quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Congonhas e seus profetas

Partindo de Ouro Preto, segui viagem de carro. No roteiro, Congonhas, Tiradentes, São João del Rey.
Primeira parada, Congonhas — não o famigerado aeroporto de São Paulo, claro, mas a cidade a meio caminho do roteiro histórico tradicional de Minas Gerais. Verdade que Congonhas não tem muitos atrativos quando comparada com outras cidades da região, mas já esperava por isto. Por outro lado, havia dois motivos que faziam com que a visita valesse a pena. Primeiro, a localização conveniente: era possível sair de Ouro Preto pela manhã e fazer lá uma parada estratégica, vendo o que há para ser visto, almoçando e seguindo caminho a tempo de alcançar Tiradentes antes do entardecer. Segundo, sem dúvida, os profetas de Aleijadinho, que são talvez a obra mais impressionante da arte barroca mineira.
Não vou me perder em explicações didáticas sobre as estátuas ou sobre a basílica; deixo isto para os guias especializados. Prefiro dividir com vocês as fotos: quem gosta de fotografia pode dedicar um bom tempo em Congonhas a explorar diferentes ângulos, texturas e efeitos em torno dos profetas de Aleijadinho. Quem não faz questão de fotografias, pode simplesmente admirar as estátuas enquanto se desliga da vida. E quem tem fome, como tive, pode apostar que vai encontrar em Congonhas uma boa mostra da inigualável cozinha mineira. Aventurei-me num restaurante ao lado do santuário, praticamente à vista dos profetas. Um casarão amplo em estilo colonial que, talvez pelo horário ou por ser meio de semana, estava quase vazio. Porém, acolhedor: enquanto a comida não vem, é fácil e gostoso conversar com os mineiríssimos donos do restaurante. Quando chega o prato, é difícil lembrar que a gula é um pecado: diante de comida tão abundante e tão saborosa, fartar-se só pode ser um grande prazer. Um dos tantos que se experimenta nestas estradas de Minas.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Você sabe dar nó em gravata?

Com certeza sentou-se a um velho banco,
Um desses velhos bancos lustrosos pelo uso
Que existem em todas as estaçõezinhas pobres do mundo
Contra uma parede nua...
(Poema da Gare de Astapovo, Mario Quintana)
Rodoviária do Rio de Janeiro. Aquele universo confuso de gente de todos os tipos indo para todos os lugares. Uma sexta-feira à noite. Olhares cansados, distraídos, ansiosos, esperando o fim de semana, a volta para casa, a visita à família. Um gichê e uma fila para comprar passagens. Um banco de madeira a um canto da estação, o meu vagar distraído.
Sentado no banco, um senhor de certa idade tem os olhos fixos na minha direção e acena repetidas vezes.
A princípio, não presto atenção. O senhor, acomodado no banco e vestindo paletó, continua acenando, cada vez com mais insistência. Olho para os lados. Ninguém parece reparar. Encaro o senhor, ele me olha fixamente e balança a cabeça. Levo a mão ao peito, como se dissesse "quem, eu?", e ele se agita, responde silenciosamente com a cabeça "sim, sim!" Resolvo me aproximar.
— Você sabe dar nó em gravata? — pergunta, esperançoso, o senhor. E continua a explicar: ele vai a São Paulo, precisa da gravata, está disposto a passar a noite toda engravatado dentro do ônibus para já chegar arrumado ao seu destino, tendo em vista que não sabe dar nó em gravata.
— Olha, faz bastante tempo que não dou um nó em gravata... — esclareço, surpreso e comedido, lembrando ainda que todos os nós que dei foram em mim mesmo, com a gravata no pescoço e em frente ao espelho, e que ajustá-la no pescoço de outra pessoa pode ser mais difícil do que parece. Mas, nisto, o senhor já tirara do bolso, meio amarrotada, uma gravata em tom amarelo-pastel, e me suplicava para ajudá-lo. Tomo a gravata nas mãos e peço licença para, primeiro, ajeitá-la em mim, é a forma que tenho de relembrar como se faz aquela tarefa um tanto distante da minha rotina. Gravata no pescoço, erro o nó, erro a altura, depois finalmente acerto. Desfaço o nó, e não sei por que minhas mãos tremem quando passam a gravata pelo pescoço do homem. Aquele senhor tão mais velho que eu, encolhido no banco, de repente tem um ar de criança indefesa. E eu não sei lidar com crianças. Cabeça baixa, retraído, talvez envergonhado, o senhorzinho dificulta a minha tarefa. Peço que ele erga o pescoço, olhe para a frente. A postura muda, ele resolve puxar assunto, pergunta meu nome, chamo-me Eduardo, é o nome do filho dele, ele não vai esquecer de mim, e por aí a conversa flui. Tento o nó algumas vezes, definitivamente estou enferrujado, mas enfim acerto. Não é o melhor nó que eu já dei numa gravata, mas está bem aceitável e não vai apertá-lo muito quando ele tentar dormir no ônibus até São Paulo.
— Ficou bom? — interrogam-me os olhos do homem, e eu respondo que ele não vai fazer feio. O senhor sorri. Como despedida, pergunta se a mulher que me acompanha é minha esposa. Digo que não, mas retribuo o sorriso. Ele deseja Feliz Natal e me recomenda a Deus, eu respondo e agradeço. Não sei mais se a postura do homem sentado no banco é de idoso ou de criança, as aparências enganam. Resisto à tentação de abraçá-lo, não sei lidar com crianças, mas sinto que valeu a pena tocar com a mão o ombro daquele menino grande que, afinal de contas, vai enfrentar sozinho uma metrópole estranha.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Quartos de hotel

