terça-feira, 31 de janeiro de 2012

A viagem do samovar

13 190 quilômetros de avião. 1 010 quilômetros de ônibus ou carro. 150 quilômetros de trem. 20 quilômetros de barco. Total de 14 370 quilômetros, o que não chega a ser uma volta ao mundo (a linha do equador mede 40 000 quilômetros), mas é uma distância bem considerável.
Cinco países, incluindo dois estados brasileiros. Dez cidades, sem contar aquelas em que esteve só de passagem. Três continentes diferentes.
E o currículo poderia ter sido ainda um pouco maior se, durante três dias, não tivesse ficado à minha espera no "guarda-coisas" do aeroporto Atatürk.
Conheço uma pessoa que, quando viaja, leva consigo o boneco de um pequeno gnomo. Esse gnomo, que usa roupas coloridas e segura uma maleta, aparece nas fotos que ela tira dos lugares que visita. É uma referência a Amélie Poulain e, acima de tudo, uma maneira simpática e divertida de dar um toque de exclusividade às fotos (poucas coisas são mais chatas que viajar sozinho e não ter a quem pedir para bater uma foto... ou ter de pedir ajuda a um passante que nunca faz a foto que se estava imaginando).
O gnomo da minha amiga é pequeno, bem menor que o do pai de Amélie Poulain. Ótimo para acompanhá-la aonde quer que ela vá.
Meu gnomo é um samovar. Mede exatamente 55 centímetros de altura e felizmente (?) pode ser desmontado em três partes. As duas partes menores cabem na mala que tinha vindo vazia do Brasil; o corpo do samovar, só mesmo numa sacola de mão.
Eu sinceramente não sei de outro samovar que tenha viajado tanto nem de forma tão variada. Phileas Fogg, o inglês de A Volta ao Mundo em 80 Dias, teria inveja do meu samovar.
Meu samovar já visitou uma das mais importantes universidades do Brasil, já dormiu numa caverna, já foi quase esquecido numa esteira de raio-x de aeroporto, já andou de bonde e de vaporetto (o barco que funciona como ônibus nos canais de Veneza).
Hoje, orgulhosamente, ele serve chá num apartamento do Rio de Janeiro. Está feito o convite aos amigos para virem conhecê-lo.

sábado, 28 de janeiro de 2012

E a viagem termina como começou

Veneza, cá estou eu no último dia de férias, extraindo prazeres dos pontos que já conheço na cidade e procurando outras joias inéditas para mim. Não é difícil num lugar como Veneza.
Eis que me ocorre visitar a feira de Rialto. Seria uma feira de rua absolutamente comum se não fosse Veneza. O Canal Grande está ali do lado, o leão de São Marcos me observa do alto, os feirantes gritam em italiano-veneziano e estas colunas que sustentam a abóbada carregam o peso de séculos. Com isso tudo, Rialto deve ser, sem grande esforço, a feira de rua mais cara da Europa.
E pensar que há algumas semanas eu percorria os bazares de Istambul. Completo um círculo histórico: as duas cidades estão intimamente ligadas. Veneza foi um império grandioso graças ao comércio com o Oriente, através da Turquia. E Constantinopla/Istambul floresceu graças ao comércio com o Ocidente, representado pelos venezianos. Não por acaso, Veneza entrou em declínio quando os ibéricos passaram a fazer concorrência através de uma rota alternativa. No meio tempo, Veneza aprendeu com Constantinopla e vice-versa. As fachadas em estilo oriental que se veem ao largo dos canais percorridos pelas gôndolas não são acaso. Cortinas chamadas de venezianas ou de persianas (este nome, possivelmente, um equívoco histórico), também não. Marco Polo (que nasceu na Croácia, numa época em que a República de Veneza controlava a região) saiu de Veneza e passou por Constantinopla para chegar ao Oriente. Nada mais conveniente que eu, depois de visitar Istambul, redescobrisse Veneza.
Num lugar qualquer desta minha aventura, li uma frase de Orhan Pamuk, o Prêmio Nobel turco, dizendo que, ao voltarmos de viagem, nunca encontramos um lugar igual ao que deixamos, pois nós mesmos mudamos no caminho. A frase faz sentido e já deve ter sido dita por mais gente antes dele. Voltando para casa, eu poderia dizer: a viagem termina, como começou. Mas virão outras.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Pula

Pula é uma das principais cidades da península da Ístria, no noroeste da Croácia, mas não chega a ser muito grande. Pode-se percorrê-la razoavelmente em um dia - foi o que eu tive, um dia, embora é claro que com mais tempo teria aproveitado melhor a cidade e a região.
Pula, como toda a Ístria, tem uma forte relação histórica e geográfica com a Itália. A região foi literalmente parte da República Italiana até 1947. Antes, havia sido dominada pelos venezianos. Antes ainda, fora parte do Império Romano.
E aí está um dos traços mais notáveis de Pula. A cidade tem mais construções romanas que muitas cidades na Itália. Seu famoso Anfiteatro é apenas um exemplo - mas um grande e belo exemplo. Atualmente ele é utilizado para espetáculos musicais, o que deve ser incrível; eu apenas dei uma volta por ele (sem as hordas de turistas que se costumam ver em atrações desse porte) e adorei.
Boa parte da população da cidade fala italiano. Aliás, até as placas das ruas são bilíngues, em croata e italiano.
E Pula tem o mar, uma bela marina, passeios de barco até o arquipélago que é um parque nacional na sua vizinhança... As cidades ficam mais belas quando têm o mar, mesmo no inverno. Pula também tem ligação direta com Veneza através de ferry-boat, mas não nesta época do ano: meu próximo destino terá de ser alcançado de ônibus, o que não chega a ser um grande inconveniente.

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Chocolate quente

"Vruća čokolada". Chocolate quente. Eis algo importante de se saber em croata. Entra-se num café ou numa confeitaria e pede-se "vruća čokolada", uma maravilha no inverno daqui. Querendo, pode-se ainda aproveitar para provar uma das tortas típicas da Croácia, ou então um "kroasan" (croissant) ou uma "strudla" (tipo de strüdel).
Mas voltemos à vaca fria, digo, ao chocolate quente. O ponto digno de nota é que ele é diferente do que se costuma fazer no Brasil. O chocolate quente croata é mais grosso, quase como se se estivesse bebendo um chocolate fundido. De fato, quando esfria um pouco, uma "nata" de chocolate chega a se formar. Uma delícia.
E o melhor é que eu aprendi um segredo simples: caixinhas mágicas do Dr. Oetker! Os supermercados vendem, em caixinhas ou em envelopes, o pó para preparar "vruća čokolada". Basta misturar com leite e aquecer. Da primeira vez, olhei com certa desconfiança para aquele pó mágico, mas o resultado é realmente bom.
Difícil vai ser ficar sem "vruća čokolada" no Brasil!

