quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A volta ao mundo em 80 sabores


Comer é um prazer. Claro que não haveria como dissociar este prazer do prazer de viajar. Não que eu seja particularmente glutão; acontece, porém, que gosto de experimentar novos sabores tanto quanto gosto de saborear novas paisagens. E viajar é um ótimo pretexto para uma coisa e outra.
Há o prazer da comida em si. Há também o prazer da descoberta - de um restaurante, de um prato, de uma combinação inusitada. Muito da minha atração pela culinária, quando viajo, se deve ao fato de que esta é uma das mais fortes e espontâneas manifestações de qualquer cultura local. Pela comida se infere história, influências e confluências. Através da comida, oferecemos ao nosso anfitrião a oportunidade de mostrar um pouco de si. De mostrar seu orgulho.
Mesmo que nem sempre compartilhemos do seu entusiasmo, mesmo que nem sempre este orgulho nos pareça justificado. Comer pode ser um risco, principalmente quando temos paladares sensíveis e estamos em terras exóticas. Já contei aqui uma das minhas experiências gastronômicas na China. Costumo dizer que todos temos um limite de tolerância diante da comida. Uns dificilmente se inibem ao deglutir gororobas quase impensáveis; não reclamam, lambem os beiços. Outros comem bastante coisa, exceto, digamos, vísceras. Outros param no peixe cru. Outros não vão além do arroz com feijão e da batata frita. Creio que me situo em algum ponto entre o meio-termo e o lado mais tolerante da balança. Em alguns casos, dispenso pratos que pareçam exóticos demais, mas não deixo de respeitar e admirar (ainda que à distância) quem vê iguarias em pescoços de galinha ou espetinhos de lacraia. É tudo uma questão cultural, como aprendi vendo meus conterrâneos comendo feijoada com orelhas de porco.
O bom de se comer fora é que não precisamos nos apegar sempre às esquisitices. Doses moderadas de ousadia são suficientes para recompensar o paladar dos viajantes. No Uruguai, um assado, alfajores, doce de leite in natura ou em forma de sorvete. Na Itália, pizzas e mais sorvete. Na Espanha, paella e tapas. Em Malta, pastizzi (prosaicos e tentadores salgados folheados). Na Índia, lassi (o aromático iogurte local) e todo tipo de massala (mistura). Em Portugal, pastéis de nata (pois logo se aprende que só são de Belém os fabricados em Belém).
Portugal é um caso à parte. Tenho minhas teorias para explicar a forma com que as histórias portuguesas assumem, para nós brasileiros, um ar inusitado. Talvez a proximidade linguística e cultural faça com que inconscientemente esperemos daquele país o mesmo que esperamos do nosso e, por outro lado, faça com que fiquemos atentos a qualquer detalhe que fuja do padrão (mas que passaria despercebido na Índia, na China ou em outro país de língua e cultura menos compreensíveis). Ora, pois. Um dos pratos do cardápio do famoso bar do Peter, na ilha do Faial, é a sopa de baleia. Como assim, perguntei eu ao garçom, a caça à baleia não está proibida? Não há baleia na sopa de baleia, respondeu-me ele, é uma sopa de pastagem. Neste ponto, só com muito raciocínio e experimentação foi possível concluir que pastagem é como alguns açorianos chamam as verduras, mas o principal ainda não havia sido esclarecido. Por que, então, o nome de sopa de baleia? E o garçom explicou que é a sopa que alimentava antigamente os caçadores de baleias antes de eles saírem para o mar. Concluo que a tal iguaria poderia facilmente se chamar sopa de pedra...
Em Lisboa, o cardápio oferecia peixinhos da horta. Como parecesse improvável a existência de um pé de sardinhas crescendo no quintal das casas, e mesmo a captura de pequenos peixes criados numa "horta" de arroz estava fora de questão, questionei o garçom. Ele me explicou que se tratava de simples vegetais, principalmente vagens, que, após empanados e fritos, assumiam a aparência de peixinhos à milanesa (é preciso um tanto de imaginação). Descobri depois que os peixinhos da horta, portugueses com toda certeza, haviam inspirado o tempura japonês - este um pouco mais conhecido dos brasileiros. Mal sabemos nós dos insondáveis caminhos da culinária em sua volta ao mundo.