Há qualquer coisa de sobrenatural em alguns hotéis pelo mundo afora. São como antigos castelos encantados.
Deve ser o assombro do desconhecido — uma cidade estranha, um quarto estranho, a noite, que é sempre estranha, e pronto, está montado o palco que intriga nossos sentidos.
Nem falo tanto de algumas pousadas e albergues onde é comum o pessoal ficar pelos cantos até tarde. Nestes casos, pode-se ouvir muitas histórias, algumas extraordinárias, mas todas bastante humanas. Não, o que mais desperta nossa atenção são aqueles quartos absolutamente silenciosos, ou que deveriam ser silenciosos, em que algo inexplicável — um barulho, por exemplo — insiste em testar nossa curiosidade.
Um hotel em Lisboa. Um hotel qualquer, apenas suficiente para passar uma noite. Desde o começo, achei que havia algo de estranho nele, mas demorei a identificar o que era: o quarto não tinha uma única janela. Um caixote onde nos fechamos hermeticamente. Certo, não deve ser o único quarto assim, mas não deixa de ser estranho.
Outro hotel em Lisboa. Escolhido a dedo pela localização e pela praticidade. No mínimo, curioso: a recepção não fica no térreo, mas no segundo andar, e precisamos subir até lá de escada para, então, tomar o elevador que nos leva ao quarto. No quarto, pelo menos, não faltam janelas e uma bela vista para a praça. Quando chega a noite e a cidade se aquieta, minha mãe, que está comigo, ouve um ruído insistente e monótono. Um zumbido. Demoro a perceber, mas acabo também ouvindo. Noite após noite, o zumbido se repete. Elaboramos hipóteses. Ondas nas águas do Tejo, o vento uivando entre as sete colinas? Não faz sentido. Barulho de conversas vindas da rua? Definitivamente não, a essa hora não há ninguém. O som do metrô? É a hipótese mais plausível, mas custo a acreditar que do metrô poderia vir um som tão constante e com aquele timbre. Desistimos de explicar. Agora, tempos depois, minha mãe encontra não uma explicação mas uma semelhança: as vuvuzelas! Pois estas cornetas sul-africanas, este enxame gigante, parecem exatamente o que ouvíamos em Lisboa, à noite.
Mas também há hotéis que nos espantam por motivos, se não prosaicos, pelo menos bastante humanos.
Santiago do Chile. A peculiaridade é que, para chegar ao quarto, que ficava no nível do chão, era preciso subir um lance de escada e em seguida descer outro. Mas nada de ruídos sobrenaturais, o que se ouvia era um casal no quarto ao lado entretido numa atividade bem íntima e definitivamente deste mundo...
Cambará do Sul, interior do Rio Grande do Sul. O hotel é uma casa de fazenda excelente e acolhedora. Os sons que se ouve são ruídos do campo, nada mais (e, sim, o coaxar incessante de um batalhão de sapos). A suíte é enorme, os banheiros também... Sim, os banheiros: o quarto tem dois banheiros, exagero que não sei se chegarei a ver em outro lugar.

Jaipur, na Índia. Um hotel (Umaid Mahal) que espanta pelo luxo (é, literalmente, uma mansão) e ainda mais pelo baixo preço, um achado. Estou no meu quarto, já de noite, tomando banho – há um box moderno e confortável, uma ducha potente e... uma porta. O que faz esta porta dentro do box em que estou me banhando? Abro a porta e descubro que estou numa sacada com vista para a rua, na fachada do hotel! Fecho a porta discretamente e volto ao meu banho...
Londres. Não vou descrever o hotel. Mas sei que eu precisava carregar a bateria de meu celular e a única tomada compatível ficava no banheiro. Liguei, pois, o aparelho na tomada, verifiquei no visor que ele estava carregando, e fui dormir. Na manhã seguinte, espantei-me ao ver que ainda não havia completado a carga. Paciência, deixei o celular na tomada o dia inteiro. Voltei no final do dia... E ele ainda estava carregando a bateria. Nem sei mais quanto tempo levei nisso. Até que, por acaso, descobri um detalhe: a tomada só funcionava enquanto a luz do banheiro estivesse ligada. Sempre que eu apagava a luz, o celular deixava de receber carga, e só voltava exatamente quando eu acendia a luz para verificar o andamento...
Celular carregado, sigo em frente. Na verdade, a lista de curiosidades não começa nem termina aqui. Seleciono recortes ao acaso; assim como falei destes, poderia ter falado de outros. Qual viajante nunca se deparou com alguma situação inusitada na sua hospedagem? Ou melhor: qual foi a tua situação inusitada?

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Mariana


De Ouro Preto, vai-se com relativa facilidade até Mariana. São cidades vizinhas, separadas (ou unidas) por cerca de 10 km de estrada asfaltada ou, melhor ainda, de estrada de ferro. Percorri a distância de carro, mas, para quem puder se programar, o melhor talvez seja fazer o percurso no trem turístico – a partir de Ouro Preto, vai-se de manhã e retorna-se à tarde, ficando lá o tempo justo para um passeio de reconhecimento.
Esta proximidade é, a meu ver, tanto benéfica quanto levemente nociva. Torna as coisas mais fáceis, mas também acaba dando a Mariana uma aparência de simples apêndice de Ouro Preto. E aí a comparação é difícil, pois Ouro Preto é uma cidade maior, mais variada e mais imponente. Curioso, a propósito, lembrar que foi Mariana, e não Ouro Preto, a primeira capital mineira. Bem, pode ser coincidência, mas eu notei uma certa disputa entre as duas cidades e um marianense chegou a me pedir que, na próxima visita, eu me hospedasse em Mariana e não em Ouro Preto. Preocupação talvez justa, embora, de um ponto de vista isento, eu não recomende a troca.
O difícil é visitar Mariana sem ter na mente a ideia de Ouro Preto. Nenhum demérito para qualquer uma delas, acontece apenas que, mais que vizinhas, são irmãs, partilham os mesmos ares e a mesma arquitetura.
Como, então, escapar desta xifopagia e descobrir, em Mariana, as suas particularidades? Primeiro, sem dúvida, caminhando, atentando para os detalhes, entregando-se aos poucos à cidade. Verdade que, durante a visita, fui prejudicado por uma forte chuva que me pegou em plena rua e me fez abreviar o passeio. Mas mesmo isso acaba sendo uma particularidade. Afinal, as cidades, inclusive as históricas, são vivas, e a memória do lugar se mistura inevitavelmente à memória dos momentos passados lá, criando uma figura única que se diferencia de todas as demais. Nem que, no caso, seja uma figura molhada de chuva.
E Mariana também tem pelo menos uma atração que, na minha experiência, distingue-a de Ouro Preto e das demais cidades da região. Saindo do centro (fui de carro), estão lá as Minas da Passagem, que dizem ser a maior mina de ouro atualmente aberta à visitação. É um passeio no tempo e no imaginário construído através de filmes e histórias que começa já no meio de transporte para o interior da mina: um trole. Quem nunca viu, num desenho animado, um destes carrinhos sobre trilhos? Lá, embarcar num trole dá direito a uma viagem entre o pitoresco e o inusitado. Com direito a pensar que, na saída, apesar da chuva, teremos a legítima comida mineira nos esperando para o almoço numa cidade que, além de tudo, tem nome de mulher.