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Como estar em casa na Croácia

Com tantos lugares interessantes para se conhecer mundo afora, não costumo repetir um destino, ao menos não nessas viagens longas. Mas vim pela segunda vez a Rijeka, na Croácia. Ou, mais precisamente, a Matulji, uma pequena cidade perto de Rijeka.
É a primeira vez que repito um destino por essas bandas. E acabou sendo interessante: descobri que ainda havia muito a ser explorado nos arredores. E havia os lugares de que eu me lembrava e que me deixaram com uma sensação boa de familiaridade, de estar como que em casa.
Rijeka é uma cidade média ou mesmo grande para os padrões locais. Ainda assim, é pequena para um brasileiro acostumado a cidades bem maiores. Ela tem pelo menos três coisas em comum com Porto Alegre: um porto (se não me engano, é o maior da Croácia), uma importante rua para pedestres (a "Rua da Praia" deles se chama Korzo) e uma relativa proximidade com um país vizinho. Rijeka tem muito da Itália no dialeto e nos costumes e chegou mesmo a fazer parte da Itália anos atrás, assim como Porto Alegre guarda similaridades culturais com nossos vizinhos do Prata.
E duas coisas Rijeka (que se chama Fiume em italiano) tem em comum com o Rio de Janeiro. A primeira é o nome, afinal Rijeka (ou Fiume) significa precisamente "rio". Outra é... o carnaval. É ao estilo europeu, diferente do nosso, claro, mas ainda assim é suficiente para encher a cidade de turistas em fevereiro ou março.
O carnaval ainda não chegou, mas a cidade já está decorada com bandeiras e máscaras. As lojas vendem tecidos para fantasias. E eu caminho pela Korzo, reconhecendo os lugares que vi há um ano e descobrindo outros novos. Ou me surpreendendo com a diferença entre o sotaque (ou dialeto?) daqui e o de Zagreb - coisa que eu não tinha percebido antes por estar menos habituado à língua e por não ter estado ainda em Zagreb.
E vou até Matulji, praticamente um subúrbio de Rijeka. Lugar calmo entre o mar e as montanhas, de ruas estreitas e casas com pilhas de lenha acumulada para estes dias de inverno. Em Matulji encontro a razão para voltar a um lugar, razão que me parece tão óbvia: rever bons amigos. Pode haver motivo melhor?

sábado, 21 de janeiro de 2012

Quantas cores (e quantos chineses) cabem numa paisagem?

Embora Dubrovnik deva ser a cidade croata mais conhecida pelos estrangeiros, os croatas dizem que Plitvice é o lugar mais bonito de seu país. Sem desmerecer Dubrovnik ou qualquer outra cidade, é bem possível que eles estejam certos: Plitvice é incrível! Em que outro lugar se vê tantas cores na mesma paisagem quanto aqui?
Trata-se de um parque com uns tantos lagos ligados entre si por quedas d'água e cercados de árvores e montanhas. Como se não bastasse a paisagem ser linda, percebi que ela também muda conforme a época do ano.
Vim no inverno. Não estava nevando, mas os caminhos, as árvores, tudo estava coberto por uma grossa camada de neve. Em alguns pontos, os lagos estavam parcialmente congelados. Claro que isso torna o cenário ainda mais pitoresco para um brasileiro como eu, pouco afeito a neve (na qual, aliás, rapidamente aprendi a caminhar, é um pouco como andar numa praia de areia fofa).
Na maior parte do tempo, o parque estava incrivelmente vazio, não se via ninguém. Ou quase ninguém - lá pelas tantas, encontrei um australiano (alguém tão exótico quanto eu nessas paragens, vindo de um país grande, quente e distante) e seguimos juntos. Praticamente demos a volta no parque enquanto íamos conversando.
Ele iria tomar um ônibus para Zagreb no final da tarde, estava preocupado com o horário quando começamos a voltar. Mas no ponto praticamente oposto à entrada há um cais onde se pode tomar um barco até o outro lado, e chegamos justamente quando o barco (o último do dia) vinha atracando. Agradecemos à nossa sorte e embarcamos. Um barco grande, de cem lugares, todos vazios. Não havia mais nenhum passageiro, chegamos a fazer piada sobe isso. Faltando poucos minutos para o horário do barco partir, chegaram quatro chineses. Meu amigo comentou que os turistas asiáticos sempre andam em bando e que esse ou era bem pequeno ou havia gente perdida por aí. Então vimos, ao longe, na trilha que leva até o cais, algumas pessoas para as quais os chineses começaram a gritar. Eram outros chineses, do mesmo grupo, que chegaram e também embarcaram. Dali a pouco, vieram mais chineses. Depois, mais ainda. Depois, um dos chineses (o guia?) foi falar com o capitão do barco, apontava para uma lista, ainda faltava gente. Ficamos bom tempo esperando a chegada de uma longa fila de chineses que ia aparecendo na trilha e embarcando.
Meia hora depois do horário previsto, embora ainda faltasse gente, o barco soltou as amarras e partiu. Depois de se afastar do cais - adivinhem - mais um chinês apareceu na trilha e - adivinhem! - o barco deu meia-volta para buscá-lo! A essa altura, meu amigo já tinha perdido o ônibus e estávamos procurando a câmera escondida, só podia ser pegadinha. Então o chinês embarcou e pensamos que iríamos finalmente seguir em frente, mas nem nos surpreendemos mais quando apareceram outros tantos chineses que foram entrando calmamente, uns parando para tirar fotos, indiferentes aos tímidos apitos do barco. Até que o último chinês, de bengala, subiu a bordo, e tivemos certeza de que era o último porque não cabia mais ninguém.
A travessia durou 15 minutos, a espera tinha durado uma hora. Vim para o hotel e o australiano conseguiu pegar o próximo ônibus para Zagreb, mas perdeu o avião que tomaria lá em direção a Split.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Existe vida após um coração partido?

Zagreb é uma cidade de muitos museus. Entre eles, o mais original de que eu já tive notícia: o Muzej Prekinuth Veza ou Museum of Broken Relationships. Isso mesmo, algo como Museu dos Relacionamentos Terminados.
É fantástico. Acho que todo mundo deveria visitar esse museu em alguma fase da sua vida. Faz a gente rir bastante, chorar um pouco e, principalmente, pensar em como cuidamos das nossas relações. Eu só não recomendaria a visita a alguém que esteja emocionalmente muito fragilizado, a não ser que queira usar o museu como rito de passagem.
Muitos dos objetos ali expostos são exatamente isso: símbolos de ritos de passagem. Por exemplo, um machado com que certo alemão foi terapeuticamente destruindo todos os objetos que pertenciam à ex. Violento, eu sei. No museu há todo tipo de coisas, divididas por categorias - emotivas, vingativas, românticas, eróticas, saudosas. São objetos comuns doados por pessoas comuns, sempre com alguma história associada.
Aprende-se que os relacionamentos terminam por uma série de motivos. Incompatibilidade de interesses, distância física, desencontros, morte.
Junto a um dos objetos, a declaração: "tu me falavas de amor, tu me deixavas louca, mas o único que não querias era ir para a cama comigo. Apenas descobri o quanto me amavas depois que morreste de AIDS."
Outro objeto, o que mais me tocou, é a carta inocente escrita por um menino para uma menina que ele recém conhecera - durante a fuga precipitada de uma Sarajevo em chamas. A guerra separou os dois, que nunca mais se viram, e ela nunca pôde devolver as fitas cassetes que o menino havia emprestado (porque, na pressa, a menina não conseguira trazer suas próprias fitas).
Há uma mala ("eu sempre soube que uma pequena mala seria suficiente"), seios postiços (presente dele para ela, delicadamente convidada a usá-los durante as noites de sexo e... está explicado porque a relação terminou), vestido de noiva e livro de casamento, citação de Fernando Pessoa na parede, extratos de um "fora" em tempo real no Twitter, sangue, suor e lágrimas.
Viver é se relacionar, sangrar, suar, chorar. De alegria e de tristeza. Viver é rir e sorrir. Recomendo.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

