quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ônibus particulares e táxis compartilhados

Desde a nossa chegada em Suðuroy, a mais meridional das Ilhas Faroe, sabíamos que precisávamos resolver como ir embora. Quer dizer: já tínhamos definido que pegaríamos o barco que saía dali a dois dias, às 7 h da manhã. O problema era que o ancoradouro de onde sai o tal barco fica fora da cidade, a uns 5 km de onde estávamos hospedados.
Assim, no dia seguinte, tentamos prestar atenção, mas não parecia haver ônibus que levasse até lá - pelo menos não um ônibus que saísse tão cedo quanto precisávamos. O lugar não é grande, ou pelo menos não é muito povoado - a ilha inteira tem menos de 5 mil habitantes e a cidade, Tvøroyri, não chega a 2 mil (o que torna impressionante o fato de que o barco tenha uma capacidade reportada de 975 passageiros!).
Foi então que, passando pelo centro da cidade, vi um prédio grande da empresa que opera tanto o barco quanto as linhas de ônibus das Ilhas Faroe, e resolvi entrar para pedir informações. Havia uma mulher num escritório a quem expliquei a intenção de tomar o barco das 7 h do dia seguinte e perguntei se haveria um ônibus até lá. Ela, num primeiro instante, respondeu que achava que não havia ônibus tão cedo; depois, pareceu pensar um pouco mais, pediu licença por um instante e foi consultar alguém numa outra sala. Voltou em seguida dizendo que ficássemos tranquilos, que poderíamos pegar o ônibus ali em frente mesmo, às 6h50.
Ficamos mais aliviados, porém não inteiramente satisfeitos. Estávamos com um carro alugado, que iríamos devolver. E então teríamos de caminhar cerca de um quilômetro, com as malas, para pegar o ônibus de manhã cedo. Mas a própria pessoa que nos alugou o carro (sim, o carro fora alugado de uma pessoa, e não de uma empresa!) ofereceu a solução: poderíamos ir dirigindo até o porto. Chegando lá, bastava estacionar o carro e deixar as chaves dentro, que ele iria mais tarde buscar o veículo. Como são simples as coisas nas Ilhas Faroe! Fizemos como ele dizia e, tudo certo, em poucos minutos já estávamos embarcando. No caminho, ainda passamos, de carro, pelo ônibus parado, confirmando que as indicações da moça do escritório tinham sido precisas... Apesar de que não vimos o ônibus saindo (e ele não tinha como sair senão pelo caminho que fizemos). Só então tive a revelação: não havia ônibus regular naquele horário, eles haviam programado um ônibus especialmente para nos levar, para atender ao nosso pedido... Tão óbvio e tão de acordo com o modo como as coisas funcionam nas Ilhas Faroe. E nós, com o pensamento egoísta dos estrangeiros, não percebemos isso nem nos demos ao trabalho de avisar que, afinal, o ônibus não seria mais necessário...
Mas, enfim, partimos e chegamos a Tórshavn, a capital. Lá, curiosamente, teríamos um problema parecido: pegar um ônibus de manhã cedo a tempo de embarcar no nosso voo para o continente. Como Tórshavn é uma cidade maior, seria mais fácil. Vi na tabela de horários um ônibus que saía às 5h50 e chegava no aeroporto às 6h40; um tanto cedo para nosso voo, que saía às 8h15, mas aceitável.
Foi então que acordamos cedo, sem ter direito sequer ao café da manhã do hotel, e fomos até o terminal de ônibus, para encontrá-lo deserto. Esperamos um pouco, mas comecei a me preocupar quando já era mais de 5h50 e nada de ônibus... Nos cartazes do terminal, acabei descobrindo que a falha fora minha: aquele horário só valia de segunda a sexta, e estávamos num sábado!
Como não parecíamos ter alternativa, fui até o ponto de táxi que funcionava ao lado e pedi um táxi; disseram-me que esperasse, que já estava vindo um carro para nos levar ao aeroporto. Aquele ponto era uma espécie de terminal aonde os taxistas vinham comer alguma coisa ou usar o banheiro e, embora houvesse alguns deles por ali, aparentemente não estavam trabalhando ou já tinham outras corridas agendadas. Esperamos, então. Mas os minutos passavam, e nada... Com minha impaciência nem um pouco faroesa, resolvi perguntar novamente pelo táxi. Disseram para esperar só mais um minuto, o motorista acabara de chegar... Perguntei qual era o motorista e a resposta, tão espontânea, não poderia ser mais inusitada: aquele ali fora, de cabelo escuro. Eu olhava e só via gente de cabelos nordicamente loiros e olhos azuis!
Mas enfim achei o motorista (loiríssimo para os nossos padrões) e embarcamos, depois de ter combinado um preço por pessoa. Dali a pouco, do nada, o carro num hotel para pegar outro passageiro. Fomos entendendo que o táxi para o aeroporto é compartilhado - daí o preço por pessoa.
Chegamos bem e com uma tranquila antecedência para o voo. Para completar, quando já estávamos entrando, vimos chegar uma porção de gente e não tivemos dúvida: era o ônibus das 6h50, que chega às 7h45 - tempo suficiente para decolar às 8h15 num país onde tudo é sincronizado e, portanto, o ônibus que poderíamos e deveríamos ter pegado.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A Copa é do Mundo

