sexta-feira, 31 de julho de 2015

Duas relíquias: um livro e uma peça de museu

"O mundo sobre rodas", de Ali Mitgutsch, é um livro que ganhei anos atrás, quando criança, e que acabei conservando até hoje. De certa forma, esse livro pode ter influenciado algumas das minhas escolhas profissionais e de lazer. Trata-se de um volume completamente ilustrado que conta a história do transporte sobre rodas através de inúmeros desenhos bem-humorados. Quando mais novo, folheei várias e várias vezes esse livro, percorrendo os detalhes do texto e das ilustrações, e ainda depois de adulto não deixei de abri-lo uma vez ou outra. Do transporte de blocos de pedra paras as Pirâmides do Egito até carros de corrida, passando por bigas romanas, diligências do Velho Oeste, bicicletas, patins, trens, ônibus e o Ford Modelo T, o livro tinha um pouco de tudo.
Acho que "O mundo sobre rodas" está esgotado, ao menos em português. Numa pesquisa rápida, só o encontrei em alguns sebos. Uma pena, pois me alegraria saber que esse livro continua sendo aproveitado hoje em dia (se bem que ele precisaria de uma atualização, pois algumas décadas se passaram desde a edição que temos aqui em casa...).
Pois enfim. Estava eu de férias nesse nosso mundo sobre rodas quando entrei em um museu de Oslo dedicado aos vikings. As estrelas do museu são três navios viking que sobreviveram aos séculos - dois deles em impressionante estado de conservação/restauração, e o terceiro incompleto, mas ainda assim digno de nota. Ao que parece, trata-se dos três mais bem preservados navios viking do mundo, e um barco desses de madeira ter sobrevivido mais de um milênio não é pouca coisa. O museu possui ainda uma série de outros artefatos, alguns dos quais encontrados junto aos navios (arqueólogos devem agradecer o fato de que escandinavos ricos faziam seus funerais em barcos como esses e amaldiçoar o fato de que, eventualmente, em vez de enterrar o barco com tudo dentro, resolviam queimá-lo).
Carruagem no Vikingskipshuset;
as condições não eras as melhores para uma boa foto...
Uma das peças do museu é uma carruagem de madeira cuidadosamente exposta. Acontece que bastou olhar para carruagem para uma luz se acender em alguma parte do meu cérebro: aquilo me era familiar. Ao voltar para o Brasil, fui atrás do velho "O mundo sobre rodas" e confirmei minha suspeita. A carruagem viking estava lá, exatamente ela, num desenho do autor! Não pude não achar curiosa a forma como aquela relíquia saiu do livro para cruzar meu caminho tantos anos depois, assim por acaso, como também foi curioso descobrir que ainda me lembro tão bem das páginas da velha relíquia (pudera, a edição é de 1977, quando eu sequer era nascido) de Ali Mitgutsch. Mais uma vez, voltei a ela. O que seria de nós se não fossem os livros?


A mesma carruagem desenhada pelo autor do livro, que certamente gostava de museus
e deve ter andado pelo Vikingskipshuset décadas antes de mim.