A vida em torno

Zagreb, na Croácia. Eis uma cidade sobre a qual tenho achado difícil escrever.
Provavelmente porque não é um lugar de rótulos minimalistas. Não vejo como enquadrar Zagreb num único adjetivo.
Afinal, bem ou mal, trata-se da capital de um país, e as capitais costumam ser uma mescla de gentes, sotaques, culturas. Diferentes formas de viver gravitam em torno das capitais. Zagreb não foge à regra.
Tenho conversado com gente do interior que veio tentar a vida aqui. E com gente que, mesmo nascida e criada em Zagreb, quer tentar a vida no exterior. E também com gente de Zagreb que não tem a menor vontade de ir embora.
Zagreb não tem as cores e os reflexos de Ljubljana, não tem as praias do litoral croata, não tem o exotismo de Istambul. Mas tem um charme que está nas pequenas coisas. Não é uma cidade para uma grande-angular, é cidade para ser vista de lupa.
É uma cidade grande para os padrões do país, mas é menor que a maioria das capitais dos estados brasileiros. Tamanho bom para explorar em detalhes.
E não tem muitos turistas. Ao menos não nesta época do ano. Aqui no albergue, há apenas duas pessoas hospedadas - eu e um rapaz que não cheguei a descobrir de onde é. Mais cedo, entrei numa loja bem no centro da cidade e acabei conversando um bom tempo com a moça que trabalhava lá. Falamos sobre a vida na Croácia e no Brasil, sobre o clima (o que é diferente de falar sobre o tempo), economia, trabalho, estudos, literatura. Ela me mostrou o livro de um autor croata que recém tinha comprado num sebo e que estava lendo. Lia na loja: segundo me contou, eu era a segunda pessoa a entrar ali durante toda a manhã...
Pelo menos uma coisa me pareceu familiar em Zagreb. A cidade tem uma grande praça, a Jelačićev Trg, típico cartão-postal de cidade média, com monumento ao centro, que é o centro de confluência dos bondes que circulam aqui. A praça fica bem ao lado da Cidade Alta (Gornji Grad). São detalhes que me lembraram Lisboa e suas praças - o Rossio, a Praça da Figueira... Mas uma coisa interessante sobre a praça de Zagreb é que o monumento (homenagem ao tal Jelačić, antigo governador croata) serve de ponto de encontro para a população. Literalmente: basta uma caminhar pela praça para perceber umas quantas pessoas em volta da estátua. Sempre tem alguém esperando alguém, e sempre tem alguém que chega (curiosidade: aqui os homens se cumprimentam com beijo no rosto, mas um homem e uma mulher se cumprimentam apertando-se as mãos). São os encontros de Zagreb. Como nas cidades de interior, aquelas onde a vida gira em torno da praça.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Mundos de cá e mundos de lá

Em Ljubljana, aos domingos, acontece uma feira de rua de antiguidades e quinquilharias, o brique deles. É muito menor que o Brique da Redenção de Porto Alegre, mas não deixa de ser interessante. Principalmente por um motivo curioso: essas feiras são pontos de encontro de pessoas e objetos nostálgicos, e nostalgia, aqui nos Bálcãs, significa quase sempre nostalgia do comunismo. Em outras palavras, encontra-se todo tipo de lembranças, livros, insígnias e documentos da antiga Iugoslávia e mais alguma coisa da União Soviética (embora a Iugoslávia, apesar de ter um governo comunista, desde o final da Segunda Guerra não fosse alinhada com o bloco soviético).
Os feirantes, aqui, são mais educados e muito mais comedidos que os da Turquia. Mesmo assim, alguns puxam assunto, começam a falar quando me supõem interessado em determinado artigo ou apontam outros parecidos...
E aqui um parêntese. Talvez vocês saibam que tenho estudado a língua croata. O esloveno está para o croata assim como o espanhol para o português - são parecidos, mas definitivamente são línguas diferentes. Na Eslovênia, decidi me esforçar para me fazer entender na língua deles ou, ao menos, em algo parecido com um "croatoveno" - um "portunhol" de croata e esloveno. Apostei no fato de que as línguas são razoavelmente parecidas e também no fato de que, tendo vivido num país de maioria servo-croata, pelo menos os mais velhos deveriam saber algo de croata. E, bem ou mal, a verdade é que me fiz entender.
Assim, quando um daqueles senhores da feira me abordou (eu estava entretido com alguns livros eslovenos da época comunista e fazendo cara de inteligente), respondi que estava só olhando. Ele falou mais alguma coisa e continuei respondendo no meu "croatoveno". Então ele perguntou se eu era croata ou russo. Bingo! Nunca na vida tinha pensado que me tomariam por croata ou por russo, ainda mais tendo por base a língua que falo (ou tento falar). Mas, enfim, disse a ele que eu era brasileiro, com um pouco de medo de que o princípio de conversa descambasse para futebol e samba. O senhor pensou um pouco e me falou: "hum, Brasil! Mas eu não falo espanhol!" Sorri amarelo e ele se corrigiu: "quero dizer, português! Vocês falam português, não?" Depois: "sabe como é, a África do Sul fica muito longe daqui... Ah, eu disse África do Sul? Eu quis dizer América do Sul!"
Eu apenas sorri. Resolvi dar um crédito a ele, afinal quantos de nós sabemos apontar a Eslovênia num mapa ou dizer qual língua se fala lá?
E o senhor continuou falando e me mostrando um cartaz do marechal Tito, dizendo de vez em quando entre dentes: "puxa, Brasil!"