sábado, 23 de outubro de 2010

As fontes de Minas

Sabemos que, há alguns séculos, não se falava em água encanada nas casas, isto seria um luxo inimaginável mesmo para as famílias abastadas. Daí a importância das fontes públicas de água, comuns nas cidades e vilas pelo Brasil afora. O interessante é que, em muitos lugares, ainda hoje pode-se ver algumas destas fontes preservadas e imaginar a rotina daqueles tempos, em que a dona de casa (ou, no mais das vezes, um escravo ou escrava) ia diariamente até a fonte buscar água para a cozinha, para a higiene da família, enfim, para todos os usos. Havia também a figura do aguadeiro, profissão herdada dos ibéricos e já desaparecida, que percorria as ruas oferecendo barris de água. Conta-se que os aguadeiros formavam filas nas fontes ou chafarizes, onde se abasteciam, antes de sair apregoando água fresca para a população.
E quem vai a Minas Gerais tem um prato cheio para se observar as fontes remanescentes desta época, pois muitas foram conservadas e algumas até ainda jorram água. Vale registrar algumas delas.


Chafariz da Glória, em Ouro Preto, com as tradicionais carrancas que jorravam água.














Chafariz do Pilar, também em Ouro Preto, um dos que foram restaurados para voltar a fornecer água como no século XVIII. Detalhe para as flores de jacarandá que formam um belo tapete na primavera.
















Chafariz de São José, na pequena Tiradentes, um dos mais imponentes. Servia para abastecimento da população, para as lavadeiras de roupas e também como bebedouro para animais, principalmente cavalos. Notem que possui até mesmo um oratório no centro.














E este obviamente não é um chafariz histórico de Minas, mas sim uma peça do variado artesanato em pedra-sabão daquele estado. Trouxe-o de Ouro Preto, torcendo para que não se quebrasse na viagem, e hoje ele faz parte da minha galeria de lembranças de viagem.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Rica Vila

Trilha sonora para esta crônica: Oh! Minas Gerais

A imagem pode parecer batida, mas Ouro Preto, a antiga Vila Rica, é uma cidade múltipla, como um diamante de faces brutas e lapidadas que apresentasse a quem olha uma miríade de cores, experiências e sensações. Ou, dizendo melhor ainda, como um altar barroco exuberante de dourado que reflete em cada direção um brilho próprio e único.
Cheguei à cidade na expectativa de conhecer a Ouro Preto (ou Vila Rica) colonial. E talvez esta realmente se sobressaia às demais. Mas não há como não notar que ela se divide em outras (ou a ela se somam outras? sutil diferença...): Ouro Preto dos estudantes, Ouro Preto das igrejas, Ouro Preto de Cecília e de Marília (esta, poética, também é diversa da Ouro Preto dos inconfidentes, mais uma sutil diferença), Ouro Preto mineira do tutu, do angu e do pão de queijo, Ouro Preto dos turistas e, claro, dos anfitriões.
Pois, como em praticamente todos os lugares que me surpreenderam positivamente, o que mais me marcou em Ouro Preto (e no restante das Minas Gerais que conheci depois) foi a receptividade de todos com quem eu conversava.
Claro, a cidade é realmente linda, ainda mais quando emoldurada por um arco-íris como o que tive a sorte de presenciar. As igrejas valem a visita. O Museu da Inconfidência é um dos melhores do Brasil. As ladeiras valem todo o fôlego que exigem. O artesanato de pedra-sabão vale o quanto pesa na bagagem, literalmente. Mas, acima de tudo, o que dá o tempero da viagem são as pessoas. Conversar com elas, deliciar-se com o sotaque, sentir que estão de braços realmente abertos. É um cuidado que os mineiros têm e que, quando se trata de culinária, não poderia resultar em outra coisa que não a típica cozinha mineira. É fato que outras plagas também têm receitas e restaurantes maravilhosos; mas em poucos lugares tive tão forte a impressão de que é “difícil errar” quanto em Minas: em qualquer pequeno restaurante que se entre, tem-se a certeza de que a refeição será saborosa, farta e a um preço bastante razoável.
Terminado o almoço, uma porção de doce de leite caseiro. Mais tarde, antes mesmo de sentir fome, a vontade de um pão de queijo: basta então se guiar pelo aroma que vem da primeira padaria e abastecer-se de uma fornada. Gula? Culpa? Fácil esquecê-las, nem que seja olhando para a próxima ladeira e considerando que será preciso energia para seguir em frente. Afinal, está-se em Minas e o doce esforço, como tudo nesta terra, vale a pena.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