sábado, 25 de julho de 2015

Å

Å é o nome de uma pequena vila nas ilhas Lofoten, a ponta mais ocidental do arquipélago se desconsiderarmos as ilhas Værøy e Røst, que ficam bem mais afastadas. Å é o último lugar de Lofoten aonde se consegue chegar de carro sem tomar um barco. No nosso caso, pegamos um ônibus em Leknes (aproximadamente no centro geográfico de Lofoten). Perfeitamente organizado e cronometrado - como tudo, aliás, na Noruega. Fomos à parada e, pontualmente às 13h07, como prometido na tabela de horários disponível na Internet, chegou o ônibus e embarcamos. A viagem pelos cerca de 70 km que separam uma cidade da outra deveria durar 1h43. Estávamos já bastante perto do destino e parecia que chegaríamos adiantados. Foi então que, numa das paradas, algumas pessoas desceram, outras subiram, e o ônibus continuou estacionado. Aguardamos um pouco, e nada. Como tinha a impressão de que não estávamos tão longe assim do destino, cheguei a cogitar seguirmos a pé. Em vez disso, fui até o motorista perguntar educadamente o motivo de estarmos ali parados. "Estamos esperando as crianças saírem da escola", eis a resposta simples e lógica. Dali a pouco, uns tantos meninos foram chegando e embarcando. E o ônibus partiu. Chegamos a nosso destino no horário prometido, nem um minuto a mais, nem um minuto a menos.
Estávamos enfim em Å, um pitoresco conjunto de casas de madeira, algumas sobre palafitas, entremeado de ruelas e de braços de mar onde repousavam barcos de pesca. Achamos nossa pousada, certamente a maior da vila: além do conjunto de rorbuer (típicas cabanas para hóspedes norueguesas), possuía um amplo restaurante e um cais considerável. Å é, evidentemente, um lugar de pescadores. Demoramos uns instantes a achar nosso quarto; acontece que ficamos hospedados no andar acima do galpão em que os peixes são limpos e armazenados. Logo me acostumei ao cheiro de peixe, e só lembrava realmente dele quando precisava de uma das toalhas, que pareciam concentrar em si o odor de pescado.
Num instante percorremos, a pé, o centro de Å. A vila é pequena como o seu nome, e tão bonita quanto pequena. Gaivotas nos acompanhavam: elas estão pela cidade toda e fazem seus ninhos do lado e acima de nosso quarto!
Procuramos em vão por um mercado onde comprar ingredientes para fazer uma refeição. Então achamos uma padaria e entramos. Trata-se de um lugar rústico, instalado numa antiga casa, onde somos recebidos por uma moça que é, ao mesmo tempo, padeira e atendente. Vê-se o forno e os utensílios, e a impressão é de que são os mesmos há um século. Veem-se também alguns pães expostos; escolhemos um, pagamos e saímos. O pão é saboroso, rústico como se esperaria daquela padaria, embora com bastante canela. Não gostamos tanto assim de canela... Em compensação, na saída, encontramos uma butikken e entramos: é a loja que vende de tudo, desde livros e lembranças para turistas até arroz, peixe e alguns legumes. As estantes são decoradas com velhas latas de óleo de fígado de bacalhau. Sem pressa, damos uma volta pelo pequeno mercado e afinal fazemos nosso rancho. À noite, jantaremos produtos locais. Depois, iremos dormir ouvindo as gaivotas, com o sol da meia-noite entrando pela janela e treinando falar, entre sorrisos, o nome mais curioso que poderíamos imaginar: Å, cuja sonoridade lembra um "eau" francês mal-pronunciado - [o:].

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Roteiro da auto-cozinha na Noruega