domingo, 15 de janeiro de 2012

Uma cidade em forma de coração

Se me perguntarem como eu vim parar na Eslovênia, acho que precisarei de bastante tempo para explicar. A Eslovênia não é um destino popular no Brasil. E a resposta de por que eu vim até aqui envolve uma amizade de 15 anos, um interesse crescente pela história complexa da ex-Iugoslávia (acho que poucos lugares condensam tantas culturas, religiões, orgulhos e conflitos quanto os Bálcãs), um voo cancelado, uma curiosidade linguística e, claro, os relatos e as fotos de um lugar que é uma pequena joia.
Certo, expliquei nada ou quase nada, mas a ideia era essa mesmo: descobrir a Eslovênia é como montar um quebra-cabeça com partes que, a princípio, não vemos como poderão se encaixar. Mistura de língua e cultura eslavas com o relevo dos Alpes, um país pequenino que parece guardar tantas similaridades com seus vizinhos iugoslavos e, ao mesmo tempo, lembra muito o que imaginamos de países como a Áustria e a Alemanha.
Mas não se pode chegar a uma conclusão sobre o país em tão pouco tempo. Por outro lado, pode-se, por exemplo, formar uma opinião (ainda que possivelmente prematura) sobre a capital e porta de entrada.
Ljubljana definitivamente não é uma cidade grande, mas é uma cidade simpática. Não se veem hordas de turistas se acotovelando em praças ou museus. E os turistas que se veem, na sua maioria, falam esloveno.
Ljubljana, ao menos nesta época do ano, tem uma luz que me surpreendeu. Uma paleta de cores de outono ou de inverno que faz a cidade parecer uma pintura. Ninguém precisa de Fotoshop para suas fotos de Ljubljana, a cidade é mesmo dessa cor que se vê. E as sombras... A luz do inverno parece dar a toda hora do dia um encanto de pôr-do-sol. Lindo, mais lindo ainda nos reflexos que o rio devolve à cidade.
Colorida, Ljubljana é uma cidade em forma de coração. No sentido figurado, que é o mais bonito: seu nome significa algo como "a amada" e está relacionado com o amor na maioria das línguas eslavas.
Além disso, há o dragão, mascote da cidade que está por todos os lados. Embora pareça não combinar com o amor, é um dragão simpático, personagem de uma série de lendas. A primeira e mais sisuda envolve Jasão e os argonautas. Outra diz respeito à ponte que é ladeada por quatro estátuas do dragão: segundo a lenda, o dragão balança o rabo quando uma mulher virgem passa pela ponte. Longe de mim querer falar qualquer coisa das eslovenas mas, até onde pude ver, o rabo do dragão pareceu tão imóvel quanto, bem, uma estátua.
Outra lenda, ainda, diz que o dragão de Ljubljana aterrorizava a cidade, até que conheceu uma dragoa, casaram, tiveram um filho, e o filho, em vez de seguir a tradição familiar de impor medo aos humanos, resolveu virar o primeiro dragão artista de que se tem notícia. Conto de fadas? Pode ser. Mas que outra coisa se esperaria de uma cidade com uma luz dessas?

sábado, 14 de janeiro de 2012

Mais uma vez o samovar

Despedindo-me da Turquia, voltei a Istambul, onde faria uma conexão para Ljubljana. Ao descer em Istambul, resgatei o samovar, que eu havia deixado três dias antes no guarda-coisas do aeroporto (o que me poupou do incômodo de transportá-lo durante aqueles dias).
Segui então para o embarque, o que significa passar pelo serviço de imigração e por procedimentos de segurança mais exaustivos que os do Brasil (principalmente se considerarmos que, no frio, é bem mais trabalhoso ficar tirando e colocando casaco, botas etc.). Uns minutos no "free shop" (ora, vejam! Na Turquia também chamam de "free shop" o que em inglês se conhece como "duty free") e então me dirijo ao portão de embarque. Começam a chamar e eu embarco, junto com os demais passageiros, no ônibus do aeroporto que vai levar até o avião. Porém, ao invés de partir, o ônibus fica parado uns bons minutos. O que estará esperando? Algum passageiro atrasado, talvez? Sei é que me impaciento um pouco, depois procuro me distrair, passar o tempo. De repente, dou um salto: o samovar! O samovar não está comigo! Refaço num segundo todos os meus passos e concluo: deve ter ficado no raio-x.
Desço correndo do ônibus, vou até a porta de vidro do terminal do aeroporto, peço para o funcionário da empresa aérea abrir e explico que quero entrar porque deixei uma bagagem no raio-x. Ele olha para mim, pede meu cartão de embarque e diz para eu ser rápido. Corro, chego ao ponto onde é feita a inspeção de segurança e reconheço de longe: ali está a sacola com o samovar! Explico a situação a um dos guardas, ele pede que eu descreva o conteúdo da sacola, confere, sorri e a entrega para mim. Volto para o portão de embarque, torno a subir no ônibus, respiro. Um instante depois, um senhor chega esbaforido, suando como se tivesse corrido uma maratona - certamente é por ele que estavam esperando. Embarcamos enfim no avião que vai levar a mais uma etapa do nosso giro pelo mundo, eu e o samovar.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Coisas que não farei na Turquia

Assistir à dança dos dervixes rodopiantes (sema)
Parece pitoresco, interessante, diferente. O problema é que se trata de uma cerimônia religiosa vendida como apresentação para turistas. E eu acho que existe um limite para certas coisas, pagar para ver a sema equivale a pagar para ver um padre distribuir a comunhão. Eu veria os dervixes se fosse convidado por um amigo turco, mas essa possibilidade é remota...
Ir a um banho turco
Há casas de banhos tradicionalíssimas e provavelmente lindas, mas definitivamente não me agrada a ideia de pagar para outro marmanjo me dar banho e me esfregar!
Sobrevoar a Capadócia de balão
Essa eu até faria. Estava disposto a superar meu medo de altura e a investir nesse que é um passeio tradicional, embora caro. Há tempos pensava em fazer um voo de balão. Porém, o tempo não ajudou enquanto estive na Capadócia! A começar pela noite em que cheguei, castigada por uma ventania que literalmente impediu meu avião de pousar em Kayseri. Nos outros dias, a coisa melhorou um pouco, mas só um pouco. Resultado: quase nenhum balão se arriscou. Com a maioria dos voos cancelados, vi a Capadócia do chão mesmo, o que já não é pouca coisa!

