A família não poderia ter me tratado melhor. A comida... Comi muito, de tudo. Parece que ainda tenho no céu da boca o sabor daqueles almoços, o cheiro daquelas palačinke (panquecas!), a frescura daquela salada de frutas... Sim, comi até não poder mais. E como poderia ser diferente se, mesmo quando eu já estava satisfeito, aquela gente simpática ficava insistindo para eu comer mais e mais?!
Os pais dele falam bem pouco de inglês. Uma dificuldade? Talvez, porque afinal eu não sei tanto de croata quanto gostaria. Mas sobretudo uma experiência riquíssima na prática do pouco que sei da língua. E, mais do que isso, para descobrirmos que a amizade vai muito além de qualquer possível barreira. Acho até que a questão da língua, no final, das contas, ajudou: criou laços, como sempe se criam laços quando vemos alguém se dedicando a entender a nossa cultura.
Espero voltar lá. De preferência, com um vocabulário um pouco maior de croata (foi o que prometi). Também adoraria recebê-los em casa, no Brasil. Sei que tudo isso é difícil. Mas há ainda tanto a ver, a viver, a falar!
Trouxe para o Brasil três livros em croata. O primeiro é um livro de receitas: já que estou longe, quem sabe não relembro um pouco do país ousando recriar alguns de seus sabores na minha cozinha? Outro é um livro infanto-juvenil, não muitas páginas com letras relativamente grandes e algumas ilustrações. Ótimo para iniciantes no idioma como eu! E o terceiro livro é também indispensável: um dicionário para me socorrer na leitura dos outros dois...

* A magia de viajar é toda uma questão de conhecer pessoas. Com o perdão da língua portuguesa (que eu amo), esta frase fica tão mais bonita em inglês...

domingo, 29 de maio de 2011

O judeu errante e a mais estúpida de todas as histórias

Praticamente não há trens na costa croata. Em compensação, os ônibus são eficientes e confiáveis.
Tomei um deles, portanto, para ir de uma cidade a outra. Embarquei, procurei meu assento. Ao meu lado, havia um senhor de idade, relativamente magro, de roupas escuras e barba espessa. Após uns instantes, ele puxou assunto (uma fala arrastada, quase gaguejando, e um sotaque incomum) dizendo que estava indo até Trieste (parada final daquele ônibus). Perguntei ingenuamente se ele era italiano ou croata e ele me respondeu o que eu já devia ter desconfiado: era um israelense de Jerusalém, mas nascido na Rússia. Chamava-se Hanoch.
Foi tagarelando a viagem inteira. Sobre todos os assuntos possíveis. Já havia passado por uns tantos países da Europa e agora ia para outro. Aproveitava umas longas férias. E tinha como principal passatempo o estudo de línguas.
Logo percebi que ele sabia falar pelo menos o básico de inúmeras línguas. Bem pouco de português, que quando tentava falar ele confundia com espanhol (uma confusão bastante comum), mas em compensação parecia saber tudo sobre detalhes de pronúncia, sotaques e variações linguísticas do nosso idioma. Deu-me uma verdadeira aula sobre as possíveis pronúncias de "leite quente" em diferentes partes do Brasil. Mas seu interesse maior era por línguas e dialetos realmente pequenos, daqueles conhecidos apenas por um punhado de gente. Falou sobre o basco e o galego, mas estas acho que ainda eram grandes demais para ele. Falou sobre o aragonês. Falou sobre línguas usadas apenas em pequenas aldeias e do quanto gostava de percorrer a Europa visitando esses lugares... Falou, falou...
Lá pelas tantas, pedi licença e adormeci. Quando acordei, ele estava numa acalorada conversa com um australiano do outro banco e mais o cobrador do ônibus, croata... Falando em iídiche!
Até então eu havia evitado puxar algum assunto que tocasse na questão religiosa, ainda que por alto. Quando ele falou de comida, por exemplo, controlei-me para não dizer o quanto eu adoro o presunto que se encontra em toda essa região do Mediterrâneo. Mas, instigado pelo australiano, Hanoch confessou que, nesta viagem, havia comido carne de porco... Contou, também, que o único realmente religioso da família é seu irmão, que tem 11 filhos! (A religiosidade está em levar a sério o preceito de "crescei e multiplicai-vos".)
Cheguei ao meu destino, despedi-me e desembarquei. Enquanto Hanoch seguia sua peregrinação particular, eu penetrava mais fundo no coração da Croácia.
Croácia que tem uma cultura rica - na arquitetura, língua, danças, música, comida - e que, também, tem algo que nós brasileiros não temos: uma história permeada por inúmeras guerras, algumas delas bem recentes.
É preciso dizer algumas coisas para que não passem por naturais ou caiam no esquecimento. Praticamente não vi gente pobre nas ruas por onde andei, mas vi alguns homens de meia idade usando muletas ou algo do tipo e pedindo esmola. Inválidos da última guerra, pensei logo. Vi fotos e mapas de bombas lançadas há 20 anos sobre Dubrovnik - patrimônio histórico da humanidade. Visitei um memorial com fotos de gente que perdeu a vida nesta guerra - garotos nos seus 18 anos, que teriam família, namorada, sonhos. Vi um dos abrigos anti-bombardeio usados no passado e que hoje é um local fértil para a coleta de trufas - provavelmente úmido e nada salubre para humanos, portanto. Vi prédios abandonados, hotéis que abrigaram refugiados e depois nunca mais voltaram a abrir as portas. Encontrei um amigo croata e conversei com a avó dele, hoje uma senhora de 79 anos, que devido às bombas lançadas sobre sua cidade perdeu a audição e parou de estudar quando era uma menina da quinta série. O mesmo amigo me contou outras histórias de guerra. Sonhei com minas terrestres - talvez a face mais estúpida de todas as histórias estúpidas que a guerra traz.
E o porquê de tudo isso? Bem, os povos desta região são histórica e culturalmente bem parecidos, falam praticamente a mesma língua e viveram bastante tempo sobre a mesma bandeira... Até alguém concluir que, sendo uns católicos, outros ortodoxos (mas também cristãos!) e outros muçulmanos, não podiam viver sobre o mesmo teto - ou que isso pelo menos poderia servir facilmente para alimentar um ódio mortal. A quem interessa esse ódio? Prefiro não responder. Ora, se eu posso viajar lado a lado com um judeu, se este judeu pode se dar ao luxo de comer carne de porco uma vez na vida sem se achar condenado ao inferno, e tantas outras coisas... Não temos todos coração, não sentimos dor e sangramos quando feridos, não sorrimos e choramos, não crescemos, envelhecemos e nos reproduzimos da mesma maneira? Será tão importante assim a maneira como reverenciamos o nosso deus (que, afinal, é o mesmo deus para todos)?
Meu amigo tem confiança no futuro, acredita que as coisas serão melhores. Passaram-se duas décadas desde a última guerra. Éramos crianças! Eu sou otimista e gosto de pensar que ele pode estar certo. Gente como ele e terra como essa não merecem novas cicatrizes. Gente como nós, merecemos paz.