O Explorador de Cidades


Explorar uma nova cidade é como preencher uma página em branco. Dá medo. Às vezes não sabemos por onde começar. E a cidade tem o agravante de não permitir borracha nem rasuras: raras vezes se consegue corrigir falsas primeiras impressões.
Ter um mapa ou guia debaixo do braço ajuda. Um livro lido na semana ou no dia anterior, mais ainda. Mas nada substitui o esquadrinhar das ruas que fazemos com nossos próprios passos. E é aí, no instante em que colocamos o pé na calçada, que surge a primeira hesitação: para lá ou para cá? Esta ou aquela rua? Apela-se para a sugestão de algum conhecido ou do recepcionista do hotel, apela-se para a intuição ou para algum pressentimento, mas é preciso apelar. Não é fácil ser um flâneur, como dizem os franceses.
Mas é preciso, e tão impreciso quanto viver não é preciso.
Sigo meus palpites. Às vezes, sim, apelo. Procuro ter na cabeça uma ideia geral da cidade ou do bairro por onde ando mas, isso posto, não me preocupo com me perder: ignorar momentaneamente o nome da rua por onde passo não vai me causar problema algum. E pode trazer surpresas.
Creio que é por isso que gosto tanto de explorar cidades pequenas. Delas, não sabemos exatamente o que esperar. Hoje em dia, todo mundo já foi a Paris e tem profusão de dicas imperdíveis sobre a cidade, mas quem conhece a Vila do Corvo? Nas cidades pequenas, todos os caminhos são válidos, todas as ruelas parecem nos esperar de braços abertos. Nas grandes metrópoles, a sensação de estar perdendo algo anda sempre à espreita, e alguém nos dirá, na volta: o quê, vocês foram a Paris e não subiram na Torre Eiffel? Ou pior ainda: mas eu avisei que aquele restaurante numa ruela desconhecida do Quartier Latin era imperdível, se vocês não foram até lá, voltaram sem saber nada de gastronomia francesa!
Dispenso os conselhos agourentos. Vou a YangShuo, na província chinesa de GuangXi, ninguém vai me dizer o que devo fazer por lá e poderei me perder à vontade. Principalmente com as placas todas escritas em chinês.
Claro, as cidades grandes também valem a visita, não há como dispensá-las. Nestes casos, a estratégia é diferente, não basta flanar. Sou um sujeito curioso e ansioso, o que significa que já terei de antemão uma lista dos pontos que não quero deixar de conhecer: um Corcovado aqui, uma Torre Eiffel ali, um Taj Mahal acolá. O primeiro dia será dedicado a explorar avidamente as tais atrações imperdíveis (que não coincidem necessariamente com as atrações imperdíveis dos guias de viagens). Mas o segundo dia, e talvez outros mais, deverá ter um tempo generoso dedicado a caminhar por aí, sentir o clima e o som da cidade, descobrir lojinhas e livrarias, ousar petiscos. Que graça teria uma viagem se já soubéssemos de antemão tudo o que nos espera?

sábado, 17 de julho de 2010

Chão de Estrelas

Existe, no estado do Rio de Janeiro, divisa com Minas Gerais, um vilarejo que vive de música. Não sei se é o único no Brasil, mas com certeza é um caso digno de nota. De belas notas musicais.
O lugar se chama Conservatória, não chega a ser um município, é pouco mais que um povoado em torno de duas ruas, a “rua que sobe” e a “rua que desce”. Mas é muito mais que isso, porque vive de música.
Poderia dizer que é um lugar parado no tempo, e seria verdade, mas apenas isso não seria motivo de tanto espanto porque, procurando bem, há cidades tão paradas no tempo quanto Conservatória, com arquitetura colonial, jeito de interior, espírito de província. O que espanta, sim, é o modo como tudo gira em torno da música na pequenina Conservatória.
E, já que estamos falando de um lugar parado no tempo, é claro que a música em questão não deve ser nenhum pop moderno, nenhuma corrente pós, ultra, heavy ou trash metal, nem mesmo qualquer das formas de rock ’n’ roll nacional ou importado. Se existe um lugar que nunca ouviu falar de Lady Gaga e outras contemporaneidades, este lugar só pode ser Conservatória. Retrocedamos no tempo. Passemos pelo Tropicalismo, pela Bossa Nova, cheguemos às velhas modinhas que nossos avôs cantavam ouvindo o rádio, nas praças ou nas esquinas, nas noites de luar, ao sereno.
Cheguemos à esquecida tradição das serenatas, que só vemos em filmes. Só em filmes? Em filmes e em Conservatória, reduto último de gente romântica.
Nomes como Pixinguinha, Vicente Celestino, Francisco Alves e Sílvio Caldas são os que continuam vivos nas ruas de Conservatória.
As ruas de Conservatória... É bem provável que, na rua onde moras, ó leitor, as casas e os prédios sejam identificados por números. Nas ruas de Conservatória (a rua que sobe, a que desce e mais alguns fiapos de ruas que ligam uma à outra ou se estendem para fora), as casas não têm números, mas nomes de canções. “Chão de Estrelas”, “Luar do Sertão”, “Carinhoso”, “Maringá”. Imaginem os diálogos possíveis. “Moro no Luar do Sertão”. “Darei um pulo até o Chão de Estrelas”. Uma delícia, não?
Cheguei a Conservatória de ônibus, mas talvez tivesse sido melhor ainda chegar de trem, um trem como o que algum dia foi puxado pela locomotiva conservada orgulhosamente ao lado da estação. Aproveitem a dica, ó fluminenses, e levem o trem novamente até Conservatória. Ou, pensando bem, não sei, não; deixem Conservatória do jeito que está, não mexam naquela caixinha de música.
Quando a noite chegar, façam como todos no vilarejo e se reúnam em torno de uma roda de violões. Façam como fiz. Relevem a possibilidade de não conhecer quase nenhuma das músicas que serão cantadas, elas se tornarão mais familiares à medida que a noite avançar. Sorriam ante a descoberta de que são, provavelmente, os mais jovens de toda a cidade, crianças entre um bando de adoráveis velhinhos. Encantem-se com a descoberta de que estes velhinhos talvez não sejam o conjunto mais harmônico que já ouviram mas são e serão o conjunto mais apaixonado que viram durante muito tempo. As canções são íntimas deles e eles são eternos namorados. E, quando a serenata terminar, voltem para a cama flanando, quase sem perceber que estão assobiando. Ou cantarolando. Afinal, não importa o tom da voz, importa é o tom do coração.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

