terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Muito além da burca

Talvez se possa dizer que os países árabes, de forma geral, são os que mais são vistos com preconceito no Brasil. Claro que isso tem uma série de motivos, como a relativa distância (física e cultural) desses países, uma deficiência da nossa educação, uma imprensa parcial e (por que não) uma certa preguiça de aprender sobre outras culturas antes de repetir ideias fáceis sobre elas. Uma pena, eu acho... Mas não é minha intenção aqui discutir esses motivos.
O fato é que viajar - e viajar de mente aberta - costuma ser dos melhores antídotos contra preconceitos assim.
É verdade que, nos Emirados (e suponho que na maioria do mundo árabe), aspectos culturais e religiosos se entrelaçam, e nem sempre é fácil distinguir o que é um hábito cultural do que é um preceito islâmico. Apesar disso, eu suponho que, em muitos casos, a questão cultural seja mais forte que a religiosa - exatamente como acontece no Brasil e em outras partes do mundo, onde mesmo quem não é cristão fervoroso, muitas vezes, procura casar na igreja, comemorar o Natal, fazer o sinal da cruz antes de uma cobrança de pênalti ou uma decolagem de avião...
Algumas descobertas. A burca, aquele tecido que cobre completamente o corpo feminino, tristemente famoso no Ocidente por culpa do regime talibã, é a menos comum das vestimentas associadas ao Islamismo. E particularmente nos Emirados Árabes, um país repleto de estrangeiros, é extremamente comum que as mulheres usem simplesmente roupas ocidentais ou ocidentalizadas. À parte isso, o que se vê bastante é o hijab, véu na maioria das vezes preto que cobre os cabelos e é usado juntamente com uma abaya - vestido longo tradicional. Nesse ponto, sei de gente que fala ou falaria coisas como: as muçulmanas não podem sequer mostrar os cabelos! elas são obrigadas a esconder o corpo debaixo daqueles panos pretos! e por aí afora. Bem, eu normalmente tento ao máximo entender qualquer questão cultural antes de criticá-la, e cheguei a algumas conclusões que repito com convicção. Uma, que (ressalvados exageros como os de alguns extremistas) elas não são obrigadas a nada, ou pelo menos não sofrem nenhum constrangimento muito diferente das mulheres no Ocidente - que, se pensarmos um pouco, não podem mostrar o peito da mesma forma que os homens fazem, e são levadas a atitudes "estranhas" como raspar as axilas ou mutilar o corpo, perfurando as orelhas desde a tenra idade para então enfiar nelas pedaços de metal - brincos. É tudo escolhas culturais. Outra conclusão, em geral as mulheres árabes realmente apreciam o que vestem, tanto é que muitos dos trajes típicos são lindos e ricamente elaborados. Elas ostentam uma abaya com o mesmo orgulho que uma ocidental usaria um brinco ou um vestido; exibem um hijab como no Brasil se exibiria um corte de cabelo. Mais ainda, sentiriam-se humilhadas e tolhidas na sua liberdade não pela suposta "obrigação" de usar determinado traje, mas sim se as proibissem disso, da mesma forma que seria vexamoso a uma ocidental se lhe arrancassem parte da roupa.
Mas nem só de teoria sociológica é feita nossa viagem. A verdade é que ficamos fascinados pelas roupas árabes que víamos expostas nas lojas e nos mercados. Num desses, em Dubai, o vendedor acabou vestindo eu e a Renata dos pés à cabeça, explicando como colocar cada peça. Não compramos as roupas; por mais persuasivo que fosse o vendedor, e ele era bastante, não estávamos dispostos a pagar tanto por algo que não voltaríamos a usar. Mas compramos um hijab (véu) para ela e uma ghutra (turbante) para mim, que acabamos usando um pouco durante o restante da viagem. Como estávamos longe de ser especialistas nessas peças, cuja colocação é mais intrincada do que aparenta ser (e que varia de acordo com preferências pessoais, regionais e de moda), baseávamos-nos nas indicações do vendedor, em vídeos do Youtube e em algum improviso.
Pois bem, poucos dias depois de ter comprado a ghutra, estava eu usando-a quando passa por mim um Porsche 911, diminui a velocidade e faz um sinal positivo, apontando para a minha cabeça. A interpretação lógica é a da aprovação de um nativo a um estrangeiro que, de alguma forma, parece demonstrar apreço pela cultura local. Sigo com mais segurança.
Mais alguns dias, estamos noutro lugar e eu novamente com a ghutra na cabeça. Sou abordado e me perguntam, apontando para minha cabeça: quem fez isso? Respondo que eu mesmo. Meu interlocutor é rápido e solícito: vem cá, vou arrumar para ti! Com prática, desfaz minha obra e refaz a colocação do lenço, dizendo ao final que agora sim está da forma como fazem no país... Agradeço e assumo minha ignorância da moda árabe, enquanto a Renata, que há dias reparava na minha incapacidade de acertar a forma correta de colocar um pano sobre a cabeça, não contém a risada...

