domingo, 19 de junho de 2011

O Homem dos Cães

Gosto de pensar que há imagens que são poemas, como há poemas que são declarações de amor. Às vezes, é tudo a mesma coisa.
Assim como há imagens, poemas e declarações que são uma pessoa.
A maior dor de minhas últimas férias foi não poder viajar com minha namorada. Não é fácil estar longe de quem se gosta, ainda mais quando pretendia-se estar perto, quando planejava-se estar lado a lado.
Menos mal que vem o reencontro, as tristezas passam, ficam as lembranças boas.
Há detalhes que são as melhores lembranças. Há detalhes que são o mais importante.
Minha namorada adora cachorros. Quando parti, ela me pediu uma única coisa: não que lhe trouxesse algum suvenir, camiseta, chaveiro, garrava de vinho, buquê de flores, livro importado, brinco de pérolas, colar de presente; pediu que eu lhe trouxesse fotos de cachorros dos lugares por onde passasse.
Forma singela de atenção.
"Mas tu tens cabelos cor de ouro. Então será maravilhoso quando me tiveres cativado. O trigo, que é dourado, fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento no trigo...", disse a raposa ao Pequeno Príncipe.
Cães foram meus campos de trigo. Lembrei-me da princesa que me esperava, além do oceano, e quase sem perceber fiz uma viagem canina. Atentava sempre, percorria com os olhos as ruas e as calçadas, sacava de repente a máquina fotográfica com a velocidade do Velho Oeste - isso quando não a tinha já preparada, dedo no obturador.
Geralmente sou tímido demais para conversar com cachorros, ou com seus respectivos donos, no meio da rua. A maioria das imagens saiu tremida, improvisada, artesanal. No fundo, gosto disso: fotos espontâneas como o sentir. Às vezes, aproximava-me, ousava puxar assunto. Para uma ou outra pessoa, contava a história - eu, o homens dos cães.
Gosto de pensar que há detalhes que enriquecem as viagens. Como há detalhes que alimentam o amor. Minha amada gosta de cachorros, eu a amo, ela me ama. Aonde quer que eu vá.

terça-feira, 7 de junho de 2011

A Cidade Impossível

Veneza. La Serenissima.
Não sei dizer de onde veio este nome, Sereníssima República. Não há potência do passado que seja realmente serena, tantas e tão frequentes eram (e ainda são) as guerras, escaramuças e disputas por poder. Veneza tinha a particularidade de se valer, para sua proteção, não de muralhas como as de outras cidades mas do mar. Bom, o nome não terá vindo do mar, que não é exatamente sereno: é fascinante, mas este fascínio que exerce se mescla a uma perigo latente, quase traiçoeiro, quase como o canto das sereias. O mar abraça e defende Veneza, mas também dá a ela a incômoda acqua alta.
Mais que sereníssima, Veneza é uma cidade impossível - esta a conclusão a que cheguei ao percorrer suas ruas, suas praças e sobretudo seus canais. Aquilo tudo deveria ser pouco mais que um pântano, um punhado de traiçoeiros bancos de areia, quando muito um curioso balneário. A lógica diz que não se constrói uma cidade naquelas condições. E, no entanto, lá está Veneza com seu esplendor, seus palácios, sua vida dependente do mesmo mar que, segundo a lógica, deveria impossibilitá-la.
Veneza é sobretudo bela, tão bela que a frase soa redundante. Porém, não se trata apenas disto, Veneza vai além, Veneza é única. Usa-se o seu nome como moeda de comparação ao redor do mundo: fala-se na Veneza brasileira (Recife), na Veneza portuguesa (Aveiro). Bobagem! Nada contra estes outros lugares, que também têm seus atrativos, mas Veneza não admite comparação. Ela é diferente de todo o demais e isso fica evidente ao viajante já nos seus primeiros instantes de contato com a cidade. Em Veneza como em nenhum outro lugar a vida circula através da água, sobre a água e ao longo da água. Veneza é o seu mar que, tomando a forma de canais, transfigura-se também ele em algo único. Veneza e seus canais, suas cores e sons, seu labirinto de ruas que não raro terminam (ou começam) no mar. Uma cidade que se abre para o mar é uma cidade que se abre para o mundo. Talvez sereníssima seja a alma da cidade que se sabe inigualável. Como não se apaixonar por ela?

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Ja bih sok, molim vas

Eu sabia que meus conhecimentos de croata estavam muito aquém do necessário para manter uma verdadeira conversação nesta língua. Ao mesmo tempo, porém, estava ansioso para testar o quanto eu seria capaz de me valer dela.
No avião, agarrei o jornal local e me pus a decifrar as notícias naquela língua que eu só conhecia de longe – empenhara-me em aprender croata nos últimos meses, mas eu não sabia se um livro e umas gravações do tipo “estude por conta própria” seriam confiáveis. Nunca tinha tido uma conversa em croata. Então, quando passou a aeromoça perguntando o que eu iria querer beber, caprichei na pronúncia: “ja bih sok, molim vas” (quero um suco, por favor). Juro que me espantei com a naturalidade com que ela replicou – “jabuke ili naranče?” Eu havia conseguido me comunicar! Não tinha me ocorrido que teria de dar mais uma resposta – qual suco eu queria, maçã ou laranja? Mas aí não tive dúvida, suco de laranja é dos meus preferidos e a palavra em croata é facilmente reconhecível.
Em solo, fui descobrindo que eu estava até acima das expectativas. Sim, falta-me vocabulário e falta-me sobretudo fluência: não consigo pensar em croata, as frases levam um ano até se formarem na minha cabeça. Mas entendo bastante coisa. A gramática é complicada, mas a fala é surpreendentemente familiar, os croatas em geral pronunciam cada letra de maneira bem clara, facilitando o entendimento (só não esperem isso de uma dona de casa elétrica, daquelas que engolem as sílabas em qualquer parte do mundo).
Uma cena comum, ao menos em algumas cidades da Croácia, são banquinhas na rua em que se vendem saquinhos com lavanda. Eu não estava morrendo de vontade de comprar um saquinho de lavanda, mas queria vivenciar o pitoresco da cena: as mesinhas cheias de saquinhos e de essências, atrás de cada mesa um banquinho com um senhor ou senhora esperando possíveis compradores. Aproximei-me, então, e a velhinha daquela banca começou a me apontar os produtos, tateando o inglês e ansiosa por vender. Eu devia ter toda a pinta de um turista estrangeiro. Quando, porém, a mulher viu que eu estava falando (ou tentando falar) a sua língua, foi como se algo se iluminasse, ela abriu um sorriso e desandou a conversar comigo, a contar coisas de si e da cidade... Eu entendia, quando muito, metade do que ela dizia, mas estava fascinado pela situação! No final, claro, comprei um saquinho (pequeno, mas suficiente para deixá-la contente) e arrisquei pedir-lhe uma foto. Ela respondeu: não tem problema, mas para que foto, eu sou tão feia!
Ora, nunca é feia a pessoa que nos faz sorrir, ó senhorinha a quem eu infelizmente esqueci de perguntar o nome!
Deixei a Croácia de barco (modo fácil e cômodo de atravessar o norte do Adriático) numa manhã de céu claro. Era bem cedo. Quis comer alguma coisa e fui até a lancheria de bordo. Eu sabia que aquela tripulação falava inglês e italiano (idiomas mais familiares para mim) e que possivelmente não eram croatas. Mesmo assim, ao escolher um sanduíche e algo para beber, fiz questão de falar em croata. Uma forma de praticar ainda uma vez esta língua da qual já sinto saudades. E uma despedida singela daquela terra e daquelas pessoas a que me afeiçoei.