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Pingos nos is

Esta é a primeira vez que venho a um país sem antes realmente me esforçar para aprender pelo menos um pouco da sua língua. Pudera. Há um limite para minha memória e para minha capacidade de aprendizado! Considerando que nos últimos meses tive de me dedicar a outros estudos e que esta viagem engloba quatro países e quatro línguas diferentes, acabei estabelecendo algumas prioridades. E sempre há o inglês para quebrar o galho quando necessário...
Isso não quer dizer que não tive curiosidade ou não me interessei em saber um pouco de turco. Mergulhar numa outra língua sempre é enriquecedor, ainda mais quando se trata de uma língua e um país tão cheios de história.
Sim, fiquei no básico: olá (o onipresente "merhaba", palavra que serve para quase tudo aqui), bom dia, por favor, muito obrigado, mais aquelas palavras que são figurinha fácil em cardápios, cartazes e avisos. Mas também aprendi coisas curiosas. Por exemplo: até o século passado, o turco era escrito com o alfabeto árabe. Foi Atatürk que, como parte do seu plano de expandir a educação no país, propôs a adoção de uma variante do alfabeto latino. Com dois argumentos: primeiro, que os sons da língua turca seriam de representação mais natural pelo nosso alfabeto que pelo alfabeto árabe; segundo, que a mudança facilitaria o aprendizado, sendo portanto uma maneira de combater o analfabetismo.
Suponho que Atatürk estivesse certo, mas imagino a revolução que isso deve ter causado, ainda mais quando por trás de tudo há a questão religiosa (o árabe, afinal, é o alfabeto "oficial" do Corão). E nós que já sentimos a diferença quando retiraram alguns acentos da nossa gramática!
Ah, os acentos! Ou melhor, os sinais gráficos. O turco está cheio deles: tremas, cedilhas e outros, seja acompanhando vogais ou consoantes. O ç, por aqui, tem um som de tch. O s, ao receber um cedilha (ş), tem seu som modificado para um ch.
Porém, o mais curioso, na minha opinião, é o i, que pode ser com ou sem ponto, tanto maiúsculo quanto minúsculo: i, İ, ı, I. A maior cidade do país, por exemplo, chama-se İstanbul (e não Istanbul) em turco.
Notem que o que usamos na nossa língua é um meio-termo: minúscula com ponto, maiúscula sem ponto. Digitar endereços de Internet num computador turco dá trabalho, o ı (sem ponto) ocupa o lugar onde costumamos encontrar o i (com ponto).
Mas a questão não é só de digitação, é gramatical mesmo. Aquele pinguinho no i, que em português é praticamente só um adereço, pode mudar a pronúncia e o significado de uma palavra em turco. Acaba sendo divertido reparar que em algumas palavras usa-se o ponto e em outras não.
E assim vão-se descobrindo os detalhes mais inesperados... Mas, por ora, "sonra görüşürüz" - ou seja, até logo!

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Sabores da Turquia


A Turquia, sem chegar a ser um país de culinária demasiado exótica para nossos paladares, tem os seus sabores marcantes. Prová-los, como aliás provar a comida de praticamente qualquer país aonde se vá, é uma experiência única.
Em primeiro lugar, o chá. Está em todas as partes, servido em taças que lembram pequenas tulipas. Na maioria das vezes, chá preto, mas também há chá de maçã e de outras variedades de frutas ou flores. O chá acompanha refeições, intermedia negócios, simboliza hospitalidade. É comum ver as pessoas, na rua, com uma taça de chá na mão. Quase como um chimarrão turco.
O café, o famoso café turco, preparado em típicas cafeteiras metálicas, assume às vezes o lugar do chá.
Mas a bebida padrão para acompanhar um lanche, um sanduíche ou um almoço é o ayran. Ayran nada mais é que um iogurte levemente aguado ao qual se adiciona... sal. Costumo gostar de iogurte, mas ainda não me acostumei a uma bebida salgada, então tenho dispensado o ayran.
Para completar a lista de bebidas, o sahlep, que é como se chama o caldo doce e leitoso que vendem nas ruas, principalmente nas noites frias. Descobri que, além de canela, ele leva essência de orquídea! Comprei um litro e vou levar para casa!
Passando para a comida, o primeiro posto não poderia ficar senão com o onipresente kebab. Eu nunca tinha provado um no Brasil, mas aqui é tão prático e barato que é fácil ceder à tentação. O mais comum é o kebab servido em pão turco (pide) e às vezes é bem apimentado.
Além do kebab, há a kafta (köfte), o bolinho de carne (mas que pode ser até mesmo vegetariano), um prato popular no almoço. Sopas também são comuns, e a minha preferida é uma de berinjela que provei em duas ocasiões.
O café da manhã invariavelmente inclui (ao menos nos lugares por onde passei) pão, queijo, ovo, tomate e pepino, além de chá ou café.
Com relação à sobremesa, o povo daqui tem um verdadeiro orgulho do lokum, que chamam de "delícias turcas" e dizem ser mundialmente famosas. Eu não me lembro de ter ouvido falar antes... É uma espécie de caramelo que pode levar diversos sabores diferentes e às vezes é misturado com castanhas, pistache ou outro tipo de semente. A aparência é linda, bem colorida. O gosto é bom, mas está longe de ser meu doce favorito.
Ah, sim, para completar, os sucos que são espremidos na hora e vendidos em todas as esquinas: de romã ou de laranja.
No final das contas, é um cardápio bem variado, não?

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Aventura sobre duas rodas

Hoje me ocorreu alugar uma bicicleta. Vinte liras por uma magrela (para usar uma gíria que não é minha) até as três horas da tarde.
Pareceu - e realmente é - uma boa forma de conhecer um pouco da Capadócia. Os vilarejos estão separados por distâncias de três ou quatro quilômetros. Esse também é o percurso suficiente para que a paisagem mude significativamente. Considerando que as estradas, na maioria das vezes, são razoavelmente planas, é território perfeito para uma bicicleta.
Em Pasabagi, impressionantes estruturas de turfa e basalto. Em Zelve, mais paisagens para deixar meus amigos geólogos babando (ah, os afloramentos!). Em Çavusin, uma simpática vila que contém nada menos que uma cidade antiga e abandonada, feita de vários andares escavados na pedra. Incrível!
Já no caminho de volta, tomo um desvio para visitar mais um dos vales que aparecem no mapa.
É uma estrada de chão batido que passa pelo curioso "Vale do Amor", onde o que se vê são, bem, esculturas naturais de pênis gigantes!
Decido continuar pela estrada de terra, que vai sempre descortinando vistas diferentes e que, segundo o mapa, termina bem perto da cidade onde estou hospedado.
Agora, lembrem que nevou no dia anterior, o que significa que o chão está ou molhado ou coberto por gelo. Além disso, o que era uma estrada de terra vai se transformando numa estreita trilha por onde não passa mais que uma pessoa por vez. Há momentos em que seguir adiante é realmente difícil. Volta e meia dou uma olhada no GPS do iPhone (esse brinquedinho tem valido cada centavo que paguei por ele), até que estou avançando bem. Um dos meus medos era molhar os pés, mas, graças a Deus, minhas botas são melhores do que eu pensava. Então surge o pavor dos exploradores de trilhas: de repente, a trilha some! perde-se num emaranhado de árvores caídas talvez num dos vendavais dos dias anteriores. Olho em redor, porém não há alternativa a não ser voltar. Meu medo passa a ser não conseguir fazer o caminho a tempo, mas ao menos percebo que este medo é exagerado. Embora o vento tenha aumentado, o caminho de volta parece mais fácil, certamente porque agora a trilha vai se alargando à medida que avanço. Chego a Göreme com uns bons minutos de folga e com tempo suficiente para almoçar (estou faminto!) antes de ir para o aeroporto.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Homens das cavernas e caprichos da natureza