sábado, 28 de maio de 2011

Na praia, no Adriático

A Croácia tem paisagens de tal maneira incríveis que parece estranho não termos muita noção disto no Brasil. Apesar de relativamente pequeno, o país tem cenários diversos e agradáveis: montanhas verdes, um litoral bastante recortado com inúmeras ilhas também verdes e um mar que só não é mais verde porque às vezes é de um azul límpido.
Sendo assim, um dos principais atrativos desta região da Europa é o mar, seja para navegar, velejar, olhar ou se banhar. Fui a Opatija, um balneário pequeno e agradável perto de onde estou hospedado. O lugar é calmo, cercado de verde, ladeado por montanhas, ponteado de belas casas. Recebe turistas da Itália, da Eslovênia, da própria Croácia e de outras partes. Todos buscando o mar. Fui, então, ver o mar.
Cheguei à beira-mar, pisei na praia... Praia? A praia, aqui, é feita de concreto! Uma grande área de concreto com alguns degraus - senta-se neles como talvez num antigo anfiteatro. Observa-se o mar, quem quiser entrar na água pode usar uma das escadas de metal espalhadas pela "praia" - como as escadas que usamos em piscinas. No mar, transparente, vai-se pisar mais uma vez no concreto. Como num imenso tanque de água salgada. Avança-se uns degraus mar adentro e só então deixa-se para trás o concreto. O fundo é pedregoso.
Quando quiser sair da água, o recomendável é usar novamente uma das tais escadas. Como o corpo estará molhado, pode-se querer trocar de roupa, então vai-se até uma das cabines de vestuários espalhadas ali perto - como nas nossas praias há umas tantas décadas.
Em vez de entrar na água, uma opção (parece-me que a preferida do pessoal) é simplesmente estender uma toalha no concreto e tomar banho de sol. Guarda-sóis não são muito populares, pois não há como cravá-los no chão, a não ser num dos buracos que aquele rapazinho lá adiante está fazendo com uma furadeira elétrica...
E não estou falando de um cenário incomum. Este é o retrato de um balneário típico por aqui. Na verdade, de um dos mais conhecidos da região! E como ele há outros. Verdade que nem todas as praias são de concreto: também as há de rocha ou de pequenas pedras, como cascalho. Areia? Cheguei a ver areia numas duas praias que, juntas, devem somar uns 10 metros de extensão e, por algum motivo, não pareciam muito populares, estavam bem vazias.
Verdade, também, que não vim à Croácia para frequentar a praia, então o concreto não me incomodou. Até preferi assim, afinal quem não gosta de se deparar com o inusitado quando viaja?