O mar de Copacabana

Da sacada do meu apartamento em Copacabana, via-se o mar. O apartamento não era luxuoso nem ficava particularmente perto da praia, mas o prédio era alto e o andar era um dos últimos. Assim, da sacada, via-se não exatamente a praia, mas o mar. Com o seu azul delimitado pelo azul do céu, com os navios de carga, um ou outro veleiro e um punhado de ilhas mais adiante.
Era assim que eu preferia o mar. À distância, podia observá-lo e sonhar com ele à vontade, protegido de olhares indiscretos, de vendedores insistentes, de sal e areia grudados no corpo. Amava o mar, não a praia, se é que me entendem. Nos finais de tarde, eu me colocava, debruçado sobre a cidade, cuia de mate entre as mãos, e namorávamos, eu e o mar.
Já se vão alguns anos. Saí de Copacabana e passo por lá bem menos vezes do que alguém poderia supor. Hoje meu apartamento não tem sacada nem vista para o mar. Apesar disso, eu me acostumei e gosto dele, com suas paredes laranjas, sua rua sossegada, sua vista insuspeitada para o outro lado da cidade. Vivemos, eu e meu apartamento, numa união estável.
Outro dia, recebi uma visita que não conhecia o Rio de Janeiro. Transformado em cicerone, saí a mostrar o que a cidade tem a oferecer. E que, claro está, inclui Copacabana como passagem quase obrigatória. Pois fomos até lá. O bairro esperava por nós como espera, dia após dia, por tantos e diversos visitantes. Copacabana parece não mudar. Estendia em nossa direção o calçadão de pedras portuguesas que é seu vestido de ondas. Oferecia o que quiséssemos petiscar, de biscoito Globo a refeições completas. Abria seu tabuleiro nas esquinas, em artesanatos e feiras de frutas. Impunha-se com seus prédios inumeráveis, suas calçadas abarrotadas. Deixava entrever suas rugas num pedinte do asfalto, num bêbado de banco de praça, numa mulher de vida dita fácil. E a todos oferecia o mar.
Antes do mar, o mar de gente. Que é bom de se ver munido de lupa, atentando para cada gota, cada partícula deste universo que é Copacabana. Atletas de fim de semana. Turistas de camisa florida, sandália e meias coloridas. Senhoras idosas e respectivas enfermeiras. Mães de primeira viagem e filhinhos que são uma graça. Ciclistas. Ciclistas que voam rente a nós. Torcedores de todos os times de futebol, inclusive os mais improváveis. Pescadores. Políticos. Profetas.
Para todos, o mar. Sentemos. Sentamo-nos próximo a ele, sentimos. Reencontrei o sol e o sal, o cheiro do mar que não chegava até mim. De pés no chão e olhos abertos, viajei em silêncio. Senti-me também visita, também parte daquele mar. Em ondas que me chegavam naquela tarde como em tantas tardes. Que me faltava, por que não me aproximei antes deste mar? Quero mais uma vez te namorar, e agora é para valer.

Fotografia: praia de Copacabana vista do alto do Pão de Açúcar.

sábado, 29 de maio de 2010

Suvenires: vinho do Porto

Continuando a falar de suvenires de viagem... Não é que eu seja um inveterado apreciador de bebidas, antes até pelo contrário. Acontece que a marca registrada da cidade do Porto é, sem dúvida, o vinho do Porto. E, estando lá, é quase uma heresia não visitar um armazém ou uma loja de vinhos. Como ir a Roma e não ver o papa.
Saibam, então, que eu visitei, ainda que sem muita expectativa (sou um péssimo conhecedor de vinho, quanto mais de vinho do Porto). Meu faro era o de um viajante curioso. Mas todas as minhas expectativas foram superadas ao ver esta garrafa: Porto... Alegre. Porto Alegre! Ora, não me digam que atravessei o oceano para encontrar esta inusitada referência à minha querida cidade numa garrafa de vinho! Não tive dúvida: peguei a garrafa. Ainda perguntei ao vendedor o que ele me dizia daquela marca. Nada excepcional, mas mais do que razoável pelo preço dela, que aliás era bem acessível. Pois creio que a teria comprado mesmo que ele dissesse que o vinho era uma porcaria. Há coisas que são degustadas apenas com os sentidos, mas outras são degustadas também com o coração, não concordam?

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Mind the gap - ou - Brincando de Interpol

Sempre gostei muito de jogos de tabuleiro. Quando criança, cheguei a passar horas debruçado sobre a mesa, ou mesmo no chão da sala, brincando. Havia os clássicos, como ludo e xadrez. E havia, claro, outro tipo de clássicos: Banco Imobiliário, Jogo da Vida, Detetive, Interpol... Lembram de Interpol? Aquele desafio em que um dos jogadores era o procurado Mister X e os demais tentavam capturá-lo, correndo atrás dele de táxi, ônibus, metrô. O tabuleiro era o mapa de uma cidade. A cidade era Londres.
Daí que os anos passaram – mind the gap – e em 2005, quando a caixa de Interpol já estava guardada há algum tempo, surgiu a oportunidade de uma viagem à Inglaterra. Minha segunda ida à Europa. Descobrir Londres, assim, foi como me aventurar num jogo de Interpol, mas um jogo saboroso em que eu não tinha pressa para fugir de eventuais adversários; a única justificativa para pressa era o tempo escasso de que eu dispunha. Embarquei. E naquele jogo, em que eu andava pelo tabuleiro da Londres real, pipocavam imagens emblemáticas, cenas de filmes e de um inconsciente formado ao longo dos anos. Tudo merecia ser descoberto ou, mais precisamente, redescoberto, pois, ainda que se tratasse de novidades, era um universo familiar: os táxis pretos, os ônibus de dois andares, as cabines telefônicas, os guardas da rainha que sequer piscavam o olho. Sem falar nos cartões-postais, como a ponte sobre o Tâmisa e o Big Ben.
Além disso, não faltaram as histórias menos convencionais. Encontrei uma Londres com um gosto peculiar por mistérios e relatos macabros (uma cidade adequada, portanto, à ambientação de Interpol): Jack, o estripador; Henrique VIII e Ana Bolena; o Museu do Terror; o Dead Man’s Corner (algo como “Beco do Homem Morto”).
E histórias mais amenas, não poucas ambientadas em endereços célebres. Quem nunca sonhou em pisar na faixa de pedestres de Abbey Road, atravessando a rua exatamente como os Beatles fizeram? Pois Abbey Road está lá e, por mais prosaico que seja o gesto, tê-la atravessado é daquelas coisas que merecem serem contadas aos netos. Sim, e que tal ir até o número 221B da Baker Street? Reconhecem o endereço? É a morada de Sherlock Holmes. Lá, fui recebido por seu amigo, Dr. Watson em pessoa, que me levou para conhecer a habitação. Na verdade, é um curiosíssimo museu; mas, no meio de tantas histórias reais que parecem inventadas e outras tantas lendas que parecem reais, quem saberia dizer se eu pisava o tabuleiro de um jogo ou o calçamento de uma cidade?