Na Noruega, comida (como de resto qualquer outra coisa) é algo extremamente caro para os nossos padrões.
Acontece muito em viagens: nos primeiros dias, assustamo-nos com o preço das coisas e nos privamos delas; aos poucos, vamos nos acostumando (e "esquecendo" de converter os preços), pois só assim é possível aproveitar os passeios... Mesmo assim, aprendemos logo que a Noruega não é um país onde visitantes brasileiros podem ir a restaurantes e sair impunes: a conta da mais simples refeição é suficiente para fazer doer o estômago! Claro que em um ou outro momento nos permitimos extravagâncias, até porque não faria sentido viajar para não aproveitar plenamente o lugar... Mas, no geral, precisávamos de outra estratégia que não fosse confiar em comer fora todos os dias.
Havia ainda outro fator: a Renata é vegetariana, e nem sempre é fácil encontrar opções vegetarianas em lugares onde o clima não é dos mais propícios à agricultura. A Noruega é um país carnívoro.
A solução exige certa dose de trabalho e de planejamento, mas (talvez por isso mesmo) acaba permitindo um componente personalíssimo: preparar nossas próprias refeições. Mais do que à alta cozinha, dedicar-se à "auto-cozinha". Acaba sendo lúdico. Nem sempre é viável, claro, pois às vezes ficamos hospedados em lugares onde não há cozinha. Aí pelo menos montamos algum sanduíche para comer com suco ou iogurte. (A propósito, adoramos as máquinas de fatiar pão! Comprávamos pães e mais pães quase que só para cortá-los na máquina...)
Foi só quando chegamos em Ålesund, depois de já estar viajando há alguns dias, que ficamos num albergue que oferecia cozinha. Já chegamos ansiosos: preparar comida de verdade! A primeira coisa que fizemos em Ålesund foi, naturalmente... procurar um supermercado aberto para comprar víveres! Voltamos ao albergue com todos os ingredientes para um autêntico risoto de cogumelos e aspargos e - dito e feito - foi o que comemos naquela mesma noite. Enfim, tínhamos à nossa disposição uma cozinha razoavelmente equipada, e com modernos fogões a indução. O problema passava a ser outro: dali a pouco estaríamos voando para outra cidade, então não podíamos nos dar ao luxo de deixar sobrar muita comida. A logística da viagem ganhava um componente gastronômico!
Fomos para Lofoten e lá tínhamos à nossa disposição o que de melhor podíamos esperar: uma cabana com cozinha equipada inteira para nós! Não que tivéssemos toda noite uma refeição muito elaborada mas, do omelete clássico francês a legumes com molho de queijos, alguns pratos interessantes saíram daquela cozinha. No meio tempo, descobríamos produtos típicos noruegueses, como o brunost - um queijo de cor castanha e sabor adocicado. E também itens prosaicos como Lion em sua versão cereal matinal - Lion é um chocolate da Nestlé que, além de saboroso, tem valor sentimental para nós.
De um canto para outro da Noruega, viajamos de avião, ônibus, barco, carro. À medida que os dias passavam e nos aprofundávamos no país, nossa despensa itinerante ficava mais complexa: chegamos a carregar itens como pão, queijo, azeite, leite, suco e até cenouras em nossas andanças. Debaixo do temor de que alguma embalagem estourasse, fazer e desfazer a mala envolvia sempre fortes emoções.
O bom era chegar em algum lugar e saber que o quarto possuía frigobar. Mas às vezes não tinha. Então tratávamos de empilhar os itens mais sensíveis na janela, garantindo assim que o próprio frio exterior os mantivesse gelados. Quando visitamos Piramida, vimos que os prédios do local dispunham de "geladeiras naturais" - buracos nas paredes que um desavisado poderia confundir, à distância, com instalações para pequenos aparelhos de ar-condicionado, mas que serviam para gelar alimentos aproveitando o frio polar. Como invejamos aquelas "geladeiras"!
Ao chegar a Oslo, nossa última parada, já estávamos nos comportando quase como locais: guardávamos as latas de refrigerante vazias para encaminhá-las para a reciclagem, colocando-as nas máquinas próprias para disposição de embalagens que devolviam uma coroa por cada lata depositada. Nessa altura, também, depois de passar por vários mercados de diferentes cidades, estávamos viciados num item bem específico: muffins do Bunnpris! Assim: Bunnpris é uma rede norueguesa de supermercados, e muffin é o bolinho que conhecemos por muffin mesmo. Havíamos descoberto que a maioria dos supermercados da rede Bunnpris vendia uns muffins deliciosos, com recheio farto e textura perfeita, capazes de satisfazer os mais exigentes padrões de gordice. Bem, em Oslo não tínhamos mais cozinha nem frigobar (e, além disso, não fazia muito frio, o que inviabilizava nossa "geladeira natural" na janela do quarto), então não havia mais muito o que comprar nos mercados, só cozinharíamos novamente quando voltássemos ao Brasil. Mas continuávamos nosso roteiro das gôndolas (de supermercado), procurando agora algo bem específico: um Bunnpris que vendesse tais muffins! Não era tão fácil assim, porque vários Bunnpris de Oslo simplesmente não tinham aqueles doces... Aparentemente a rede é maior e mais forte no centro e norte do país que no sul. Acabamos achando os muffins num supermercado já não tão perto de nosso hotel, mas que valia a caminhada: passear por Oslo já seria um prazer, ainda mais com aquele prêmio saboroso no final do caminho. No outro dia, nosso último dia na Noruega, demos um jeito de passar novamente lá por perto para nos reabastecermos de muffins. Acabou sendo um pouco decepcionante: havia bolinhos, mas dava para perceber que não eram frescos e sim os que haviam sobrado do dia anterior. Uma pena. Pareciam indicar que, inegavelmente, já era hora de voltar para o Brasil.