sexta-feira, 20 de maio de 2011

La Contrada della Civetta

Aqui em Siena, mais forte do que eu esperava é a cultura do Palio, em torno do qual tudo parece girar.
O Palio, em sentido estrito, é uma corrida de cavalos que ocorre na cidade desde a Idade Média. Mas é também mais que isso, porque se trata de uma festa que vai bastante além da corrida propriamente dita. A prova é que ainda faltam meses para o Palio e, apesar disso, já se pode senti-lo em cada rua de Siena.
Pois bem, a cidade é dividida em 17 contrade (paróquias), as quais rivalizam entre si dentro e fora do Palio. Cada contrada tem seu território, suas cores, seu hino, sua história... Além disso, cada uma é ligada, direta ou indiretamente, a um animal-símbolo, quase como um mascote.
Eu sabia de tudo isso, só não sabia que as contrade eram representadas por animais...
Também sabia que, se eu tivesse oportunidade, acabaria criando simpatia por alguma das contrade. Lembrava de uma crônica em que o colorado L. F. Verissimo confessa ter torcido pelo conjunto vermelho e branco (imagino que seja a Contrada della Giraffa) levado pela preferência de cor.
Comigo aconteceu, porém, que já ao chegar no hotel eu me deparei com uma grande bandeira na parede - a bandeira da Contrada della Civetta, onde estou hospedado. E a partir daí comecei a conversar com o recepcionista sobre a bandeira e a contrada.
Ora vejam, civetta, ou gufo, é uma coruja. E conheço uma pessoa que imediatamente criaria simpatia pela civetta: minha mãe, que tem uma coleção de corujas famosa em toda a família e além (é comum, quando um de nós viaja, trazer uma lembrança em forma de coruja para ela), que tem umas tantas fotos de corujas, que é uma mãe-coruja.
Nem preciso dizer que fiquei imaginando qual seria a reação dela ao ver tanta civetta por todos os lados aqui! Nas bandeiras, nos artesanatos... E mais: ao entrar numa viela menos frequentada, topei com o ensaio de um grupo de jovens para o próximo Palio (a festa inclui tambores, música, desfiles e acrobacias); instintivamente quis saber qual era aquela contrada e adorei saber que era justamente a da Civetta... Um pouco adiante, uma apresentação de corais das contrade, e lá estava a Civetta orgulhosamente entre elas.
O bom disso tudo é que se trata de algo que dá vida, cor e movimento à cidade. Sim, envolve turismo e portanto dinheiro, mas as pessoas me pareceram genuinamente envolvidas - um envolvimento que lembra um pouco o dos cariocas com o carnaval.
Enfim, agora já tenho por quem torcer na próxima vez em que vier a Siena...

PS1: A foto é de um ensaio da Contrada della Civetta.
PS2: Entre os animais que representam as outras contrade, há uns curiosos, como a tartaruga e o caracol, uns imaginários, como o dragão, e uns menos surpreendentes (heraldicamente), como a águia e o lobo.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

Sob o sol da Toscana

Cada lugar pode ser visto de diferentes formas. Tudo depende do que prestamos atenção, da nossa experiência prévia e de que maneira reagimos.
Um dado interessante sobre a Toscana é que ela permite, de uma maneira bastante natural, esta multiplicidade de olhares. Eu, por exemplo, comecei por Florença - que, como escrevi, parecia-me grande mas acabou se mostrando não tão grande. Mesmo assim, é um ótimo lugar para conhecer gente, pois não faltam pessoas de toda parte com interesses similares. Não estou falando de virar a noite em festas intermináveis, mas simplesmente de trocar histórias de viagens. E, às vezes, histórias de vida (não será tudo a mesma coisa?).
Saindo de Florença, é uma delícia descobrir as cidades menores que há em volta, umas mais turísticas e outras nem tanto. O ritmo é mais lento, convida à contemplação e à degustação. Caminha-se sem a obrigação tácita de visitar museus imperdíveis ou de enfrentar filas.
O que não quer dizer que não haja museus, com ou sem filas. Quem quiser poderá dedicar facilmente um bom tempo a explorar tesouros renascentistas, medievais e até mesmo etruscos.
De um lado a outro, o trem é bastante conveniente. E passa-se por paisagens marcantes, campos, lagos e plantações. As mesmas paisagens que são deliciosas de se avistar do topo das colinas que aqui há aos montes, cada uma com um antigo povoado fortificado. Que, de forma quase paradoxal, hoje recebe os visitantes com os braços abertos.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Binários

"...são só dois lados da mesma viagem..."
("Encontros e Despedidas", Geraldo Pereira)

