segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

O amor nos tempos de pandemia

"Nel mezzo del cammin di nostra vita
mi ritrovai per una selva oscura"

Estivemos atravessando tempos tumultuosos, de emergência sanitária e política. Época de poucas viagens e muitas leituras; de medos e esperanças; tempo de absoluta depuração. Contexto difícil para falar de travessias, ainda mais que até os blogues parecem ter morrido e este talvez seja um dos poucos sobreviventes. Assim, este espaço ficou mudo.

Mas, enfim, estou de volta; estamos de volta nós que sobrevivemos. Saudações a quem estiver na escuta!

E quindi uscimmo a riveder le stelle." *



* As citações são dos primeiros e último versos do Inverno da Divina Comédia. Na tradução de Italo Eugenio Mauro:
"A meio caminhar de nossa vida/ fui me encontrar em uma selva escura"
"Saímos por ali, a rever estrelas."
A "depuração" é um verso de Drummond.
A imagem é um detalhe do Memento Park de Budapeste.


segunda-feira, 13 de abril de 2020

Comida na Geórgia

Uma coisa marcante quando se senta à mesa na Geórgia é a quantidade de preparações emblemáticas que há no país. A rigor, não se trata de pratos nem ingredientes exóticos, mas sim de receitas que, apesar de possuirem uma inegável identidade distinta, lembram outras encontradas com certa facilidade ao redor do mundo. Herança talvez da rota da seda, que passava pela Geórgia e arredores.

A começar pelo khachapuri e suas variantes. Khachapuri é um pão assado com queijo, uma iguaria que lembra uma pizza ovalada. Eventualmente servem com um ovo por cima. Está por toda parte e vai muito bem como um lanche substancioso. É a típica comida fácil, boa e barata - perfeita para viajantes, portanto. Dependendo da fome, pode até substituir o almoço!

E então temos os khinkali. Estes são considerados o prato nacional da Geórgia, a ponto de fotos e desenhos dele estarem frequentemente presentes em lembranças para turistas: um ímã de geladeira em forma de khinkali, quem vai?
Estamos falando de uma massa recheada (recheios mais comuns: carne, queijo e cogumelos), de tamanho um tanto maior que cappelletti e, ao contrário destes, feita para ser comida com a mão. O khinkali não leva molho algum e é servido seco no prato. Como ele possui uma ponta saliente, feita da própria massa, a intenção é que seja segurado com os dedos por essa ponta (a qual, por ser uma massa mais grossa e mais seca, com "função estrutural", não costuma ser comida). Mais curioso ainda, as variedades de khinkali de carne possuem um caldo no interior da massa, junto com o recheio. É preciso então segurar o khinkali pela ponta, morder com cuidado e sorver o caldo, sem que este escorra.
Um prato muito comum entre os imigrantes italianos do Rio Grande do Sul (e, de resto, em qualquer lugar com influência italiana) é a sopa de capeléti, ou cappelletti in brodo: massa recheada servida num caldo de carne. Na Geórgia, o khinkali me lembrou uma sopa de capeléti reconstruída: com o caldo por dentro da massa, em vez de fora dela. Em outras palavras: não uma sopa de capeléti, e sim capeléti de sopa... Vira um outro prato, apesar de possuir basicamente com os mesmos elementos. Nos restaurantes, khinkali são vendidos por unidade, o que os torna muito convenientes para serem compartilhados por todos à mesa, mais ou menos como uma porção de pastéis ou de bolinhos no Brasil.

Na parte de sobremesas, encontram-se algumas variantes de baclavas, possivelmente por influência dos países vizinhos, mas com menos frequência que no Azerbaijão ou na Turquia. O doce tradicional georgiano é uma tira de nozes embebidas numa calda de suco de uva engrossada com farinha. Ao esfriar, esse suco solidifica e o conjunto como um todo fica com a aparência de uma espécie de linguiça doce. Definitivamente incomum, mas razoável numa região de uvas abundantes. Por outro lado, há também a confeitaria clássica, de origem franco-russa, que acaba sendo a mais agradável a paladares ocidentais. Assim, fomos apresentados a uma "Georgian cake" primorosa que no fundo era uma torta mil-folhas, com lascas de amêndoas e creme de confeiteiro. DNA francês no coração de Tbilisi.


