quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Um relógio de corda

Admito que minha última crônica não foi muito simpática com os andorranos. Acontece: todos estamos sujeitos a experiências (digamos) desconcertantes e, quando elas se passam num lugar desconhecido, a tendência é associarmos o lugar às experiências. Mas que fique claro que situações marcantes ou constrangedoras não são a regra e que eu teria o maior prazer em voltar a Andorra. Até porque também encontramos gente muito simpática por lá, como os adoráveis donos da pizzaria La Cantina, um lugar agradável e ao pé do nosso hotel. Ou como na creperia Els Teus Sentits. Andorra é um lugar onde se come bem, em ambientes convidativos e bem cuidados.
E é, sim, sobretudo, um lugar de compras. Se contei antes de tentativas frustradas, devo falar que também fui bem sucedido.
Assim que saíamos do hotel, passávamos em frente a uma loja que oferecia uma série de objetos quase que artesanais, e sempre inusitados, bem diferente das outras lojas - de eletrônicos, perfumes ou roupas. Curiosamente, porém, sempre passávamos ali quando a loja estava fechada, ou fechando, ou em horário de almoço, e só olhávamos através da vitrine. Namorávamos um relógio exposto, cada vez mais hipnotizados, até que no último dia fizemos questão de ir à loja num horário em que ela estivesse aberta e lá entrar.
"Hipnotizados" é a palavra certa. Estou falando do relógio que ilustra esse texto e que, claro, acabei comprando.
O que primeiro chama a atenção nele é o movimento do pêndulo, para lá e para cá - só ele já seria bastante original. A construção do mecanismo também é inusitada: aparente e toda em madeira, pode não ser o sistema mais preciso do mundo, mas é realmente muito bonito e inclusive mesmo didático. Um espetáculo de relojoaria. E, enfim, estamos falando de um legítimo relógio de corda. Ou seja, nada de pilhas: o que move o relógio é a gravidade, através da mais literal de todas as formas de se "dar corda" a um mecanismo.
Para completar, cuidava da loja uma senhora que era uma amor de pessoa, detalhou o funcionamento do relógio (de fabricação catalã inspirado em projeto do século XVII, segundo ela), fez a venda e embrulhou cuidadosamente o objeto numa caixa de papelão.
A história poderia terminar aqui. No entanto, de Andorra ainda passaríamos por outros países - faltavam cinco voos de avião antes de voltarmos para casa. A caixa com o relógio foi minha bagagem de mão em cada um desses voos. E, em cada aeroporto, aquela caixa com um mecanismo inusitado (e com os pesos do relógio) suscitava reações diferentes ao passar pela inspeção de raio X. Em todos eles, tive de parar e explicar o que continha a caixa. Então, às vezes a pessoa da segurança, olhando novamente o raio X, subitamente enxergava o objeto, abria um sorriso e fazia perguntas sobre o funcionamento do relógio ou onde eu o havia comprado. Noutras vezes, pediam para abrir a caixa, o que era incômodo pois ela estava envolta em fita adesiva e o relógio, cuidadosamente acomodado dentro dela. Até que, numa dessas, após inspecionar o relógio, o funcionário me fez a gentileza de fechar a caixa com uma fita especial, que dizia "Security OK". Graças a isso, nas inspeções seguintes, não precisei mais abrir a caixa - os funcionários perguntavam de que se tratava, olhavam para o volume lacrado, em seguida para a imagem do raio X, pensavam um pouco e em seguida me deixavam seguir. Nada excepcional, é verdade, mas eu não conseguia deixar de achar graça, especialmente porque aquilo sempre lembrava minha experiência anterior com um samovar.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Às compras em Andorra

Andorra, e Andorra la Vella em particular, é um lugar de comércio e de comerciantes. Mas não propriamente como a Turquia ou outras partes da Ásia, onde todos parece que nasceram para fazer negócios - falam incontáveis línguas, esgrimindo em todas elas uma lábia folclórica.
Em Andorra, pelo contrário, a vocação para os negócios é mais recente e vem de incentivos para instalação de uma zona de comércio livre no país dos Pirineus. Em outras palavras, Andorra la Vella é um grande free shop a céu aberto, algo como uma Rivera ou uma Ciudad del Este chique.