A história que vão ler agora é uma pequena confissão de ignorância deste cronista que vos escreve...
Quem viaja de trem pela Itália logo aprende que, para tomar a composição certa, é preciso saber de qual das plataformas da estação ela sai. Aqui na Itália, cada uma destas posições nas plataformas é chamada de "binario".
Desde o começo, eu fiquei me indagando de onde terá vindo este termo, binário. Os binários não aparecem aos pares: contam se às dezenas nas estações maiores. Verdade que, em muitos casos, se agrupam dois a dois, mas isso não faz muito sentido para batizar a posição do trem como binário, ainda mais que há exceções.
Um trem que vai e volta, que chega e sai, que anda nos dois sentidos, daí o nome de binário? Pouco provável.
Mas por que diabos "binario"?
Hoje tive o estalo: andando de trem, observava o avanço mais ou menos monótono dos vagões sobre a paisagem, a linha férrea... E não é que me dei conta do que todo mundo sabe, isto é, que o trem corre por um par de trilhos? Um binário de trilhos, portanto! E nas estações, claro, há vários destes pares de trilhos - vários binários - correspondendo, cada um, a uma composição prestes a chegar ou a partir...

terça-feira, 17 de maio de 2011

Florença

Ainda não cheguei a uma conclusão sobre Florença (ou Firenze, como dizem os italianos): é uma cidade grande ou uma cidade pequena?
No começo, imaginei que fosse grande. Vejamos: foi considerada das mais importantes e poderosas cidades-estado da Itália, recebe uma quantidade espantosa de gente todos os dias, possui um acervo histórico e artístico maior que o de muitos países, é um centro cultural reconhecido...
Por outro lado, é uma cidade espantosamente compacta, a ponto de não ser difícil percorrê-la a pé. Apesar de movimentada pela quantidade de gente que passa por ela, conserva um ar antigo que certamente não combina com uma metrópole. E, o que para mim é o argumento definitivo, conhecidos se encontram nela ao acaso quando caminham por suas ruas.
Sim! Estou em Florença há três dias e isso já me aconteceu algumas vezes. Primeiro, uma senhora me parou na rua pedindo informação (qualquer hora vou escrever sobre a arte de dar informações, bem como a de pedir informações). Um pouco mais adiante, cruzei novamente com a mesma senhora (e aproveitei para complementar a indicação do caminho que ela queria). Minutos mais e nos vimos novamente! Aí foi impossível não parar pra conversar ao menos um pouco, ela era canadense e recém chegada à cidade...
Ontem foi uma moça que vi na pousada onde estou e vi novamente caminhando pela rua. À noite, de volta a pousada, ela me contou que havia passado, por acaso, praticamente pelos mesmos lugares que eu naquela tarde!
Hoje, foi um grupo de argentinos que sentou perto de mim num trem saindo de Florença. Voltei à cidade pela tarde e encontrei o mesmo grupo na entrada de um museu!
Agora me digam: isto tudo não acontece numa cidade grande, acontece?

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Ciao!

Uma das coisas mais estranhas de quando se está na Itália é dizer "tchau" no lugar de "oi". Porque o cumprimento mais comum em italiano, ao se chegar a algum lugar, é justamente este, "ciao" ("tchau"). Eu sabia disto e não esperava me surpreender, mas de qualquer maneira é algo que leva certo tempo até a gente se acostumar.
Já para uma série de outras coisas, quase não é preciso saber muito de italiano. Pizza, como se sabe, é pizza mesmo. Fui pedir uma pizza de cogumelos, não conseguia lembrar a palavra até que ela me veio, negritando de tão óbvia: "funghi".
Na cafeteria, a coisa é mais fácil ainda. Enquanto que, no Brasil, os esnobes bebem "caffe macchiato", "marocchino" e outras variantes (pobre bebe quase a mesma coisa, mas com o nome de pingado, cortado etc.), aqui se pode pedir o café de nome mais rebuscado possível e ele será servido com toda a naturalidade (e o grão será, bem possivelmente, brasileiro).
Outras palavras, mesmo que a gente não use no cotidiano, estão no nosso inconsciente: "pomodoro" (tomate), "gelato" (sorvete) e por aí vai. De resto, ao menos nos lugares turísticos (que são quase todos quando se trata de Itália), pode-se passar bem sem o italiano: todos parecem falar inglês e mais um pouco de alguma outra língua. O que é quase uma pena em se tratando de um idioma tão sonoro quanto o deles!