domingo, 12 de julho de 2015

79° N: ursos, gaivotas e fantasmas

Ali, quase tocando o paralelo 79° N, está Пирамида. Ou o que sobrou dela. Пирамида - Piramida - ou Pyramiden, como dizem os noruegueses, foi um povoamento soviético que floresceu durante certo tempo na longínqua e polar Svalbard graças ao carvão lá existente e à sua importância estratégica em tempos de Guerra Fria - era a extremidade mais setentrional da Cortina de Ferro. Agora, o que faz de Piramida um lugar inusitado, fantástico, é que se trata de uma cidade-fantasma, no melhor estilo faroeste. Após o fim da União Soviética, já não fazia sentido para a Rússia manter operando uma velha mina de carvão nos confins do planeta. E, sem a mina, a cidade, que no seu auge chegou a ter mil moradores, também não fazia sentido. Os russos foram embora, levando consigo o que se podia e valia a pena carregar, e deixando para trás muitas outras coisas. Isso foi em 1998. O tempo passou, mas de certa forma é como se para além do Círculo Polar ele passasse mais devagar: o frio ajuda a conservar o que restou de Piramida, envolvendo-a numa baita geladeira natural (vejam Piramida cercada por gelo no Google Maps, é impressionante).
Chegamos a Piramida num barco saindo de Longyearbyen. Desembarcamos no cais que outrora servia para o transporte de carvão e, entre estruturas desativadas e abandonadas, somos recebidos por Sasha.
Sasha é um homem magro e barbado, vestindo chapéu e casaco russos, que parece saído de um filme ou álbum de quadrinhos - um antagonista de 007 ou de Tintim? Sasha, na verdade, saiu de São Petesburgo e veio parar em Piramida, onde nos leva para conhecer a cidade (o que resta dela). Suas roupas são talvez exageradas, mas o rifle a tiracolo é não apenas real como de praxe: está lá para proteger contra eventuais ursos polares. Em Svalbard há mais ursos que pessoas e a sua caça é proibida desde 1973. Confrontos com ursos, embora raros, são uma possibilidade, e o rifle é uma das precauções que se tomam.
Percorremos com Sasha as ruas de Piramida. Ver aqueles prédios abandonados, fechados e vazios, numa cidade silenciosa, é impactante. Entramos na casa de cultura e encontramos desenhos infantis, trabalhos escolares, em algumas paredes. Um auditório escuro e vazio e, no palco, um empoeirado piano de cauda - o piano mais setentrional do planeta, dizem. Uma quadra esportiva onde não há mais jogos. Uma escola. Um hospital. Um refeitório nos moldes soviéticos. Em frente à casa de cultura, o busto de Lenin (também o mais setentrional do planeta) continua imóvel a vigiar a praça central, mas não há mais nenhum camarada a ser vigiado. Aqui e ali, encontramos fragmentos de vidas passadas, memórias deixadas para trás, histórias que parecem interrompidas. Uma cidade é um lugar estranho quando nela não há gente; que identidade lhe resta? Fica-se a imaginar o que terá sido feito das pessoas que deveriam estar ali, como se caminhássemos por uma Chernobyl, apenas sem a radiação, a um tempo preservada e arruinada.
Sasha então nos confidencia que Piramida não está abandonada por completo. Aponta dois prédios que voltaram a ser habitados. O primeiro é o antigo hotel, que voltou à ativa e é mantido por seis empregados, um dos quais Sasha em pessoa. O hotel possui um bar em funcionamento para atender os visitantes que, no verão, vêm de Longyearbyen conhecer Piramida. Também possui, está claro, alguns quartos para hóspedes, embora eu não consiga imaginar quem se aventure a dormir por lá. O segundo prédio apontado pelo nosso guia é habitado por um grupo bem mais numeroso e barulhento: dezenas ou centenas de gaivotas escolheram-no para fazer seus ninhos. Já quase prontos para deixarmos (nós também) Piramida, percebemos: alheia ao nosso mundo, a velha cidade russa segue viva no grasnido dessas gaivotas.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Para o norte e avante