Finalmente, há as compotas. Enquanto que, no Brasil, é comum chamar de compotas a um doce de frutas em calda, na Geórgia e em outros países a compota é a bebida (extremamente doce) que consiste na calda das frutas. É bem simples: a fruta é deixada "de molho" em água com açúcar e então essa mistura, com a água ao final contendo o sabor da fruta, é servida para ser bebida como acompanhamento da refeição. Nos supermercados, refrigerantes de frutas são também chamados de compotas, mas não se comparam à bebida tradicional. "Modernismos" à parte, se às vezes fica difícil adivinhar onde surgiram as receitas e quem influenciou quem, fácil é se deixar levar pelos sabores oferecidos na Geórgia.




terça-feira, 24 de março de 2020

Estava escrito na Geórgia

A Geórgia é daqueles países tão misteriosos que muita gente nem sabe que existe - ou então confunde com o estado estadunidense da Geórgia.

E, no entanto, trata-se de um país que, embora apenas em 1995 tenha se tornado independente, possui uma história e uma cultura riquíssimas. Mas comecemos por um aspecto curioso: a língua e a escrita da Geórgia. Esse povo possui um alfabeto próprio que chama a atenção por ser completamente diferente do nosso - além de ser belíssimo. Duvidam? Pois olhem as imagens.

À primeira vista, ele se parece com o alfabeto da vizinha Armênia, mas é definitivamente outro, embora contemporâneo dele. Além de bonito, é único, o que significa que gente como nós, ao primeiro contato, não tem a menor ideia de como decifrá-lo. As pedras de Rosetta disponíveis nem sempre se prestam para nós: a segunda língua, por lá, é o russo (e não o inglês), o que significa que para ler um documento ou rótulo bilíngue é preciso mergulhar no alfabeto cirílico.
Claro, há muitos alfabetos pelo mundo e encontrar um deles num país que muitos diriam ser obscuro não chega a ser surpreendente. Mas o georgiano tem pinta de ter nascido no Sudeste Asiático ou na Índia, e não nas bordas da Europa.
E - ponto para a Geórgia, sua língua e seu alfabeto - um dos seus filhos mais celebrados da terra é um escritor, o poeta medieval Rustaveli. Em Tbilisi, está presente em estátuas e dá seu nome à maior avenida, ao aeroporto e ao teatro nacional. A obra de Rustaveli, épica (à moda de seus contemporâneos) tem, entretanto, aforismos quase místicos que lembram versos de Tagore. Nada poderia ser mais exótico para nós, ocidentais.
Por cima deste tapete linguístico e literário, a Geórgia de hoje tem muitas outras camadas que competem entre si e eventualmente se amalgamam. Se não, vejamos. Foi uma das repúblicas socialistas soviéticas e possui uma história de amor e ódio com a Rússia - provavelmente mais ódio que amor, a despeito de o mais longevo ditador soviético ser filho da "Mãe Geórgia". Sim, Stalin, ele mesmo, nasceu na Geórgia e lá começou sua carreira de roubos e sequestros. Contraponha-se a isso o forte apelo que a religião tem por lá, no caso o cristianismo ortodoxo. Estamos falando, afinal, de um país do Cáucaso, um lugar onde as nações se confundem com as etnias e estas se identificam com as religiões. Outro aspecto, pouco conhecido fora de lá, é que a Geórgia é considerada pioneira mundial na produção de vinho e ainda hoje possui uma posição respeitável, produzindo a bebida tanto industrial quanto artesanalmente. E, do vinho à comida, cabe dizer que estamos falando de um país possuidor de uma diversidade de pratos autóctones que, se não são sofisticados, ninguém pode acusar de não serem criativos e saborosos. Em meio à terra dos tapetes, a Geórgia é uma fascinante colcha de retalhos.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Guia Puffin de Gastronomia 2020

Que rufem os tambores! A leitura mais inspiradora e saborosa do ano acaba de chegar!
Guia Puffin de Gastronomia distribui entre uma e três enguias para os estabelecimentos que proporcionaram as mais excepcionais experiências gastronômicas - não só a comida, mas também o atendimento, o ambiente, enfim, a experiência completa. Seguindo o mesmo critério das edições anteriores, restaurantes listados nos outros anos (desde 2015) ficam de fora para, assim, dar mais espaço às novas descobertas. E não foram poucas as que este último ano proporcionou.
Mas não vamos mais nos alongar, que são tempos bicudos para quem gosta de um montão de amontoado de muita coisa escrita. Com vocês, a sexta edição do Guia Puffin de Gastronomia!


O Pico, Fernando de Noronha - 1 enguia
A verdade é que Fernando de Noronha é um destino turístico não tão voltado à gastronomia - as praias, o mergulho e as belezas naturais são os principais atrativos. Mas surfistas e mergulhadores também precisam comer! O Pico é um restaurante agradável, com uma vista linda, atendentes simpáticos e comida saborosa. Precisa de mais do que isso?