Outra crônica inspirada em Roma: Chapéus

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Questão de tamanho

Malta tem todas as características de um pequeno-grande lugar. Deem uma olhada no mapa. Achem este ponto quase imperceptível e reparem na sua localização: entre a Europa e a África, a meio caminho entre Gibraltar e a Turquia - ponto focal, portanto, de algumas das mais influentes civilizações da história. (E, apesar de ter menos de 50 anos como nação independente, as mais antigas construções pré-históricas do mundo estão em Malta.)
Mais que servir de recheio para enciclopédias, isto ajuda a dar ao país um ar tão fascinante. A mistura cultural começa pela língua: o maltês é intrigante, tem uma sonoridade vagamente árabe entremeada de palavras latinas e anglossaxônicas. A comida também é uma mistura - das massas e dos pastéis à carne de caça, desta ao queijo. A arquitetura é de uma grandiosidade que espanta numa ilha tão pequena - reflexos talvez de uma história conturbada.
Um país lapidado pelos séculos. Assim como seus habitantes, cientes e orgulhosos de tudo o que já se viveu nesta terra arenosa. Alberto Caeiro, quando falava de sua aldeia, bem parecia estar falando como maltês: "porque eu sou do tamanho do que vejo/ e não do tamanho da minha altura".

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Primeiras impressões de Malta

Cheguei a Malta ontem e, em um dia e meio, já posso dizer que o país me surpeendeu positivamente. Aliás, é fácil se surpreender aqui, as cidades são lindas e sutilmente exóticas, de um exotismo que deleita os olhos.
O país... Ando descobrindo que gosto mesmo de lugares assim, pequenos, quase escondidos, (talvez por isso) cheios de uma cultura particular. Ao mesmo tempo em que eu levaria tempo para conhecer toda a história, cultura ou língua daqui, com muito pouco seria possível dizer que percorri todo o país, tal a sua pequena dimensão.
Já numa das primeiras conversas, um senhor, ao saber que eu era brasileiro, começou a falar de futebol e do Pelé. Até aí, nenhuma novidade; curioso foi quando ele perguntou, como se fosse natural, se eu era amigo do Pelé. Para alguém acostumado a uma pequena ilha, deve ser difícil até mesmo imaginar um país das dimensões do nosso!
Não por acaso, dizem que a regra dos seis graus de separação não vale na ilha: aqui são dois graus, ou seja, um maltês pode não conhecer diretamente outro maltês tomado ao acaso, mas muito provavelmente conhece algum amigo em comum...

sábado, 7 de maio de 2011

Da Ilha Grande ao Rio de Janeiro


No dia seguinte, mais um nascer do sol primoroso - o Saco do Céu realmente guarda imagens lindas. O nosso coração é que, a esta altura, vivia emoções contraditórias: seguiríamos viagem, mas em direção ao leste, ou seja, já no rumo de volta. Aos poucos, deixaríamos a Ilha Grande para trás e, mais do que isso, enfrentaríamos novamente a desgastante travessia até a cidade do Rio de Janeiro.
Mas uma coisa de cada vez. Ainda tínhamos mais um dia para aproveitar na ilha e o plano era retornar à Enseada das Palmas, passando o dia numa das praias de lá que ainda não havíamos explorado. Foi o que fizemos, e foram momentos agradáveis - a velejada tranquila, a ancoragem nas proximidades da praia, banho de mar, caminhada na areia, almoço num pequeno e pitoresco restaurante-balsa. No final do dia, seguimos para outro ponto no extremo nordeste, já pensando na travessia. Acomodamo-nos, procuramos descansar o máximo durante o tempo que ainda nos restava... e, antes do sol nascer, estávamos novamente navegando, agora voltando para casa. O vento ajudou ainda menos que na ida: no começo praticamente não nos apareceu, obrigando-nos a apelar para o motor. Em compensação, fomos brindados por mais um belo nascer-do-sol no mar.
Quando o vento apareceu, foi pela proa (vento contra), o que nos permitia avançar mas da maneira mais trabalhosa e demorada. Enfim, com um bocado de paciência e tempo mais que suficiente para todo tipo de divagações, aos poucos a paisagem do Rio se descortinava. Na Marambaia, ouvíamos repetidos estrondos - trata-se de uma área militar. Na Barra da Tijuca, via-se a tradicional multidão de guardassóis tomanco conta da praia. Ansiávamos por chegar em casa, mas estávamos mais uma vez sendo pegos pela noite durante a travessia - e ainda mais cansados que na ida. Optamos então por uma parada intermediária: ancoramos entre as ilhas Cagarras, já bem perto da barra da Guanabara, e passamos ali a noite. Acordamos com o sol, um pouco mais descansados, mas cada vez mais ansiosos com a vista de casa (e o vento, fraquíssimo, que não nos ajudava!). Enfim, seguimos. E chegamos. Desembarcamos mais cansados do que esperávamos, mas com todas as marcas indeléveis de férias ricas e intensas. Mil garrafas ao mar não dariam conta do que aqueles dias de mar e sal me acrescentaram.