Fotos: alguns encontros londrinos - um guarda na rua... outro "guarda" na Torre... e Sean Connery, ou melhor, a sua reprodução em cera no museu Madame Tussauds.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Suvenires: hulusi, a flauta chinesa

Há algum tempo sinto vontade de falar sobre os suvenires de viagem que tenho guardado. Sendo um coisista compulsivo (o termo, até onde sei, é do Neruda, patrono dos coisistas), material não falta. O difícil talvez seja escolher por onde começar; sinto que o assunto rende não uma crônica, mas uma coleção completa delas.
Começo divagando, explicando que não gosto muito da palavra suvenir. No dia-a-dia, costumo falar lembrança, ou mesmo recordação, mas tanto uma quanto outra têm o inconveniente de não deixar claro se nos referimos àqueles objetos que trazemos de determinado lugar ou situação ou da própria sensação que eles nos evocam. Fiquemos, pois, com a palavra suvenir, que é a pequena lembrança material, símbolo daquela outra lembrança maior, imponderável.
Um desafio é trazer suvenires que fujam do óbvio. Verdade que, muitas vezes, os objetos mais prosaicos já me dão um prazer imenso. Mas, ah, aqueles que são originais, seja pela criatividade ou pela história que guardam, são incomparáveis!
Então vamos lá: eis a hulusi, uma espécie de flauta tradicional chinesa praticamente desconhecida no Brasil, mas não muito difícil de encontrar por lá. Tem um som doce e levemente anasalado e não é um instrumento complicado - tanto que até eu, com limitados dotes musicais, consigo me arriscar razoavelmente a tirar alguns sons dela.
Encontrei algumas hulusi em diferentes cidades da China, desde as mais simples, de plástico, para crianças, às mais sofisticadas. E gostei mesmo desta, feita de bambu e porongo entalhado (sim, porongo, quem diria!) com um bocal de osso. Adquiri-la foi toda uma divertida experiência: pus à prova minhas habilidades de pechinchador no mercado de Panjiayuan, em Pequim. Mesmo normalmente não gostando de pechinchar, na China é quase impossível não fazer isso. Pois fiz, e saí orgulhoso com minha compra a um preço razoável depois de muito regatear.
Outro ponto curioso é que qualquer estação de metrô de lá, talvez por causa dos Jogos Olímpicos, tinha uma forte segurança, com detectores de metais e guardas austeros. Que, ao me ver com aquele estojo a tiracolo, invariavelmente ficavam ressabiados e perguntavam o que eu estava levando. Quando respondia que era um instrumento musical, as reações eram divertidas, com a seriedade muitas vezes deixada de lado em troca da deferência a quem, como chegaram a dizer, atravessara meio mundo para levar consigo um pouco daquela cultura.

domingo, 18 de abril de 2010

Conversa de aeroporto

Viagens, mesmo as mais singelas, rendem histórias. Crianças também. Imaginem agora juntar, na mesma cena, uma viagem e uma criança...
Eu estava no aeroporto, já no finger, ou seja, na ponte que leva até o avião. Prestes a embarcar, mais uma vez, para minha querência. Foi quando notei que, também prestes a embarcar, estavam uma mãe e sua filhinha. A guria não parava de correr para lá e para cá. Numa dessas, desvencilhou-se da mãe por uns instantes e veio para o meu lado. Olhamo-nos uns instantes, eu entretido e curioso, ela com olhos brilhantes e talvez mais curiosos ainda. Aproveitei e perguntei:
- Vais para Porto Alegre?
E ela:
- Não. - o que me intrigou, pois eu sabia qual era o destino do avião. Já imaginando alguma conexão incomum, voltei a perguntar:
- Ah, é? Vais para onde?
A menina:
- Para o avião, ora!
Óbvio, não é? Mesmo assim, não me dei por satisfeito:
- E o avião vai para onde?
- Para o céu, voando, não sabia? - respondeu a menina, enquanto voltava a correr para os braços da mãe e me deixava em suspenso, rindo e sorrindo sozinho.