Nakhchivan, Baku (Azerbaijão) - 1 enguia
O nome do lugar é uma homenagem ao Naquichevão, o exclave do Azerbaijão para lá da Armênia. Mas o restaurante propriamente dito fica num endereço conveniente na parte alta da Baku e é um excelente lugar para se conhecer a comida tradicional do país numa roupagem elegante. A experiência começa com a visão do salão, amplo e bonito. O cardápio não é extenso, mas nele figuram com destaque ingredientes e preparações típicos do país - por exemplo, um molho de romã de sabor marcante e o inigualável pão azéri.





Le Blond, Rio de Janeiro - 1 enguia
Já foi dito antes que a família Troisgros é frequentadora assídua do Guia Puffin, e com mérito.  Le Blond é uma espécie de restaurante irmão do Chez Claude, a outra casa de Claude Troisgros que estreou no Guia do ano passado. O conceito de ambos é parecido e, no cardápio, reconhece-se facilmente a mão do mestre, com referências a clássicos da sua carreira. Trata-se de num restaurante que convida a voltar inúmeras vezes.





Maní, São Paulo - 1 enguia
Impossível não estar cheio de expectativas ao entrar no disputado restaurante da chef gaúcha Helena Rizzo. O menu degustação é extenso e saboroso, mas um pouco prejudicado justamente pelas elevadas expectativas. O uso de álcool e coentro em alguns pratos beira o excessivo para o gosto de alguns mas, por outro lado, o cuidado e a criatividade da chef (que também usa ingredientes regionais, como erva-mate) fazem com que, no final, o balanço seja bastante positivo. E com um bônus: ao lado do restaurante funciona a Padoca do Maní, uma padaria excelente para o café-da-manhã do dia seguinte.


Zazu, Quito (Equador) - 2 enguias
Correndo por fora, o restaurante comandado pelo simpático Wilson Alpala chega para dizer por que esta é uma das edições mais surpreendentes do Guia Puffin. Quem diria que Quito, teria comida tão boa? O fato é que a culinária andina deu ingredientes de primeira classe à gastronomia mundial e, muito além disso, ainda tem coisa bastante interessante a ser descoberta. O Zazu proporciona esta descoberta, com uma imersão apaixonante e bem cuidada na cultura e na comida equatorianas. Inesquecível.




Tuju, São Paulo - 2 enguias
Ah, São Paulo, terra da boa comida! Que dizer deste restaurante de nome simpático, garçons atenciosos e comida espetacular? Pois o Tuju vai direto ao ponto: gastronomia contemporânea de dar água na boca, simples assim. Não enrola e não decepciona.





Flor de Lis, Cidade da Guatemala - 3 enguias
Alguém aí falou em azarão? Pois o Flor de Lis está aqui para mostrar que a pouco falada Guatemala merece lugar de destaque à mesa. Algo me diz que este Guia Puffin será lembrado por anos a fio! O Flor de Lis já foi citado aqui antes, e por um bom motivo: o restaurante propõe uma sinestesia gastronômico-literária, se é que isso é possível. Trata-se de um menu inteiro inspirado no Popol Vuh, o grande clássico da literatura maia. Com ingredientes simples, mas trabalhados com maestria, somos convidados a usar a imaginação - e o resultado é inigualável. Só lamento não ter lido antes o Popol Vuh... Em compensação, ao final conversamos com o chef Diego Telles, um sujeito incrivelmente simpático e humilde - talvez nem imaginasse que teria o primeiro 3-enguias da América Central!


ABaC, Barcelona (Espanha) - 3 enguias
O ABaC, do badalado chef Jordi Cruz, é um daqueles restaurantes que devia estar esperando ansiosamente a visita dos avaliadores do Guia Puffin. Isso sendo verdade ou não, o certo é que se prepararam para impressionar. E conseguiram. A criatividade do chef, no ABaC, lembra a de outro catalão - Salvador Dalí. Afinal, o tempo todo surgem surpresas quase surrealistas. Muita coisa lá não é o que parece: a caixinha sobre a mesa não é só decoração, quando menos se espera surge um lagostim que tinha ficado marinando dentro dela; a vela que dava um clima romântico, ao derreter, vira molho para embeber o pão; em certo momento, surgem balões de hélio. Tudo isso transforma a experiência em algo extremamente lúdico e deixa o ambiente leve, mas sem nunca esquecer o principal: vai-se lá para comer, e comer bem.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Xinaliq: mundo mundo vasto mundo