Parêntese. Andorra la Vella é a capital e maior cidade de Andorra. O curioso é que seu nome costuma ser traduzido como Andorra-a-Velha, Andorra-la-Vieja ou Andorra-la-Vieille, quando o significado real em catalão seria Andorra-a-Vila, ou seja, Cidade de Andorra...
Pois bem, a efervescência comercial de Andorra está muito longe de ser velha e, assim, o que tem de bons preços (ao menos para os padrões europeus) e de variedade nem sempre é o que tem de fino trato.
Numa ocasião, estávamos procurando a camisa da seleção de futebol de Andorra. Acabamos concluindo que a seleção é real (até prova em contrário), mas a respectiva camisa, se é que existe, passa longe de qualquer vitrine. Em umas tantas lojas nos disseram que não tinham a tal camisa. Até entrarmos em um estabelecimento grande, de uns três ou quatro andares, talvez uma das redes mais completas do país em termos de artigos esportivos. Um dos andares era dedicado ao futebol e vimos farta exposição de bolas e acessórios, além de camisas de Barcelona, Real Madrid, Manchester United e de várias seleções - a do Brasil em destaque -, mas não de Andorra. Descemos um andar para perguntar a uma vendedora; a mulher, antes de responder, olhou-nos com uma cara de incrédulo desdém, e então foi taxativa:
- A seção de futebol é no andar de cima.
- Eu sei, mas não há ninguém lá. - tentei contemporizar. - Talvez pudesses saber se a loja tem a camisa da seleção de Andorra.
E ela, com uma firmeza de meter medo:
- Não sei, não trabalho naquele andar. Vai lá e procura.
Afastei-me devagar, pensando (1) que a vendedora deve ter nascido e passado a vida inteira naquele andar, para não saber o que há nos outros e (2) como é diferente na Turquia, país em que ajudar um cliente a encontrar uma compra numa loja rival é uma opção, e deixar um cliente de mãos abanando não é.
Noutro dia, passávamos em frente a uma loja de eletrônicos que anunciava certo modelo de câmera a um preço bem convidativo. Entramos e perguntei pela câmera. O vendedor, não dos mais simpáticos, ofereceu uma pelo dobro do preço. Perguntei:
- E aquela câmera da vitrine?
- Não temos.
O rapaz foi enfático o suficiente para não deixar dúvidas disso, por estranho que parecesse; também tinha um pouco-caso de quem não parecia estar disposto a conversar; e, a exemplo da raposa diante das uvas, eu não queria tanto assim aquela câmera. Saí de fininho o mais rápido que pude.
Na loja ao lado, a vitrine anunciava uma máquina de cortar cabelo (e isso, sim, era algo que eu pensava em comprar, se surgisse a oportunidade) por 10 euros. Entramos e, quando fui pedir informações, um rosto e uma voz familiar ofereceram uma máquina por 30 euros. Só então reparamos que aquela loja era interligada por dentro à anterior e a mesma pessoa atendia lá e cá! Nem nos demos ao trabalho de perguntar pelo produto mais barato: agradecemos e buscamos mais uma vez a porta da rua...
Foi assim que desisti dos eletro-eletrônicos de Andorra.
Mas não das compras, e o próximo alvo era mais singelo. Acontece que Andorra, assim como boa parte da Espanha, tem um clima bastante seco. No meu caso, uma das consequências disso é: lábio seco, com rachaduras, de uma maneira no mínimo incômoda. Eu queria encontrar um protetor para os lábios - fosse no Brasil, eu me contentaria com um pouco de manteiga de cacau. Entramos numa farmácia e achamos o que eu queria, mas na forma de um hidratante labial importado da Noruega com preço mais salgado que o bacalhau daquele país. Hesitei um pouco, pensando no preço, e perguntei à Renata:
- O que achas? Compro?
Nisso, a balconista da farmácia, com os olhos fixos nas fendas ressecadas dos meus lábios, deu uma gargalhada e não resistiu:
- Eu não te digo nada!
Ainda tenho comigo o protetor labial norueguês comprado na velha Andorra la Vella.