Toda a região da Capadócia, no coração da Turquia, é marcada por cânions e por formações rochosas parcialmente erodidas de formatos singulares. Essas formações são de pelo menos três tipos: as relativamente intocadas pelo homem e que compõem a paisagem ao longo dos vales e das estradas; as escavadas e habitadas séculos atrás pelos antigos povos da região, agora abertas como museus; e as escavadas mais recentemente, hoje utilizadas como moradias, lojas etc. Nesse momento, por exemplo, estou hospedado num quarto que é literalmente uma caverna na rocha.
Isso dá à Capadócia um ar pitoresco que é difícil de descrever. Caminho pela cidade e vejo as construções "normais" se misturarem às casas-cones-cavernas. Vou mais além e vejo cavernas que foram habitadas há séculos ou milênios atrás. A Capadócia chegou a ter uma grande comunidade cristã. Isso dá à região um outro atrativo interessantíssimo, que é sentir como os primeiros cristãos viviam, o que não é mais possível em Roma, por exemplo, onde a memória original foi suplantada por basílicas e templos grandiosos. Aqui as igrejas são simples capelas na rocha. Sem contar as cidades subterrâneas - totalmente debaixo da terra, capazes de abrigar milhares de pessoas e, segundo dizem, local onde se esconderam muitos dos cristãos na época em que eram perseguidos.
Só uma coisa poderia tornar todo esse cenário ainda mais inusitado: neve. E não é que nevou? Os campos e as formações rochosas ficaram impressionantes. Não, não consigo descrever mais; deixo-os com uma foto da paisagem.

domingo, 8 de janeiro de 2012

Mustafa

A igreja e o escritório de Mustafa ficam em duas
destas formações rochosas de Göreme, Capadócia.
A Capadócia é cheia de igrejas. Mas não estou falando de igrejas com as que estamos acostumados a ver, aos montes, em nossas cidades. Refiro-me a antigas igrejas bizantinas esculpidas em cavernas areníticas. É difícil descrever. Dizer que são vestígios da época em que S. Paulo, S. Jorge, S. Cosme e S. Damião andaram por aqui aumenta a dramaticidade, mas não é esse o ponto. As antigas igrejas da Capadócia são impressionantes por si só, pelo que têm de história, de arte e de capricho da natureza.
Caminhando hoje de manhã, cerca de um quilômetro fora da cidade, topei com El-Nazar, a primeira das tais igrejas. Fui me aproximando aos poucos (toda esta região merece ser vista com calma). Quando cheguei, um senhor veio ao meu encontro, cumprimentou-me e me indicou uma outra construção esculpida na rocha e identificada como "ticket office". Convidou-me a entrar e entrou logo em seguida. Cheio de mesuras, indicou-me uma cadeira enquanto atiçava o aquecedor a carvão para fazer frente ao gélido inverno da Anatólia. Pôs-se então calmamente a preparar chá, volta e meia me falando alguma coisa.
Notei que ele sabia quase nada de inglês pela maneira como respondia às minhas perguntas com um sorriso ingênuo e repetindo "yes, yes". Reparei que eu também fazia a mesma coisa: balançava a cabeça a cada frase em turco que ele me dirigia e das quais eu entendia muito pouco.
Confesso que minha primeira impressão tinha sido: lá vou eu perder meia hora para comprar o ingresso de algo que verei em no máximo cinco minutos. Mas não foi bem assim.
Aos poucos, pude reparar melhor em meu anfitrião. Mustafa, bigode à turca, terno e gravata, "botton" de Atatürk na lapela, nascido e criado nos arredores, torcedor do Besiktas. Apontou-me no jornal que o Galatasaray, o outro time de Istambul, tinha aplicado uma virada de 4x2 na noite anterior (o que me surpreendeu porque eu havia visto um relance da partida e o Galatasaray perdia por 2x0). Em seguida deixou o jornal de lado, com um gesto e uma frase que só podiam significar "são apenas as mesmas notícias de sempre".
O chá ficou pronto, Mustafa serviu cuidadosamente duas taças (reparei que a minha era um pouco mais fraca que a dele), abriu a gaveta, tirou um pacote de bolachas e me ofereceu uma. Enquanto tomávamos chá, reparei no ambiente, um misto de cozinha, sala e escritório. Além do aquecedor a carvão, uma espécie de fogão a gás; um radinho de pilha que ele sintonizou em alguma estação de música turca; um calendário na parede (são comuns por aqui os velhos calendários com uma folhinha para cada dia do ano); ao fundo, um retrato de Atatürk.
Interior da igreja.
Terminamos de beber e Mustafa ofereceu mais chá, mais bolachas. Recusei e, um tanto constrangido, insinuei: visitar a igreja? Ele sorriu e - ah, sim, a igreja! Sacou um bloquinho de ingressos da gaveta. Paguei e nos levantamos, saímos e ele me acompanhou à igreja. No caminho, um dos muitos cachorros turcos fez graça para Mustafa e ele respondeu. Perguntei se o cachorro era dele e me disse que sim, mas não sei se ele entendeu a pergunta.
A igreja vale a visita, mas vale mais acompanhada por Mustafa. Ele sabe cada detalhe das pinturas nas paredes e é engraçado vê-lo apontar e fazer mímicas: o número 12 com as mãos, e entendo que são os apóstolos; uma sutil agachada e então um salto como quem quer voar, eis a Ascenção. Mustafa me abraça e percorre cada canto da pequena igreja comigo, nenhuma das imagens fica de fora. Pergunto se ele é cristão ou muçulmano e ele responde, orgulhoso, que é muçulmano. Digo que visitei algumas mesquitas em Istambul e ele leva a mão ao peito em sinal de aprovação.
Na saída, penso em dar a ele uma gorjeta e levo a mão ao bolso, mas desisto ao descobrir que só tenho umas moedas insignificantes. Não quero ofendê-lo. E, a julgar pelo sorriso dele ao se afastar, acho que faço certo. De qualquer maneira, muito obrigado, Mustafa Efendi.

sábado, 7 de janeiro de 2012

O chato profissional

Existe um termo na língua inglesa, "tout", cujo equivalente em português eu não conheço, mas acho que poderia muito bem ser "chato profissional".
Quem viaja para certos países da Ásia já se deparou com ele. Pelo que ouvi contar, também é frequentíssimo no norte da África. E, claro, está presente em outros lugares, incluindo o Brasil.
"Tout", o chato profissional, é aquela pessoa que não nos deixa em paz, que insiste em tentar vender alguma coisa ou oferecer um serviço, recomendar uma loja ou um restaurante. Que se acha o máximo, sabe mais que nós sobre nossos próprios desejos. E, claro, é nosso amigo do peito.
No Rio de Janeiro, o chato profissional aparece quando desembarcamos no aeroporto ou na rodoviária e tenta nos empurrar uma corrida de táxi. Também é mais frequente que os urubus ao redor do Corcovado - aos pés do Corcovado, digo, disputando os turistas que lá aparecem. Vergonha para nossa cidade mais turística.
O chato profissional está presente na China e, se deixarem, é capaz de seguir um turista por vários quilômetros da Grande Muralha.
O chato profissional, na Índia, é o sujeito mais persistente que conheci na vida, capaz de oferecer de tudo - de tapetes a chaveiros, de cigarros a mulheres - mas não de atender ao meu único desejo, que era ser deixado em paz.
O chato profissional, na Turquia, é bem mais comedido. Está ausente de alguns bairros, onde consegui a graça de me camuflar no meio da populacão local, mas não deixa de estar presente nas zonas mais turísticas. Infelizmente para ele, já estou razoavelmente treinado na arte de ignorá-lo - a única arma razoavelmente eficiente que conheço nesses casos. Ao menos aqui, costuma dar certo, não cheguei a me incomodar. Embora às vezes seja curioso: hoje, enquanto um chato profissional me abordava ("hello, my friend, what can I do for you, what are you looking for?"), virei o rosto para o outro lado e segui atravessando a rua. Achei que ele tinha desistido, mas não: gritou para um colega do outro lado da rua, que veio, "how can I help you?", com a cara-de-pau característica. O chato profissional tem muitos rostos, todos iguais.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O Pai dos Turcos