Imaginem o planeta numa época em que, isoladas pela distância e por caminhos inóspitos (ou pela falta deles), comunidades inteiras viviam quase sem contato umas com as outras. Agora imaginem que, mesmo neste nosso tempo de hiperconectividade, há gente que ainda vive assim.
Tomemos as planícies do Azerbaijão, coração da Transcaucásia, o que por si só já é uma região longínqua para um observador brasileiro. Agora peguemos um dos sinuosíssimos caminhos que sobem montanha acima, de preferência de carona num Lada Niva. Durante séculos, a cada invasão de armênios, russos, europeus ou mercenários diversos, o povo de lá só tinha uma saída real: fujam para as montanhas! No alto, um entre um punhado de vilarejos, está Xinaliq, ou Khinalug. A 2400 m de altitude, Xinaliq, de tão inóspita, foi poupada de todas os grandes massacres históricos - passou despercebida aos invasores, ou talvez estes tenham cogitado que não valia a pena subir a montanha até o pico pedregoso e nevado.
Hoje Xinaliq é uma cidade de menos de 2000 habitantes, na teoria já não tão isolada: uma estrada foi construída há poucos anos, ligando-a à capital da província, Quba. Mesmo assim, a tal estrada pode ser muitas coisas, mas não é fácil de se percorrer - e definitivamente não por forasteiros. Quem se arrisca, porém, é brindado com o privilégio de uma paisagem deslumbrante, de tirar o fôlego.
Lá no alto, além da vista do vale e das montanhas, outra surpresa: o contato com uma cultura única no mundo. As casas de pedra, a criação de ovelhas, o trabalho da lã. Um povo com uma língua própria, que só é falada naquele canto da planeta e que é totalmente diferente do que se fala no resto do país. Aliás, a comunicação é um desafio vencido com boa vontade: o inglês é apenas a quarta língua, atrás do xinaliq, do azéri e do russo. Apesar disso, praticamente todas as crianças com quem cruzávamos nos presenteavam com um sorriso e com umas palavras básicas (Hello! How are you?), orgulhosas do inglês que aprendem na escola.
Como não poderia deixar de ser, a pousada em que ficamos é rústica, para dizer o mínimo. Pertence a dois jovens irmãos, que recebem os poucos hóspedes com chá e uma aula básica da língua local. Depois de instalados, saímos a conhecer o pequeno vilarejo, o que não é difícil de fazer a pé, apesar das ruas íngremes. Há dois pequenos museus, mas o mais interessante mesmo é observar as casas, a paisagem de montanhas ao redor e as pessoas indo e vindo. Eventualmente, tem-se a impressão de estar num mundo totalmente diverso. Por exemplo: espalhadas pela cidade há várias pilhas de... estrume. Posto para secar ao sol, ele forma blocos compactos que depois são utilizados como combustível. No fundo, é muito melhor do que usar lenha!
Falando nisso, o clima lá varia bastante e pode chegar a fazer bastante frio! Enquanto que em Baku estávamos de mangas curtas, o casaco mais pesado não era exagero em Xinaliq. Pior que isso, porém, é que por alguma insondável conjunção zoroastrista, nosso quarto na pousada parecia ter o metro quadrado mais frio da cidade. Quiçá do país! Não consigo explicar exatamente o motivo - o sol que não batia, as paredes pouco isolantes... O quarto era tão frio que, à noite, dava medo pensar em ter de entrar nele. Adiar um pouco o sono não foi de todo ruim, pois nossos anfitriões ofereceram um jantar de superar as expectativas. Quando enfim nos recolhemos, foi para entrar de calça e tudo debaixo de todas as cobertas possíveis e evitar ao máximo qualquer movimento, a única forma de combater o frio. Ah, e claro, o fato de o banheiro ficar fora da casa, num anexo, também implicava que tomar banho àquela altura estava descartado e qualquer incursão noturna só seria feita se fosse absolutamente indispensável.
No final das contas, passar uma noite sem banho não é tão terrível e vale a pena se for o preço para conhecer um lugar tão bonito e autêntico; mas é difícil não pensar em como é a vida deles, acostumados a este tipo de coisa dia após dia.
Voltamos a Quba no mesmo Lada que havia nos levado, dirigido por um dos dois irmãos. No caminho, o telefone tocou: era um outro estrangeiro interessado em passar a noite em Xinaliq. Sem largar a direção, o rapaz me passou o telefone e, no inglês quase monossilábico em que nos comunicávamos, pediu que eu ajudasse a negociar o preço e as condições da estadia. Assim, com uma aula prática de como pechinchar à moda asiática (e, coisa rara, estando do lado de quem vende e não de quem compra), desci de Xinaliq. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Quba: encruzilhadas no Cáucaso