sábado, 2 de abril de 2011

Susto e recompensa


Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa












Logo cedo, conforme planejado, fiz o reparo do leme. Tudo pronto, hora de levantar âncora da Vila do Abraão. Rumamos para noroeste, com a intenção de explorar um pouco das famosas ilhas da baía - iríamos até as ilhas Botinas e talvez, dependendo do tempo, até a ilha da Gipoia. A velejada começou tranquila, avançávamos ajudados por um vento de popa. Bem, uma das coisas que aprendi é que as coisas mudam, e isto é particularmente verdade quando se trata de condições do tempo. Aos poucos, o vento foi aumentando e o mar foi ficando mais agitado - nada que nos assustasse, mas sim que exigia atenção e cuidados redobrados. Rizamos (diminuímos) as velas e seguimos em frente. Então aconteceu: subitamente o barco começou a responder de forma estranha... Um dos lemes não respondia! De alguma maneira, o conserto não havia dado certo. Tensão! Após uma rápida avaliação da situação, concluí que não havia o que fazer a não ser usar todos os meios possíveis para chegar ao primeiro porto disponível. No caso, acabou sendo a marina Portogalo, aonde chegamos assustados e cansados, mas em segurança. Na contabilidade dos prejuízos, além do leme quebrado, problemas na costura da buja (vela da proa), que se soltara enquanto tentávamos controlar o barco. O lado bom é que estávamos no continente, numa marina com estrutura muito melhor que a de qualquer ponto da ilha. Procurei a oficina da marina, providenciei novo conserto (desta vez com material mais reforçado) e preparamos o Pandorga para pernoitar ali - não sem antes uma boa ducha e um esperado jantar.
O dia seguinte amanheceu com tempo bom, mas havia uma decisão difícil a ser tomada. A princípio, não se havia perdido muita coisa, basicamente foram danos materiais já reparados, mas havia sim sido perdido algo importante: a nossa confiança no barco para fazer uma travessia como a planejada. E então? Optamos por uma leve mudança ns planos: não iríamos mais até as ilhas Botinas, em vez disso rumaríamos para a Lagoa Azul, que ficava mais perto, e iríamos aos poucos testando o barco para garantir que ele não nos traria mais surpresas. Dito e feito. A tal Lagoa Azul não é uma lagoa, mas uma enseada de águas rasas e claras excelente para snorkelling. Não por acaso, é o ponto alto da maioria dos passeios turísticos que saem do Abraão. Quanto a nós, fomos até lá sem mais contratempos e tivemos recompensada a insistência. Que pedaço de mar encantador! Seria um crime fazer uma viagem como a nossa e não passar por lá.
Otimismo renovado... Seguimos em frente. Próxima parada: Saco do Céu, uma das enseadas mais protegidas de toda a ilha, o que faz com que seja também um concorrido ponto de pernoite de embarcações. Na ida até lá, pegamos um vento razoável pela proa e o Pandorga se comportou bem, o que fez aumentar novamente a confiança nele. A chegada no Saco do Céu foi das melhores possíveis: paisagem linda (como em toda a ilha), águas calmíssimas (perfeitas para o pernoite do barco) e um restaurante com um cais que foi a primeira coisa que procuramos, porque nossos estômagos àquela hora estavam ansiosos por uma boa refeição! Após, ainda tivemos tempo para aproveitar e descansar. Mais mergulhos, mais conversas, mais observação do que tínhamos à volta. Como havia tempo (e não havia tevê por perto), chegamos até a arriscar umas divertidas partidas de gamão. Sim, gamão! O Pandorga é o único veleiro que conheço que já foi palco de partidas de gamão na Ilha Grande... Enfim, nosso humor estava de volta e ansioso por mais.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