De certas maneira, os turcos possuem duas religiões. Uma é o Islamismo que, claro, convém respeitar. A outra, que também não deve ser contrariada de forma alguma, é o ataturquismo.
Kemal Atatürk. Literalmente: Kemal, o Pai dos Turcos. Foi o fundador da República da Turquia, presidente do país nas décadas de 1920 e 1930 e incentivador de uma série de reformas relevantes no sentido de modernizar o país - incluindo a separação entre religião e estado e a adoção do alfabeto latino como uma das formas de facilitar o aprendizado da escrita.
E daí?
O que acontece é que, mesmo hoje, essa figura progressista e ditatorial, espécie de Getúlio Vargas turco, está por todos os cantos. Ai de quem desrespeitar Atatürk. Seu rosto está em todas as cédulas de dinheiro (cada cédula tem duas efígies: Atatürk de um lado, "um qualquer" do outro). Está em fotos nas paredes de lojas, restaurantes, prédios. Em bandeirinhas empunhadas pelas crianças. Em cartões-postais vendidos nas bancas.
Qualquer turco sabe de cor o exato instante da morte de Atatürk (9h05 de uma manhã de novembro) e, segundo contam, todo ano o país pára nessa data para reverenciar seu herói.
Atatürk está em estátuas nas praças, no nome do principal aeroporto, do maior estádio de futebol e da ponte mais central de Istambul. Uma lei proíbe que se fale mal de Atatürk. Tenho um pouco de medo das unanimidades, mas quem sou eu para contrariar a lei?

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Allahu akbar

Quem nunca esteve numa cidade de maioria islâmica talvez tenha dificuldade para imaginar o chamado dos muezins. Cinco vezes ao dia, a voz deles (ajudada ou não por auto-falantes) enche a cidade convocando para a oração. É muito mais notável que o sino de das nossas igrejas, porque é sincronizado - o chamado está em qualquer lugar e (dizem) também no rádio, não há como não ouvir.
Hoje atendi ao chamado dos muezins e visitei uma mesquita no momento da oração.
É uma experiência interessante, que eu recomendo a todos os que têm mente aberta. Eu já havia entrado em algumas mesquitas para conhecê-las por dentro, mas entrar para acompanhar um pouco do ritual muçulmano é outra coisa.
Primeiro, há uma fonte para as abluções, ou seja, a purificação ritual do corpo com água. Não é muito fácil se molhar assim, ao ar livre, no inverno turco!
É preciso tirar os sapatos. No caso das mulheres, é preciso também cobrir a cabeça, mas os homens estão dispensados disso (não precisam ou não devem cobrir a cabeça? Fiquei em dúvida ao lembrar da quantidade de gente com toucas e chapéus para se proteger do frio. Pois alguns homens cobrem a cabeça na mesquita, mas com uma touca simples de significado religioso.).
Entra-se na mesquita propriamente dita através de uma cortina. Uma das coisas que mais chamam a atenção é a estrita separação: homens na frente, mulheres num nicho à parte. Dependendo da mesquita, um nicho bem escondido, que não as deixa ver nem serem vistas. Mesmo entre os homens, há uma separação que não entendi bem - uns na frente, outros numa área mais ao fundo (onde procurei ficar, o mais discretamente possível). Por toda a volta, pequenas prateleiras de madeira onde os fiéis colocam os sapatos.
De vem em quando, algum atrasado chega apressadamente e se junta aos outros. Lá na frente, um imã faz a oração em voz alta. No meio das suas palavras, reconheço o tempo todo "Allahu akbar" - Deus é grande. É a senha para todos se prostrarem. O tempo todo fica-se ajoelhando, prostrando-se, levantando-se. O imã não está de frente, mas de costas para os fiéis. Todos voltados na direção de Meca, certamente.
Da decoração da mesquita, muita coisa chamou minha atenção. O tapete, quente, cobrindo todo o chão como um consolo aos nossos pés descalços. Ao lado do "mihrab" (o nicho onde se posta o imã), um relógio de pêndulo, desses que estamos acostumados a ver na casa da avó mas não num templo religioso. Mais atrás, ao lado de onde eu estava, uma estante de livros - detalhe simpático, nem sempre os livros ganham a posição de destaque que merecem.
Aliás, a recepção aos não-muçulmanos varia, dependendo de uma série de fatores, da indiferença à simpatia. Não me atrevi a visitar um templo imponente como a famosa Mesquita Azul na hora da oração. Numa mesquita menor, considero que fui mais bem recebido do que esperava, por um senhor que me indicou onde eu deveria ficar e corrigiu uma gafe que quase cometi (ao não saber onde largar os sapatos). Quando saí, agradeci a ele em turco, usando uma das poucas palavras que aprendi nessa língua. Ele sorriu e respondeu também em turco, não entendi nada, mas sorri também.
No final das contas (e de uma cerimônia muito mais curta que uma missa católica), só fiquei com pena das mulheres, separadas sem poder ver nada. Mas suponho que estejam acostumadas e que elas enxerguem algum sentido nisso. Este momento, para os muçulmanos, parece mais uma culto individual que uma cerimônia coletiva em que se vê e é visto, tanto que, ao final, as pessoas vão saindo aos poucos, cada uma no seu momento.
Mas sabe o que foi que eu fiquei pensando? É que todo padre devia entrar em uma mesquita de vez em quando. Assim como todo imã devia entrar em uma igreja.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Um samovar