Não é de hoje que os países do Cáucaso têm um aspecto de "ponte entre a Europa e a Ásia". A rota da seda, que durante séculos conectou o Ocidente ao Extremo Oriente, passava pela região. Embora a maior parte do tráfego a rigor passasse um pouco ao sul de Baku, é inegável a influência que a rota chegou a ter em todo o Azerbaijão.
Porém, o texto de hoje não é para falar especificamente da rota da seda e sim de nossas andanças, bem mais modestas, por alguns dos caminhos que hoje ocupam o seu lugar. Até onde pudemos comprovar, o Azerbaijão compartilha com outros ditos "países em desenvolvimento" um problema crônico: a precariedade da infraestrutura de transporte. Enquanto que na Europa Ocidental as estradas e os trens são um convite a viajar, no Cáucaso é preciso tempo e paciência. A começar pelos terminais de ônibus, que são um tanto confusos (e onde a lingua franca é o russo, e não o inglês). Além de ônibus e marshrutkas (vans ou miniônibus), há frequentemente a opção de se dividir um táxi: os taxistas ficam esperando em frente aos terminais e fazem a rota entre as principais cidades por cerca do dobro do preço e metade do tempo do ônibus, saindo assim que conseguem lotação completa para seu carro.
Assim, percorrendo uma estrada larga, reta e medianamente conservada, vai-se de Baku até Quba - uma cidade que, apesar de não ter as grandes atrações da capital (ou justamente por isso) permite um vislumbre de como é a vida no interior.
Umas tantas mesquitas, mas nenhuma tão imponente quanto as que se encontram nas grandes cidades do mundo islâmico. Algumas chegam a passar quase despercebidas no começo. Não muita gente na rua durante o dia, talvez por causa do sol inclemente que brilhava.
Onipresentes são os velhos carros soviéticos: muitos Ladas, em variado estado de conservação, e algumas relíquias de marcas desconhecidas para nós ocidentais.
Um inesperado bairro judeu com mezuzás nas portas, calmo como a tarde na planície azéri.
Um museu cheirando a novo a exaltar a bondade da pátria-mãe, com histórias de mártires de guerra e uma gigantesca bandeira do Azerbaijão. Quba foi cenário de um dos inúmeros massacres de gente inocente que nosso planeta já presenciou, e o governo aparentemente usa este fato para apontar o dedo à vizinha Armênia, com quem mantém uma relação conturbada. A visita ao museu é compulsoriamente guiada por uma mulher que,  por baixo do discurso bem-decorado, deixa transparecer uma singela simpatia humana. Não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti.
Um café-restaurante quase vazio numa ampla praça, onde nos abrigamos do sol e aplacamos a fome. Fomos atendidos por uma menina que mal falava umas palavras de inglês, mas cujos olhos brilhavam de fascinação por nós, dois estrangeiros vindos de uma terra tão longínqua.
Casas com portas entreabertas vendendo baklavas diversas e outros doces. Há uma variedade que é típica de Quba, a qual só encontramos lá, mas que na nossa opinião não chega a ser tão saborosa quanto a tradicional, feita de nozes, presente em todo o Azerbaijão.
Maçãs! A região é uma conhecida produtora de maçãs, e elas estão por toda parte.
Um hotel confortável, imponente e deliciosamente anacrônico. Tudo em Quba parece ser maior do que precisaria ser dado o tamanho da população (38 mil), e o hotel não foge à regra.
E uma estrada sinuosa que vai além dos caminhos mais batidos, um trajeto inacreditável que sobe 1800 m em 40 quilômetros e só é percorrido a bordo de Ladas Niva: o caminho até as montanhas. Aventurar-se em encruzilhadas é descobrir lugares surpreendentes e este em particular - a vila de Xinaliq, no topo de umas das montanhas de Quba - é história para o próximo capítulo.

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Girassol, o camarada Stalin e um time de refugiados: futebol no Azerbaijão