Eduardo TrindadeEduardo TrindadeRumo: norte. Foram duas horas sobrevoando o mar (antes, houve toda uma viagem até a improvável cidade de Tromsø). Então o avião embicou, rasgou as nuvens, despistou algumas montanhas nevadas e pousou na pista que apareceu à sua frente. Estávamos em Svalbard. Svalbard, arquipélago norueguês a apenas mil quilômetros do Polo Norte, onde tudo que há é o mais setentrional do planeta: o local mais ao norte permanentemente habitado pelo homem; a igreja mais ao norte; o hospital, o spa, o mercado, o museu, o busto de Lênin... tudo mais ao norte. Svalbard, reino do urso polar - soberano do gelo - e da majestosa baleia-azul, soberana dos mares, o maior animal que nosso planeta já viu.
Eduardo TrindadeDescer em Svalbard é surpreendente. No entanto, à chegada, o que choca pelo menos tanto quanto a natureza é a presença humana. Quase no verão, com boa parte da neve já derretida, pisa-se num terreno pedregoso e arenoso, uma legítima paisagem lunar. E vê-se as marcas de uma corrida espacial bem humana: ruínas de minas de carvão, grandes contêineres, barcos, máquinas diversas (umas em funcionamento, outras desativadas). Chegamos à nossa pousada, adaptada num antigo alojamento para mineiros, e a impressão se acentua, como se estivéssemos num cenário (entretanto real) de faroeste: a decoração inclui um pórtico com galhadas de renas, peles de foca pelo chão, peles de raposa penduradas, velhas fotos de mulheres seminuas e de caçadores com suas presas. É preciso um tempo para se acostumar com esse clima e entender que ele, afinal, representa bem a história de Longyearbyen (a principal cidade, onde estão 2000 dos 2600 humanos do arquipélago) e seu passado de caçadores, exploradores e mineiros. Só então passamos a desfrutar do aconchego polar e da vista da janela, por onde desfilam patos com seus filhotes, além de várias outras aves, uma raposa do ártico e, um pouco mais além, algumas renas.
Eduardo TrindadeDepois, de barco, permitimo-nos conhecer Svalbard em seu estado mais natural: geleiras, icebergs, platôs e montanhas com o topo nevado, algumas focas à distância e muitas aves. Revimos puffins! Bandos de puffins grandes, com o bico colorido e a graça de sempre. O sol da meia-noite: já experimentáramos a falta de escuridão no continente, mas aqui ela é mais extrema, o sol sequer chega perto de tocar o horizonte. Com isso, perde-se facilmente a noção da hora. Frio nem tanto (é verão), mas um vento (literalmente polar) de cortar a espinha nos trajetos de barco. Trilhas com e sem neve, placas avisando da possibilidade de um urso cruzar de repente o nosso caminho (nenhum grupo sai do povoado sem estar armado de rifle), snowmobiles, morro acima e morro abaixo, rios e cachoeiras. Fósseis de antigas histórias gravadas nas pedras, flores minúsculas, vidas persistentes no clima inóspito. Escolas, hospital e pesquisadores do Ártico. Povoados vivos e uma cidade morta que não sobreviveu à Guerra Fria. Svalbard surpreende pelo tanto de improbabilidades que esconde.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Ilhas Lofoten