Quando escrevi a crônica anterior, sobre os bazares, acabei não detalhando o objeto que comprei porque percebi que isso seria toda uma outra história. Pois, um samovar.
Em termos de praticidade de transporte, um samovar é algo assim como um berimbau com uma jaca de brinde. A legitima mala sem alça.
Eis a foto de um samovar. Não é o meu, o meu está envolto em plástico-bolha dentro de uma sacola do tamanho da minha mala.
Um samovar é um utensílio originário da Europa Oriental e da porção ocidental da Ásia, particularmente presente nas culturas russa e turca. A utilidade de um samovar é preparar e servir chá.
Um trambolho desses para fazer chá!
Para fazer do chá um ritual, eu diria. E eu gosto disso. Tenho gostos inusitados, incluindo gosto por "lembranças" um tanto surpreendentes.
Os samovares tradicionais funcionam a carvão. O meu aceita carvão, mas alternativamente pode ser ligado na eletricidade - acabo de lembrar que a voltagem aqui é diferente da do Rio, ou seja, terei de comprar um adaptador assim que chegar, mas isso é o de menos.
Claro que, enquanto negociava o samovar, eu pensava nele decorando minha sala, esquentando o chá que servirei às visitas assim que voltar para casa e até mesmo aquecendo a água do chimarrão. Nessas horas, ninguém pensa nas possíveis dificuldades de se atravessar três continentes com um troço desses a tiracolo. Claro que não pensei nos sete voos, três ônibus e um trem que ainda vou ter de pegar. Vai ser engraçado.
Agora, estou apostando pelo menos na possibilidade de usar um armário alugado no aeroporto de Istambul. Isso me pouparia de carregar o samovar em quatro voos internos, o que já é bastante coisa.
Depois, só vou torcer para que ele chegue inteiro ao Brasil. Alguém aí vai querer chá?

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Uma experiência no Grand Bazaar

Ao que parece, uma imersão na cultura de Istambul, para ser completa, deve incluir uma ida ao Grand Bazaar, o principal (e tradicionalíssimo) local de compras da cidade. Pois lá fui eu, porto-alegrense curtido em anos de visitas ao Brique...
Valeu-me mais meu aprendizado prévio em termos de compras na China e, principalmente, na Índia. Não que o Grand Bazaar seja caótico como a Índia; achei-o até relativamente organizado perto do que eu esperava (mas não se compara com nenhum "shopping center", claro).
O que logo se percebe, no entanto, é que fazer comprar no Grand Bazaar envolve todo um ritual - e por isso não é exagero chamar a ida às compras de experiência. Pois experimentemos, mas com certo método, como convém ao lugar.
Primeiro, um volta como quem não quer nada, tirando fotos e escolhendo discretamente o que comprar.
Ao abordar um vendedor (ou, mais provavelmente, ser abordado por ele), já sei que o ritual teve início. Ele pergunta de onde sou, respondo que do Brasil, ele capricha no português para dizer "oi, tudo bem?" Pergunto quantas línguas ele fala, ele me diz que nove - fora o português, que está recém aprendendo.
O vendedor convida para sentar e oferece chá. Faz parte da experiência, sempre vão oferecer chá, quer eu compre ou não. É curioso, aliás, que o serviço de chá seja terceirizado: o chá não é feito na loja, mas vem trazido de bandeja por alguém chamado discretamente pelo vendedor. Em todo o bazar os entregadores de chá andam para lá e para cá.
Depois de jogar conversa fora, de dar uma olhada no produto e de fazer algumas perguntas sobre ele, vem o momento crítico: pergunto o preço.
Nessa parte, é importante saber pechinchar, o que inclui ter coragem para baixar o preço pedido pela metade. Se ele me diz que custa 200 liras, ofereço 100. Ele diz que a mercadoria vale 500, elogia o material, ressalta que é feito à mão... Ofereço 120 e ressalvo que não pago mais que isso. O vendedor diz que gostou de mim e é meu amigo, que insiste em fazer negócio comigo, sugere 150. Insisto nos 120, e mais, quero pagar com cartão. Ele momentaneamente se vira para receber outro cliente, oferece chá etc., então volta para mim: 150? Eu respondo: 120. Ele faz um gesto com a cabeça, chama um ajudante para ajudar a embalar, passa o cartão, aperta minha mão efusivamente, dizendo que foi um prazer fazer negócio comigo.
Bem, não sei se aquilo valia 100 liras, saio com a forte impressão de ter pago mais caro do que devia... Mas ainda é barato para os padrões brasileiros e, afinal, não tinha mesmo jeito: eles têm uns 2000 anos de experiência na arte de negociar, nós temos 500 anos de experiência na arte de ceder ouro em troca de espelhinhos.
Um pouco depois, vou ao Bazar das Especiarias. Esse, sim, é mais assustador. Os gritos sugerem que logo alguém vai sair esfaqueado, parece uma briga feia, mas trata-se apenas dos pregões dos vendedores.
Se lá no Grand Bazaar se tratava de compras grandes e médias, aqui se trata das coisas menores do dia-a-dia: queijos, peixes, castanhas, tâmaras, pistache, chás, doces, temperos... Especiarias, claro. Não quer dizer que também não haja colares, roupas, utensílios domésticos... Mas quer dizer que há muito mais gente e, principalmente, mais turcos (ou seja, menos turistas). Compro chá. Desta vez não tive tanta paciência para pechinchar, em compensação foi bem mais barato. De qualquer maneira, saio com a impressão de que, se existe um paraíso para compras, ele fica em Istambul. E, se existe um inferno para compras, também fica no mesmíssimo lugar.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Aromas de Ocidente e Oriente

Nós, seres humanos, não somos preparados para lidar com o desconhecido. Confesso que, quando tomei a decisão de vir para a Turquia, fiquei empolgado, mas também um pouco apreensivo. Apreensão que só crescia quando tomei o avião e quando sobrevoei o Mármara, ali a uma braçada da Ásia, já na aproximação final para o pouso em Istambul.
Pois o pouco que vi da cidade até agora tem me conquistado. Istambul é... difícil impor um veredicto a uma cidade, qualquer que seja ela. Sou tentado a descrever Istambul assim: é uma Roma com aroma de especiarias. Quero dizer, uma cidade que transborda história e que, além disso, possui um tentador toque de exotismo sem, no entanto, passar da conta.
Afinal, quantos países podem se dizer uma democracia laica de maioria muçulmana?
Quantas cidades já mudaram tantas vezes de nome e de tradições, mas sempre tendo papel de protagonista na História?
Quantas cidades podem dizer que abraçam dois continentes, não apenas geográfica, mas também culturalmente?
A primeira coisa que chamou minha atenção foram os minaretes das mesquitas. Depois, o intrincado quebra-cabeças da língua turca (não estou acostumado a viajar para um lugar em que não conheço o idioma). Às 18h, os muezins começaram a chamar para as orações - tão diferente e tão parecido com os sinos das nossas igrejas. Tão, tão parecido.
Nessa hora, escurecia e começava a fazer frio. Descobri duas coisas indispensáveis na noite de Istambul. A primeira é um par de luvas. A segunda é uma bebida vendida em todo canto por duas liras (a lira turca, por uma bondade divina, vale praticamente o mesmo que um real, dispensando cálculos mentais de conversão). Trata-se de algo parecido com um cuscuz branco (não consegui descobrir de que é feito), doce, temperado com canela e servido quente em copos de isopor. Aquece as mãos e queima a língua. Eis Istambul, desafio e convite aos sentidos.