Estádio Tofiq Bahramov
O futebol rende histórias curiosas no Azerbaijão. E não só por estar ligado às mudanças políticas ocorridas no país ao longo das últimas décadas - afinal, durante um bom tempo os jogadores e equipes azéris formavam parte da estrutura soviética e só depois da independência é que passaram a contar com uma federação independente.
Qarabağ F.K.
Um dos times mais tradicionais e de maior sucesso, desde a época soviética, é o Neftçi, que, como o nome sugere, nasceu como um clube dos trabalhadores da indústria do petróleo. Porém, mais recentemente, outra equipe ganhou destaque: o Qarabağ. Este foi batizado em homenagem a sua terra natal, a região do Carabaque (ou Karabakh), uma das mais emblemáticas do Azerbaijão. O Carabaque é região de histórias mitológicas, considerado berço da tradição azéri e símbolo da bravura de seus guerreiros. Famosos em todo o Cáucaso são os cavalos do Carabaque, tidos como os maiores, mais velozes e mais belos animais do mundo (ao povo do Carabaque também se atribui uma falta de modéstia épica). Acontece, entretanto, que justamente esta região foi o alvo da recente guerra com a Armênia, que hoje controla o Carabaque. Isso feriu profundamente o orgulho dos azéris mais nacionalistas e, como costuma acontecer de vez em quando, o futebol despontou como uma válvula de escape - no final das contas, antes lutar no campo de jogo que no campo de batalha.
Assim, o Qarabağ é hoje um time de refugiados que joga em Baku, a centenas de quilômetros de sua terra natal, o que dá a ele um status de queridinho do país.
Estádio Tofiq Bahramov, com cobertura em formato de С de Cтaлин (Stalin)
No Azerbaijão, fomos assistir à semifinal da Copa Azéri entre Qarabağ e Qəbələ. O Qarabağ tem mandado seus jogos no estádio mais tradicional da capital e que tem, ele também, uma história curiosa. Foi construído em 1951 em formato de С de Cтaлин (Stalin) - reparem na cobertura! Depois o estádio mudou de nome, passando de Josef Stalin para Vladimir Lenin e, finalmente, para Tofiq Bahramov, o personagem mais famoso da história do futebol azéri. Bahramov se destacou não como jogador, mas como juiz! Apitou, entre outras partidas, a polêmica final da Copa de 1966.
Qarabağ vs. Qəbələ
Ao chegar ao estádio, procuramos em vão a bilheteria. Até que perguntei a um dos policiais que faziam a segurança e ele nos disse para entrar, que o ingresso era livre! O clima era de festa. O público é majoritariamente masculino, como era de se esperar, mas há algumas mulheres. O que não se vê, por motivos óbvios, é gente bêbada. Por outro lado, estão todos ocupados com as iguarias vendidas nas arquibancadas: chá quente e sementes de girassol! Em pouco tempo, as arquibancadas ficam repletas de cascas de sementes de girassol que restam dos snacks. No intervalo, pensando em comprar algo diferente para beliscar, sigo o fluxo de pessoas. Então descubro que estão todos literalmente saindo do estádio e indo até uma ou outra lancheria na esquina, no lado de fora, para esticar as pernas e comprar algo para comer e beber.
Voltando ao estádio, aquele mesmo policial me viu e perguntou de onde éramos; quando respondi, ele me abraçou forte e começou a dançar, exultante, repetindo: Ronaldinho! Pelé! Ronaldinho! Bons momentos em que somos lembrados pelo futebol e não pela política, mesmo num país em que esta última tem tanta força.