Tomamos o avião para o norte da Noruega. Nossa conexão era na cidade de Bodø, além do Círculo Polar: lá pegaríamos um outro voo, o qual ainda faria uma escala antes de pousar em Svolvær.
Esse último voo já deu um vislumbre do que seria essa parte da viagem, pois o avião (pouco mais que um teco-teco) nos brindou com a bela vista das ilhas Lofoten enquanto passava pelos fiordes, entre as montanhas.
Svolvær é o centro administrativo e uma das principais cidades de Lofoten. E Lofoten é daqueles lugares cênicos de encantar qualquer um. A maioria das cidades é, na verdade, pequenas vilas que vivem da pesca do bacalhau (boa parte do que se consome no Brasil vem daqui). O litoral é recortado e as ilhas são plenas de picos nevados. A paisagem é linda e, à primeira vista, pode até confundir o visitante. Nem tanto, talvez, mas preciso salientar isso para justificar que, quando chegamos, pegamos o carro e dirigimos uns 60 quilômetros... na direção errada. Eu bem que desconfiei que estávamos demorando demais a chegar, mas só descobrimos o erro quando a estrada acabou e o caminho a seguir seria por balsa! A verdade é que eu esquecera de conferir o endereço de destino no GPS e ele estava nos levando para outra ilha...
Após tomar o caminho certo, não foi difícil achar nosso rorbu - rorbu é o nome que os noruegueses dão a suas típicas cabanas para visitantes, tradicionalmente usadas por pescadores e, atualmente, procuradas pelos turistas que se aventuram na região. Nada melhor para entrar no clima de Lofoten!
Choveu mais do que esperávamos e gostaríamos. Sempre de uma chuva esquisita, que vinha e voltava... Chovia, parava e voltava a chover algumas vezes por dia. Estando de carro, a impressão era a de nuvens compenetradas fazendo seu trabalho em pontos específicos das ilhas. Mas nada que nos atrapalhasse tanto. Não tanto quanto o vento que, quando vinha, fazia valer a imagem que temos do Ártico!
Fomos além. Na ponta da parte maior do arquipélago, está Å, que ganhou facilmente o título de lugar com o nome mais curioso que já visitamos. Ficamos hospedados no andar de cima de um prédio onde se limpava peixe e chegamos a temer que o quarto tivesse tanto cheiro de peixe quanto o que se sentia ali. Não tinha. Em compensação, as toalhas eram postas para secar praticamente junto com o bacalhau e tinham o cheiro típico de Lofoten.
De Å, navegamos até Røst - a última ilha a oeste, que tem uma paisagem diferente das demais e talvez com mais bacalhau que todas as outras - o peixe é posto para secar em grandes armações de madeira parecendo varais por toda a ilha. Røst também foi o lugar de Lofoten que escolhemos para ver as colônias de puffins! Não pudemos chegar tão perto deles quanto em Mykines, mas mesmo assim é bom vê-los voando, nadando ou simplesmente boiando na água.
Para ir embora de Lofoten, outro teco-teco... Røst é maior do que eu pensava antes de conhecê-la, mas não a ponto de ter ônibus. Então pegamos o único táxi da ilha. No trajeto de três quilômetros até o aeroporto, uma breve e bem-humorada conversa com o motorista. Ao final, ele nos levou a tempo de tomarmos nosso voo, um dos poucos que saem do minúsculo aeroporto, e ainda aproveitou para perguntar, com um sorriso nos lábios: "you said Terminal 1, right?"