Enfim, a Ilha Grande











___ trilha por terra (Palmas - Lopes Mendes - Palmas)
___ trajeto marítimo (Palmas - Abraão)





Desembarcar em terra, depois de tantas horas no barco (tinham sido duas noites a bordo e mais um dia de travessia), é no mínimo emocionante. No meu caso, assim que o dia amanheceu, pulei na água e literalmente nadei até meus pés encontrarem a areia da praia. A vontade era de gritar pela chegada ao destino e pelo dever cumprido de ter trazido o Pandorga em segurança. Contentei-me com uma primeira caminhada. Em seguida, uma ducha de água doce que havia ali perto. Logo desembarcou também o Arthur.
Estávamos na Praia Grande de Palmas, aproximadamente a meio caminho entre a Vila do Abraão (o "centro" da ilha) e a famosa Praia de Lopes Mendes. Sabendo que bastava uma caminhada através de uma trilha na mata para chegar a esta última, que eu não conhecia, resolvi ir até lá. São cerca de 40 min leves e bastante agradáveis. Volta e meia, descobre-se uma vista exuberante entre o mato. O tempo todo se cruza com turistas, muitos deles estrangeiros - esta é provavelmente a trilha mais movimentada da ilha. E Lopes Mendes. A praia é, sim, muito bonita. Mas... ouso dizer que não tão mais bonita que outras da ilha. E com a desvantagem de ser relativamente cheia: a quantidade de gente tomando sol na areia, jogando frescobol, surfando, faz lembrar mais uma concorrida praia do continente que um isolado recanto de uma ilha cuja principal virtude, na minha opinião, é ser ainda pouco explorada. Em outras palavras: pode ser uma praia bonita, mas não é por causa dela que eu faria toda essa travessia... Olhei, explorei, tirei fotos e retornei. No caminho, ainda conversei bastante com quem fazia a trilha comigo: um dos muitos cachorros da ilha e um grupo de curitibanos que estavam lá de visita.
De volta à Enseada de Palmas, embarcamos rumo à próxima parada: Abraão. Este é o único lugar em toda a ilha que se parece com uma cidade, isto é, tem ruas, restaurantes, comércio variado e bastante gente circulando. Pelo mesmo motivo de Lopes Mendes, o Abraão sozinho não é o lugar que faz uma ida a Ilha Grande valer a pena. Mas, para quem pretendia, como nós, ficar todos estes dias explorando a baía e suas praias e enseadas, é o lugar perfeito para ter um descanso, almoçar num restaurante médio, provar um açaí e reabastecer o barco com comida, água e gelo.
O dia não passou sem um inconveniente: percebi que um dos dois lemes do Pandorga estava com uma folga maior do que seria normal, fui verificar e descobri que um parafuso havia saído da posição. Pior: o parafuso estava retorcido de tal maneira que eu não conseguia recolocá-lo no lugar nem retirá-lo completamente. A solução, pensei comigo, seria limar o parafuso para conseguir retirá-lo e substituí-lo por outro. Daria um pouco de trabalho, mas não seria nada de mais. Porém, apesar de ter uma caixa de ferramentas relativamente completa, eu havia esquecido de trazer uma lima! Paciência, pensei comigo. Melhor não se preocupar com isso àquela altura (já anoitecia). No dia seguinte, eu acordaria cedo, desembarcaria, procuraria uma ferragem e, munido de lima e parafusos, faria o conserto. Ninguém disse que nossa aventura seria fácil ou que estaria livre de imprevistos! Mesmo assim, continuava a valer a pena.

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Mensagem na garrafa

El mar es un azar
¡Qué tentación echar una botella al mar!
*

Era um desejo de infância. Quando pequeno, nas praias que eu frequentava, sonhava em topar com uma garrafa trazida pelas ondas até a areia, uma garrafa que traria mensagens de terras longínquas. Lembro de ouvir contar que minha tia, certa vez, encontrou uma garrafa com uma mensagem de alguém que estudava correntes marítimas. Esta história me fascinava. Sobretudo, fazia com que eu imaginasse encontrar também minha própria mensagem.
Há algumas semanas, folheando um livro do Amyr Klink que me chegara às mãos, deparei-me com uma passagem em que ele conta ter lançado ao mar, no Atlântico Norte, um vidro de Nescafé com um bilhete e uma pedrinha colhida na Antártida. Amyr tinha na cabeça que, segundo estatísticas, só uma em cada vinte mensagens jogadas assim eram recuperadas, mas apostou e recebeu uma resposta, sete meses depois, com a foto de um menino norueguês de dez anos que achara o seu vidro de Nescafé.
Na mesma noite em que li o trecho do livro, eu havia oferecido um jantar aqui em casa para uns amigos. Abrira uma garrafa de vinho que já estava há bastante tempo esperando a ocasião e alguém comentou que a garrafa era muito bonita. Guardei-a vazia, mesmo sem saber o que fazer com ela - um vaso de flores, talvez?
Às vésperas de partir para Ilha Grande, então, estava eu envolvido com o planejamento da travessia quando tudo voltou à minha memória - meu sonho de infância, a história da minha tia, a pedrinha do Amyr que foi parar na Noruega - no instante em que olhei para a garrafa vazia descansando pacientemente em cima da pia da cozinha e esperando seu destino. Não hesitei. Busquei papel e caneta, sentei-me e escrevi. Anotei, depois de consultar a carta náutica, a posição mais propícia para lançar a mensagem (na preamar, quando passássemos entre a Barra da Tijuca e o Recreio dos Bandeirantes). Sabia que era um pouco de pretensão querer que a mensagem chegasse longe, mas quem consegue me impedir de sonhar? Tampei a garrafa, lacrei e guardei-a cuidadosamente entre os objetos que seriam levados a bordo do Pandorga...
Então, quando chegou o momento, durante a travessia, a garrafa voou da minha mão para as águas de um mar sereno. Porque viagem alguma se completa sem que se alimente o sonho ingênuo e infantil que guardamos conosco.

Pongo estos seis versos en mi botella al mar
con el secreto designio de que algún día
llegue a una playa casi desierta
y un niño la encuentre y la destape
y en lugar de versos extraiga piedritas
y socorros y alertas y caracoles.
*

* Citações do uruguaio Mario Benedetti.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Todos os ventos que sopram


Para que eu não pare nesta existência
Tão mal cumprida tão mais comprida
Do que a restinga de Marambaia!...