sábado, 10 de abril de 2010

Supermercado


Atrás de mim, na fila do caixa do supermercado, estão uma mulher e uma guria que parece ser sua filha ou sobrinha. Ouço-as conversando e reparo que a mocinha está de olho nas minhas siriguelas. Porque eu estou com uma bandeja de siriguelas fresquinhas entre as minhas compras. E elas conversam sobre isso. Acabaram de voltar de um sítio onde há um pé de siriguelas. A visão das frutas, agora, reacende a vontade e faz com que a menina peça à outra que compre, compre, compre siriguela! A mulher vai e volta com uma bandeja quando já estou começando a passar minhas compras pelo caixa. A tempo de eu ouvi-la dizer que já não havia siriguelas bonitas na prateleira, que bonitas mesmo só as deste rapaz (ou seja, eu) que soube escolher bem.
Uma pena eu não ter tido coragem de me intrometer na conversa, mas lá vou pela rua pensando comigo. Primeiro, que sorte da guria que tinha um pé de siriguela à mão. Segundo, quem diria que alguém, algum dia, iria elogiar minha capacidade de escolher siriguelas! Afinal, eu fui ouvir falar desta frutinha pela primeira vez aos 22 anos, só fui vê-la mais tarde e desde então posso contar nos dedos as vezes em que tive a oportunidade de prová-la.
Ah, em tempo: saindo do supermercado, andando pela rua, não fui em direção a casa. Eu não estava no Rio de Janeiro, muito menos em Porto Alegre. Fui ao hotel. Eu estava em Fortaleza e tomaria um voo no dia seguinte.
Acontece que, sempre que estou em um lugar diferente, principalmente se for um país diferente, um supermercado acaba sendo parada obrigatória. Encontram-se coisas curiosas e outras interessantíssimas, e não só na parte de comidas. Mas principalmente entre comidas e bebidas, o que às vezes acaba criando um desafio: como levar tudo isso para casa, e sem estragar?
Como? Às vezes arrisco, simplesmente, colocar tudo entre as roupas. (Com o cuidado básico de sempre ter à mão umas sacolas plásticas para embrulhar as compras e assim evitar desastres.) Se forem roupas de frio e se a viagem for curta, elas já garantem um isolamento térmico razoável. Uma outra técnica interessante é embrulhar os perecíveis em plástico bolha: funciona incrivelmente bem. Agora, se for preciso mais cuidado, o jeito é apelar para um isopor ou bolsa térmica (tenho uma, dobrável, que vai vazia dentro da mala e volta cheia sempre que visito o Nordeste). Já trouxe até sorvete assim.
Sorvete? Sim, porque a oferta de sorvete não é igual em todo lugar. Assim como a oferta de frutas: a tal siriguela, além de cajá (ou taperebá), açaí (ou juçara), cupuaçu, tamarindo, graviola... São frutas que, no Nordeste e ainda mais no Norte, existem numa quantidade inimaginável a alguém do Sul. Em todas as formas possíveis: além da própria fruta, há polpas, doces, sorvetes, bombons, sucos, iogurtes... Ao menos para mim, fica difícil controlar o impulso de sair comprando tudo.
Se a viagem é para São Paulo, os locais de compra podem ser o Mercado Municipal e o bairro da Liberdade. Na última ocasião, trouxe desde doces até cogumelos. Se estamos falando da Europa, são os queijos, presunto e vinhos. Na América do Sul de forma geral, erva-mate. Isso sem contar, claro, as pequenas surpresas, porque nelas é que muitas vezes está a graça. Encontrar coisas que provavelmente não traremos para o Brasil, como caracóis congelados em Lisboa, só isso já rende uma bela história de viagem. Assim como conversas entreouvidas entre carrinhos de compras.

Nota: siriguela é essa fruta da foto, que já encontrei em diferentes cidades do Nordeste e, particularmente, no supermercado que fica atrás do hotel em que costumo me hospedar em Fortaleza. Como eu nunca fotografei uma siriguela, e não tenho nenhuma à mão, tirei a imagem da Internet - no caso, daqui.

domingo, 7 de março de 2010

O Grande M

Ele não é unanimidade, mas está em toda parte. Uns o desprezam, outros não vivem sem ele. Da praia de Copacabana às veneráveis cidades chinesas, de Paris aos Estados Unidos, de Londres a Nova Déli, lá está ele. Cintilante, o Grande M.
McDonald’s.
Não pretendo discorrer sobre o McDonald’s como símbolo de ideologias políticas e econômicas nem sobre o valor nutritivo de um Big Mac. O que interessa a um viajante inveterado, em última análise, é que, seja no centro comercial de uma cidade cosmopolita ou às portas de uma fortaleza medieval, corre-se sério risco de esbarrar com ele.
O Grande M, mais onipresente que o Grande Irmão previsto por Orwell.
Claro que sou fascinado pela oportunidade de desvendar um pouco que seja de culturas diferentes quando viajo. Claro que isso inclui provar a culinária local. Ainda quero escrever mais sobre as experiências sensoriais, entre curiosas e encantadoras, que uma simples refeição pode proporcionar.
Mas confesso que também existem alguns momentos em que precisamos de um certo descanso: seja do bolso, quando os restaurantes convencionais são muito caros, ou do paladar, quando a comida local é exótica ou apimentada demais. Ou simplesmente quando olhamos sem cessar à nossa volta e não encontramos um único lugar que pareça oferecer uma refeição razoável e confiável. É nestas horas que ele nunca decepciona: dobramos a esquina e lá está o Grande M. Vamos a ele com a vantagem de já saber o que pedir, o que esperar e quanto pagar. Aliás, o preço de um Big Mac costuma ser um bom indicativo para quem quer saber se tal cidade é um destino caro ou se tal moeda é mais forte que outra. Já vi até um estudo econômico sobre isso...
Enfim, voltemos. Se não me engano, comecei a dar mais valor ao Grande M durante minha viagem pela Espanha. Nada contra a culinária espanhola, que por sinal é deliciosa. Acontece que os espanhóis almoçam tarde, o que faz com que em algumas cidades seja pouco provável encontrar um restaurante aberto antes das três horas da tarde. E como fica a fome no meu caso, brasileiro pouco habituado a este horário e que, ainda por cima, tinha acordado cedo para aproveitar a cidade? Dê-lhe McDonald’s! O Grande M, mesmo na Espanha, parece estar aberto a qualquer hora e ainda tem a vantagem de oferecer um banheiro muitas vezes providencial. Lembro-me de estar lá, torturado pela fome e pelo sol em Sevilha (camisetas locais dizem que a equação E = m.c2 significa España = mucho calor2), balbuciando ao enxergar, quase como uma miragem, o letreiro amarelo brilhante: ah, o Grande M!
Na Índia, o que me levou ao McDonald’s foi uma conjunção de fatores: era, digamos assim, um restaurante confiável (a Índia não é um lugar em que se encontra facilmente um bom restaurante); era um porto seguro contra a comida exótica (por mais que eu tenha gostado da comida indiana, há momentos em que se quer algo mais comum); e era um lugar onde eu poderia satisfazer uma de minhas curiosidades. A saber: seria verdade que, na Índia, não vendem Big Mac? Sim, é verdade. No lugar dele, no cardápio, está o Maharaja Mac, bem parecido, mas feito de carne de frango. Há também um Vegetarian Mac. E, nas paredes, cartazes que dizem algo como: “Este restaurante se orgulha de não servir carne bovina.”
Não é curioso que mesmo o McDonald’s, propalado símbolo do capitalismo e do neoliberalismo, acabe se curvando a algumas particularidades locais?
Agora, o lugar onde eu mais apelei para o Grande M foi mesmo a China. Até me arrependo um pouco de não ter provado certas iguarias chinesas, mas não sei se eu teria aguentado: a comida de lá é mesmo exótica (nenhuma semelhança com a comida chinesa que se vende no Brasil), a ponto de não se ter ideia do que está no prato. Ou, quando se tem ideia, a coisa não parece ser das melhores, como bicos de galinhas e insetos. Sorte minha que, por mais que a China continue se dizendo comunista, já está aberta o suficiente para permitir, em todos os lugares por que passei, a presença ostensiva do Grande M.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Vintém de Cobre e os Fucas Invasores