domingo, 17 de novembro de 2019

Baku

Ao desembarcar em Baku, eu não esperava ser recebido pelo destacamento de fachadas novas e imponentes que surgiam em ambos os lados das avenidas que levam ao centro da cidade. Chegando lá, a uma mera quadra de distância da avenida onde dali a poucos dias estariam rugindo os carros da Fórmula 1, nosso anfitrião nos guiou pelos meandros de um antigo prédio da era soviética. Subimos num elevador de portas pantográficas e passamos por um corredor escuro até chegar a um apartamento imenso, suficiente para uma família de tamanho razoável. Numa parede, uma tabela periódica dos tempos de Mendeleiev; noutra, uma estante com livros em persa.
Aos poucos, fomos desvendando a estrutura urbanística da cidade. Seu coração é o centro antigo, um conjunto de prédios seculares guardados por belas muralhas de pedra. Historicamente, é ali que vivia o povo azéri "de raiz", ou seja, as famílias mais tradicionais, muitas delas ligadas à nobreza e à religião islâmica. Em volta da cidade murada e ao longo do litoral, com o tempo, a cidade foi se expandindo em quarteirões mais modernos, ocupados pelos "novos ricos" que se destacavam em atividades ligadas direta ou indiretamente à exploração de petróleo. Eram industriais e banqueiros, muitos deles da terra, mas também estrangeiros - até a família de Alfred Nobel andou por lá.
A Revolução Russa trouxe uma nova onda de mudanças. Surgiram prédios imponentes, à moda soviética, e houve o crescimento do setor de serviços estatais tipicamente ligados ao governo socialista. Após a desintegração da União Soviética, quem tomou as rédeas foi um presidente autoritário, mas progressista, que ao menos conseguiu estabilizar o país e trazer certa abertura econômica. Hoje, vê-se que Baku, mesmo mantendo uma população azéri bastante homogênea, é uma cidade cosmopolita e aberta ao turismo.
Um dos principais símbolos da cidade - e do próprio Azerbaijão - é a Torre da Donzela, um monumento do século XII. Tem um formato distintivo ao qual demora-se um pouco para se acostumar e é cercada por lendas e mistérios. Tanto que até hoje não se tem certeza sobre qual era a sua função no passado: as hipóteses variam de observatório astronômica a torre de observação, mas nenhuma delas é totalmente convincente.
Outro orgulho do país é a cultura dos tapetes. São peças lindas, elaboradas com desenhos intrincados feitos por artistas talentosos. Uma impressionante coleção destas obras está no Museu do Tapete, prédio que chama a atenção por ter sido projetado em formato de... tapete.
Os subúrbios são notavelmente mais pobres ou, pelo menos, não se vê neles as grandes construções ocupadas, nos bairros centrais, por centros culturais, museus, estádios e ginásios esportivos. Mas têm, por outro lado, templos e sítios históricos. É uma região onde são comuns as exudações de gás natural da terra, que criam fenômenos como buracos, encostas ou montanhas eternamente em fogo. Mesmo onde isso não ocorre, é comum divisar na paisagem dezenas de cavalos-de-pau extraindo petróleo, sinal inequívoco de que o subsolo é mesmo rico em hidrocarbonetos.
Daí que, para um país que foi o primeiro a tirar óleo de pedra de forma comercial, sediar um grande prêmio de Fórmula 1, a categoria máxima do automobilismo, é uma consequência que faz jus à história. A corrida de Baku, por ser num circuito de rua, tem o mesmo problema de Mônaco: é virtualmente impossível ter-se uma visão geral da corrida, que passa ao redor dos prédios do centro da cidade. Por outro lado, é muito conveniente justamente por essa proximidade. Sem contar que a cidade em si forma um cenário invejável para a corrida. Não é todo dia que se pode ver alguns dos carros mais avançados do planeta tirando fininhos, em velocidade absurda, de antigas muralhas medievais.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Azerbaijão, esse desconhecido

Há pelo menos um punhado de cidades que alardeiam para si o título de "ponte entre o Ocidente e o Oriente", graças talvez à natureza longa e subjetiva da fronteira geográfica entre a Europa e a Ásia. A mais famosa é, sem dúvida, Istambul, ajudada pelo fato de estar localizada dos dois lados do Bósforo. Porém, é claro que influências culturais são difusas. Há fortes traços orientais (e islâmicos) em cidades firmemente fincadas na Europa, como Sarajevo e Pristina.  E, a leste da Turquia, ares europeus se misturam à atmosfera oriental das cidades banhadas pelo mar Cáspio. Estou falando da ex-república soviética do Azerbaijão.
No começo do romance "Ali e Nino", um dos maiores clássicos da literatura azéri, Kurban Said coloca um professor de escola falando exatamente disso: "Alguns estudiosos olham para a área ao sul das montanhas do Cáucaso como pertencendo à Ásia, enquanto outros, tendo em vista a evolução cultural da Transcaucásia, acreditam que este país deva ser considerado parte da Europa. Assim, pode-se dizer, minhas crianças, que é um pouco responsabilidade sua que nossa cidade pertença à progressiva Europa ou à reacionária Ásia".
O Azerbaijão, e em particular sua capital Baku, é daqueles lugares que nos jogam na cara nossa ignorância do mundo. Tem uma história riquíssima com âncoras em ambos os continentes. Ao longo dos séculos, foi parte da rota da seda; foi local de peregrinação do zoroastrismo (atraído pelo fogo que "emana da terra" na forma de afloramentos de gás natural); foi um dos berços da indústria do petróleo, ainda hoje uma de suas maiores riquezas; como tal, foi a fonte de combustível por excelência da poderosa União Soviética. É um país laico de maioria muçulmana. Tem, assim como seus vizinhos, uma relação controversa com a democracia, tendo convivido com ditaduras (algumas extremas e outras brandas), cultos à personalidade (idem) e guerras recentes.
Visitar um país desses é um privilégio que não se resume ao aprendizado da história. É uma imersão cultural. O Azerbaijão tem traços que lembram a Turquia, como na língua e na comida, mas com suas particularidades. Tendo sido uma das repúblicas nas franjas da União Soviética, a influência russa se encontra aqui e ali, no urbanismo com grandes espaços abertos e principalmente nas prateleiras dos supermercados. Mas o dia-a-dia é distintamente caucasiano. A manhã começa com um típico pão tandir, simples e incrivelmente viciante, e uma taça de café tradicional preparado no cezve.  O dia envolve dividir as ruas com antigos Ladas ou as calçadas com vendedores de suco de romã. Mesquitas? Estão à disposição por toda parte, porém são notavelmente mais discretas que em outros países tanto da Ásia quanto da Europa.
No final, aliás, a maior divisão do Azerbaijão não parece ser entre Oriente e Ocidente; ambas as culturas, lá, estão bastante misturadas. Mais visível é uma diferença entre a capital e o interior ou, mesmo, entre a zona central de Baku e os subúrbios. De um lado, tem-se uma cidade nova, pujante e colorida, esbanjando toda a beleza proporcionada pela (renda proveniente da) exploração do petróleo. Do outro, um país que não é necessariamente pobre, mas que é montanhoso, árido e com firmes raízes no passado. Há talvez um certo orgulho nesse jeito de ser, de se cultivar costumes tradicionais num país que atravessou guerras, fome, turbulência e o vigor econômico do petróleo.
Voltando a "Ali e Nino": ao final daquela exposição do professor, claramente tendencioso a favor dos aspectos europeus (e portanto "civilizados") de Baku, é um dos alunos que levanta a mão para responder ao mestre: "Por favor, senhor, nós preferimos ficar na Ásia."