Eu sei que nem o Brasil nem país algum tem obrigação de disputar - que dirá ganhar - todas as finais de Copa do Mundo. Também sei que sempre haverá algum fracasso, e de todos os fracassos algum terá de ser o mais incisivo, e nem por isso ele será motivo de vergonha.
Apesar disso, a derrota para a Alemanha doeu em mim. Doeu e continua doendo como quando a mais inocente das crianças tem de confrontar a realidade.
Eu sei que havia a FIFA, os políticos, os desvios de verba, as obras inacabadas, as promessas mal cumpridas ou não cumpridas. Como sempre houve, com ou sem Copa do Mundo, e não só no Brasil. Mas, dessa vez, havia a Copa, em casa, e um desejo de vivê-la, de receber gente, de acolher visitas. A Copa, no Brasil, seria do Mundo.
E, apesar dos percalços, foi - está - estava - sendo maravilhosa.
Antes mesmo de começar, encontrando e interagindo com visitantes estrangeiros na própria esquina de casa.
E então, primeiro, no Mineirão, estávamos eu e a Jéssica - o plano era estar a Renata também, mas ela é tão competente no trabalho que um convite irrecusável afastou-a de nós e do estádio. Tivemos pelo menos o consolo de um bom provocante (provolone crocante), de um belo jogo e das palavras trocadas com a Renata pelo celular.
Depois, o Beira-Rio, porque nenhum outro estádio seria a minha casa tanto quanto ele.
Em seguida, o Mineirão de novo. O plano agora era nos reunirmos; a Renata veio e o pai dela também, mas a Jéssica não conseguiu decolar de Porto Alegre e acabou sendo a ausência do dia.
Fomos então a Salvador. Local e partida inusitados, entre um desclassificado e outro quase, mas havia o desejo de ver a Bósnia-Herzegovina e torcer por ela. Fomos a caráter; a Renata passou por bósnia na televisão e, juntos, nós dois não tivemos coragem de acabar com a ilusão de quem pensava sermos estrangeiros - posamos para fotos e tudo o mais.
De lá fomos para Pernambuco - no mata-mata que teria uma equipe do "grupo da morte", acabamos vendo justamente a Costa Rica. Mas tudo bem, era Copa do Mundo. Ainda pudemos encontrar amigos no inusitado restaurante Kovačić e, como se não bastasse isso, descobrimos também um grupo de faroeses que ficou espantado com o carinho que tínhamos pelo país deles.
Então, Salvador de novo. Não estava nos planos originais, mas foi o que sobrou como última alternativa para nos reunirmos os três - eu, a Renata e a Jéssica - depois dos desencontros em Belo Horizonte. Deu certo e foi bastante divertido. Afinal, era Copa do Mundo. A Copa do Brasil.
Tudo tão bom, uma rotina tão fora da rotina, pequenas loucuras tão impensáveis (como colecionar copos da Coca-Cola ou embarcar espontaneamente num voo de madrugada) que parecíamos crianças. Numa Copa assim, nada poderia dar errado.
E foi exatamente por isso que a derrota doeu tanto. Não é que eu acreditasse ou idolatrasse desmesuradamente a seleção brasileira. Não é que o futebol seja a coisa mais importante do mundo para mim. Nem se tratava de um desejo febril de vingar o Maracanazo. Acontece que essa Copa, a nossa Copa, eu queria guardá-la com as lembranças boas que ela estava proporcionando. E, de repente, eis que ela ameaçava ficar na memória como a Copa dos sete a um.
Então eu lembrei de quando o Brasil perdeu para a França, em 1986, na primeira lembrança que tenho de uma Copa do Mundo. Naquele dia, eu me recusei a acreditar na derrota e fui para meu quarto brincar - na minha brincadeira, o Brasil era o campeão. Assim, voltando a 2014, percebi que a Copa do Brasil não era uma ilusão, nem apenas um sonho de ver meu país (mais uma vez) campeão. Era a nossa Copa, de tantos gols que vimos ao vivo e pela televisão, de encontros e desencontros, da camisa que ritualmente escolhíamos a cada jogo, da chuva que nos surpreendeu em Salvador, do sorvete que tomamos após a classificação suada nos pênaltis e de pagar promessa pela mesma classificação suada, dos sotaques mineiro, gaúcho, baiano, pernambucano, colombiano, argentino, francês, faroês, bósnio, grego... Era a nossa Copa de todos os sotaques, e que placar conseguiria tirar isso de nós? É a nossa Copa.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Do afrouxamento das normas morais

Aconteceu que iríamos viajar durante o carnaval e o horário do nosso voo era relativamente cedo. Como temos um horário de trabalho flexível (a empresa nos permite sair mais cedo, desde que compensemos as horas não trabalhadas ficando até mais tarde em outro dia), perguntei à Renata sobre sairmos antes do fim do expediente para pegarmos o voo. A resposta:
Venho, por meio de traçadas linhas, dizer que estou em completa concordância com o pleito de deixar meu recinto de trabalho com o sol a pino para levar a efeito a jornada até o campo de pouso e decolagem de aviões com operações de cunho relativo às relações entre nações para nos pormos dentro de uma embarcação ou qualquer outro veículo que nos permita seguir viagem no presente período de três dias de folia que precede a quarta-feira de cinzas, durante o qual, com o afrouxamento das normas morais, se dá o irromper de recalques por meio de danças, cantos, trejeitos, indumentária diversa da habitual, e aos demais dias os quais acrescentaremos ao período referido.
Por essa e por outras, amo essa guria.