Era assim no antigamente, naqueles velhos reinos de Goiás.
Cora Coralina
Suponho que nem todos iriam gostar de uma cidade como Pirenópolis. Alguns provavelmente sentiriam falta do agito. Mas, ora bolas, de que serviria a unanimidade, ainda que ela existisse? Melhor deixar como está: Pirenópolis pequenina como um vintém de cobre, Pirenópolis grande como o coração da goiana Cora, autora de Vintém de Cobre.
Pirenópolis é assim: uma daquelas cidadezinhas que dão a impressão de caber na palma da mão mas que, como uma relíquia, guardam lindas surpresas. Adoro esses pedaços de mundo que permitem passeios entre calçamentos pé-de-moleque e paredes coloniais. Adoro as histórias de antigas tradições que estas paredes contam: é como se ouvíssemos o ano inteiro o galope das cavalhadas. Cruzar um batente e confirmar que aquela comida simples do interior é, mesmo, insuperável. Andar um pouco e descobrir que o rio se transforma em cachoeiras. Ah! Não admira que cenários assim inspirem os violeiros: por mais previsíveis que possam ser as rimas, são sinceras as canções.
E, no meio de tudo isso, há, sim, surpresas. Eu comecei a suspeitar quando reparei que, nas ruas e nas fotos, apareciam mais fucas do que seria razoável. Não poderia ser coincidência. Muitos fucas, às vezes vários deles enfileirados ao longo da calçada. Seria uma ilusão? Uma invasão? Por mais que uma cidade nostálgica combine com um carro nostálgico, eu não conseguia entender. E os fuquinhas não paravam de surgir. Bem, o que descobri, depois de me ver cercado deles, é que, por algum motivo, a pequena Pirenópolis é conhecida como a cidade do fusca e sede do Pirifusca - Clube do Fusca de Pirenópolis.
Minha visita já faz mais de um ano e não pude ainda retornar, entre outros motivos porque Pirenópolis, a meio caminho entre Goiânia e Brasília, está um tanto longe de nós do Sul/Sudeste. Mas, quando voltar, já sei com que carro quero entrar na cidade.

Notas
Vintém de Cobre é um dos livros de Cora Coralina, poetisa maior do estado de Goiás e notavelmente da cidade de Goiás, não muito longe de Pirenópolis.
Fuca é como chamamos no Rio Grande do Sul este bólido que em outras partes do Brasil chamam de fusca e que em Portugal chamam de carocha. Por estranho que possa parecer a quem esteja acostumado à palavra fusca, parece que fuca está mais próxima da origem do vocábulo, que seria a corruptela da pronúncia alemã de VW.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Uns mais iguais que os outros (será?)

Uma das coisas que mais me fascinou na China foi conversar com as pessoas que eu encontrava lá. Mesmo que eventualmente a língua trouxesse algumas dificuldades, colhi histórias incríveis. Conversei, por exemplo, com uma senhora da Mongólia Interior que vendia suvenires na Grande Muralha e caminhou ao meu lado por um bom pedaço: ela me falou de sua família, de seu pais, de sua língua... Momentos que valeram muito mais que qualquer bugiganga que eu possa ter comprado.
Outra pessoa com quem conversei bastante foi a recepcionista da pousada em que me hospedei em Guilin. Era uma chinesinha tagarela que não perdia oportunidade de falar comigo. Perguntava do meu país e das minhas impressões de viagem e também me dava uma porção de dicas sobre a cidade. Aconteceu, porém, que fiquei lá durante alguns dias e, durante este tempo, fui tendo a impressão de que nem sempre ela me tratava da mesma maneira. Às vezes, falava pelos cotovelos e com um sotaque surpreendentemente claro; noutras vezes, ficava quase calada, como se não soubesse muito bem como se comunicar comigo.
O mistério se esclareceu apenas no último dia. Fiquei um pouco envergonhado, mas também pude rir comigo mesmo ao matar a charada: não só era uma moça, eram duas moças que se revezavam na pousada! E eu tive a sorte de encontrar as duas juntas na recepcção, pois, de outra maneira, não sei quanto tempo levaria para descobrir isso sozinho! E eu já estava ficando orgulhoso da minha habilidade em distinguir rostos orientais, que até então se mostrara bastante satisfatória...
Lembrei na hora do que havia me confessado, dias antes, um outro chinês: ao encontrar alguns ocidentais, ele costumava reparar nas roupas, pois era a melhor forma que conhecia de diferenciar uma pessoa da outra. Afinal, ele me dissera, os ocidentais têm todos a mesma fisionomia!