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Guatemala, entre colonizados e colonizadores

Antigua Guatemala é uma bela cidade colonial. Com uns cinco séculos de história, a antiga capital do país está convenientemente situada a não muitos quilômetros da Cidade da Guatemala - de tal forma que uma fração grande dos visitantes que desembarcam no aeroporto rumam direto para Antigua, sem sequer passar pela capital.
Caminhar pelas ruas de Antigua é um prazer, assim como provar a boa comida guatemalteca num de seus restaurantes. E aqui vale tanto jantar numa boa mesa, à noite, quanto degustar o café da manhã típico do país - variações em torno de ovos, feijões, banana, queijo e tortillas. Ou quem sabe entregar-se ao autêntico chocolate centro-americano.
É também em Antigua que se encontra o que é certamente um dos principais cartões-postais da Guatemala: a vista do Arco de Santa Catarina com um dos vulcões ao fundo. Uma maravilha chegar a ela caminhando pelas ruas de pedra da cidade.
Tudo bonito demais, na verdade. A questão é que a cidade é carregada de símbolos coloniais adquiridos ao longo de séculos de invasão europeia - isso num país onde 80 % da população, ainda hoje, é de ameríndios e mestiços.
Basta andar um pouco pelo restante do país para perceber que Antigua Guatemala é arrumadinha demais, enfeitada demais, limpa demais, autêntica de menos. Uma joia para turistas que chegam falando inglês e pagando em dólar.
E, apesar disso, de Antigua é possível chegar a Atitlán após um trajeto de três horas em ônibus ou van. Trata-se de um lago realmente bonito, cercado de vulcões impressionantes e ao redor do qual se situam uma série de cidades e vilarejos; entre eles, Panajachel.
As margens do lago, além da beleza natural, chamam a atenção pelo aspecto demográfico. Estamos em uma região com fortes traços indígenas: a população é descendente direta dos maias que viviam na Guatemala quando chegaram os espanhóis. Muitos ainda falam alguma das línguas maias. Vestem-se, comem e criam seus filhos da maneira tradicional.
Acontece que, entre essa pequena cidade maia e o esplendor colonial de Antigua Guatemala há um abismo mais intransponível do que as montanhas guatemaltecas. Antigua é talvez a cidade mais limpa do país, bem como a mais estruturada para receber turistas. Já Panajachel tem um aspecto de caos e, mais que isso, de gente que (embora trabalhadora) é evidentemente pobre. Não se vai muito longe sem cruzar com alguém vendendo frutas e artesanatos a preços ridiculamente baixos - são pessoas sofridas, algumas delas bem idosas, outras são crianças pequenas. De partir o coração, e também para lembrar que o mundo (também) é isso, e não a nossa pequena bolha.
Então me ponho a pensar no quanto fomos cuidadosamente treinados para ignorar as injustiças. No caso da América Central, é chamar de "conquista" a invasão espanhola e as guerras que se seguiram. É sistematicamente agir como se a língua, a religião e a história europeias fossem superiores a suas contrapartes americanas (e ensinar umas e não outras nas escolas). Renomear cidades dando a elas nomes de santos, construir igrejas em cima de antigos templos. Acontece, porém, que, mesmo na porção mais espanhola da Guatemala (como em Antigua), alguns dos aspectos mais atraentes são aqueles ligados às raízes maias. Nossa percepção da cultura deles sem dúvida evoluiu desde a chegada dos primeiros europeus, mas ainda temos um longo caminho pela frente.