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Teoria e prática do ilusionismo com tâmaras

por Eduardo TrindadeDe forma geral, dá para dizer que nos demos bem com a comida dos Emirados. Para começar, a oferta é tão variada quanto a quantidade de imigrantes que lá vivem, o que significa diferentes opções de cozinhas ocidentais, árabes, chinesas e sobretudo indianas. Sem contar que tínhamos quartos de hotel amplos e equipados para preparar nós mesmos algum lanche (o primeiro quarto em que ficamos tinha mesmo uma cozinha em estilo americano). Portanto, um prato cheio para exercitarmos a arte de investigar a oferta dos supermercados locais!
A tâmara é a estrela da comida árabe. Está em todos os lugares, de diferentes variedades e com diferentes apresentações - frescas ou secas, inteiras ou com os mais criativos recheios, desde lascas de limão até macadâmias. E as tamareiras são figura fácil na paisagem emiradense, seja nas cidades ou no deserto. Antes mesmo de descobrir tudo isso, descobrimos as tâmaras frescas num supermercado e compramos um punhado - mais precisamente, um cacho - para experimentarmos. À primeira mordida, decepcionamo-nos um pouco: aquelas frutas pequenas têm a consistência aproximada de uma pera, talvez um pouco mais duras, e são extremamente doces. A impressão é quase a de morder um torrão de açúcar, tão doce que chega a ser sem graça.
Indo além, fomos provando outras iguarias, como o falafel (bolinho árabe), o kebab, o samosa (pastel indiano) e até uma autêntica sfiha (esfirra). Eu tinha boas lembranças das culinárias da Turquia e da Índia, e isso me deixou mais confiante para provar comidas da mesma família. Confiante até demais. Num dos lugares em que jantamos, pedi um biryani (prato de arroz indiano) e o dito cujo teria sido uma boa escolha, não fosse a quantidade absurda de pimenta que me fez pensar que era aquilo que serviam em "Como treinar seu dragão". Cuspindo fogo, ataquei meu copo de lassi (iogurte indiano), apostando nele para refrescar a ardência da boca. Mas a coisa só ficou pior, porque o lassi, contrariando as bebidas doces a que estamos acostumados, tinha um bocado de sal e pimenta...
Apesar de tudo, sobrevivi, e sobrevieram experiências melhores. Nos dias seguintes, fui compensando a overdose de pimenta com várias tâmaras recheadas. Já aquelas tâmaras frescas, que havíamos comprado logo no começo da viagem, ficaram meio que esquecidas a um canto do quarto.
Seguimos. De Dubai, o próximo destino era Abu Dhabi. Obviamente levamos conosco as tâmaras, frescas e secas.
Em Abu Dhabi, nós nos hospedamos no hotel de uma cadeia internacional - definitivamente, os Emirados são a terra das grandes franquias de hotéis, não de pequenas pousadas ou de empreendimentos familiares.
Acontece que, ao voltarmos para o quarto depois do primeiro dia de passeio em Abu Dhabi, reparamos que estavam faltando duas frutas no cacho de tâmaras que havia ficado sobre a mesa. O sentimento foi de perplexidade. "Não... Não pode ser...", pensamos.
No outro dia, o número de tâmaras voltou a diminuir. Continuamos incrédulos.
Até que nos restou uma única tâmara presa ao cacho. O jeito foi reagir com ironia: "Será que a camareira vai ter coragem de comer a última tâmara? Mas quem come a última não casa... E se comer, será que vai deixar o galho vazio ou vai jogá-lo fora?"
Mais um dia, a tâmara continuava lá. Chegamos a pensar que ela estava a salvo.
Doce, doce ilusão: no dia seguinte, o cacho e a última tâmara tinham desaparecido sem deixar rastro, tão definitivamente que chegamos a duvidar de que os tínhamos visto alguma vez.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Emirados Árabes

E aconteceu que foram os Emirados Árabes o primeiro país do Oriente Médio a ser visitado por mim.
Chegamos um tanto cheios de cuidados: mesmo sabendo que se trata de um dos países mais tranquilos da região, havia uma série de informações sobre como se portar com "decência", usar as roupas adequadas, não demonstrar afeto em público etc.
Acabamos descobrindo que a regra principal lá (como provavelmente em qualquer lugar do mundo) é o bom senso. As roupas que as mulheres usam, por exemplo, há de todos os tipos, desde o nível prostituta-de-Copacabana até o nível  burca talibã - e fica evidente que o bom senso se localiza no meio do espectro. Aliás, a roupa que se usa nos Emirados merece um capítulo à parte.
Talvez a maior diferença seja mesmo que os casais, quando em público, evitam andar abraçados e trocar beijos. Embora, procurando com atenção, seja possível ver algum par árabe de mãos dadas.
O que chama a atenção é a quantidade de estrangeiros: o país tem mais imigrantes que emiradenses. Na rua, todo mundo pergunta de onde somos e acaba sendo interessante quando perguntamos de volta e descobrimos pessoas de vários lugares da Ásia ou de outras partes do mundo.
Boa parte dos ocidentais, quando pensa nos Emirados, lembra de Dubai e, em menor escala, de Abu Dhabi. Não à toa; são cidades que impressionam. Não me espantaria descobrir que o país tem proporcionalmente uma das populações mais urbanizadas do mundo, afinal a terra por lá é inóspita e viver fora das cidades é um desafio. Ainda assim, é incrível pensar em como essas cidades cresceram e se desenvolveram em tão pouco tempo. O que não tira o fascínio de se passear além dos grandes centros: o interior também tem paisagens e pessoas únicas.
Enfim, viajar aos Emirados é um mergulho cultural daqueles que dificilmente se consegue de outra forma. E o que é melhor: mergulha-se de forma tranquila, sem grandes medos ou sustos. Aprende-se um pouco a cada carona na estrada, a cada prato de comida, a cada barganha no mercado.