Manuel Bandeira






Sem falsa modéstia, tenho plena consicência de que poucas pessoas terão uma oportunidade na vida para fazer aventura como a que nos propomos. O plano era sair do Rio de Janeiro ainda de madrugada, eu e meu amigo Arthur, e fazer a travessia marítima até a Ilha Grande no Pandorga, um veleiro de 20 pés, chegando lá perto do entardecer. Ficaríamos por alguns dias e depois retornaríamos. Para tanto, passei as semanas anteriores em preparativos - revisões, estudo da rota, previsões de tempo, provisão de alimentos, bebidas e materiais diversos. Na tarde anterior, embarcamos - dormiríamos a última noite já no barco.
A ansiedade era grande. Vontade foi de partir antes mesmo da hora planejada. Mas procurei dormir, sabendo que umas horas de descanso prévio poderiam ser valiosas mais tarde.
Partimos, pois, no dia 16. Assistimos de camarote ao nascer do sol no mar, um belo espetáculo. Aos poucos o vento foi nos fazendo companhia, um gentil vento de popa que nos permitiu subir a vela-balão - o Pandorga tem uma bela vela-balão farroupilha, nas cores verde, vermelho e amarelo.
Dali para a frente, as praias cariocas iam se descortinando à nossa direita - ou seja, a boreste, já que estamos falando de coisas do mar. Leme, Copacabana, Ipanema, Leblon, São Conrado já haviam ficado para trás. Vem a Barra da Tijuca, vem o Recreio dos Bandeirantes, as praias vão ficando maiores e custam mais a passar. Guaratiba. E então a Restinga Marambaia, mais de 40 km de uma faixa de terra baixa e estreita, tão baixa e estreita que mal se vê do mar. O curioso é uma árvore solitária plantada ali: à distância, com a faixa da Restinga praticamente invisível, o que se enxerga é a árvore como se ela estivesse em pleno mar. Dizem que serve de aviso aos navegantes: há histórias de incautos que, à noite ou sob neblina, aproximavam-se perigosamente de terra e foram salvos pela visão da árvore, legítimo farol natural (que obviamente não aparece na carta náutica).
Da metade para o final da Restinga, o vento começou a apertar. Hora de ficar atento, fazer força e mostrar agilidade nas manobras. Para quem já estava há horas no mar e recém começava a enxergar, ao longe, a Ilha Grande, era um teste de resistência. Brincamos: "Rizar as velas é para os fracos!", ouve-se a bordo, em referência à manobra de diminuir (rizar) a área vélica quando o vento passa da conta. Sanduíches, bolachas, chá gelado, suco e muita água - tudo vale para fornecer energia contra o cansaço. E paciência. Quando pensamos que, ao menos, o vento forte nos empurrará logo para o destino, ele resolve serenar. Praticamente some, obriga-nos a ligar o motor. O sol já está se pondo quando entramos na baía da Ilha Grande. A travessia vai levar mais tempo que o previsto. Mas paciência é virtude de velejadores. Nosso pouso será a Enseada das Palmas. A Ilha já está perto. Sente-se cheiro de terra, cheiro de mato! Os corações se ouriçam, a expectativa cresce em meio ao cansaço. Entramos na enseada. Em meio à escuridão, dois pontos luminosos lá adiante nos guiam para a praia em frente à qual fundearemos. Pronto, chegamos! Solto a âncora. O Pandorga se comportou bem, assim como nossa fibra de marinheiros. Estou aliviado. À noite, parece que temos aquela praia inteira para nós, mas o que interessa agora é verificar se a âncora está bem presa, terminar de baixar a vela, organizar as coisas na cabine e dormir. O sono virá fácil, afinal precisamos dele para chegarmos descansados ao dia seguinte. Ilha Grande nos espera.

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Tempo de se lançar ao mar


Mais uma vez de férias, mais uma vez às voltas com planos de viagem. Com a novidade de que, agora, a viagem será inédita como nunca: inédita não pelo destino mas pelo meio. Em outras palavras, vamos velejando do Rio de Janeiro até Ilha Grande.
A perspectiva de fazer esta travessia por via marítima (e usando a força do vento), mais a perspectiva de, chegando lá, dormir no barco, dá um frio na barriga, uma certa ansiedade e, principalmente, uma sensação de contato com a natureza que não sei se já experimentei antes.
Como não poderia deixar de ser, as cartas de tantas léguas se transformarão em cartas de milhas náuticas e eu procurarei publicar aqui a crônica da viagem. Não sei como será a conexão lá, então é possível que eu não atualize o blogue com a frequência que eu gostaria. Mas tratarei de enviar notícias, se não por aqui, pelo menos através do Twitter, no espaço telegráfico que ele permite.
E vamos ao mar, enfim, que, como se sabe, "viver não é preciso"!