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A igreja e o escritório de Mustafa ficam em duas
destas formações rochosas de Göreme, Capadócia. |
A Capadócia é cheia de igrejas. Mas não estou falando de igrejas com as que estamos acostumados a ver, aos montes, em nossas cidades. Refiro-me a antigas igrejas bizantinas esculpidas em cavernas areníticas. É difícil descrever. Dizer que são vestígios da época em que S. Paulo, S. Jorge, S. Cosme e S. Damião andaram por aqui aumenta a dramaticidade, mas não é esse o ponto. As antigas igrejas da Capadócia são impressionantes por si só, pelo que têm de história, de arte e de capricho da natureza.
Caminhando hoje de manhã, cerca de um quilômetro fora da cidade, topei com El-Nazar, a primeira das tais igrejas. Fui me aproximando aos poucos (toda esta região merece ser vista com calma). Quando cheguei, um senhor veio ao meu encontro, cumprimentou-me e me indicou uma outra construção esculpida na rocha e identificada como "ticket office". Convidou-me a entrar e entrou logo em seguida. Cheio de mesuras, indicou-me uma cadeira enquanto atiçava o aquecedor a carvão para fazer frente ao gélido inverno da Anatólia. Pôs-se então calmamente a preparar chá, volta e meia me falando alguma coisa.
Notei que ele sabia quase nada de inglês pela maneira como respondia às minhas perguntas com um sorriso ingênuo e repetindo "yes, yes". Reparei que eu também fazia a mesma coisa: balançava a cabeça a cada frase em turco que ele me dirigia e das quais eu entendia muito pouco.
Confesso que minha primeira impressão tinha sido: lá vou eu perder meia hora para comprar o ingresso de algo que verei em no máximo cinco minutos. Mas não foi bem assim.
Aos poucos, pude reparar melhor em meu anfitrião. Mustafa, bigode à turca, terno e gravata, "botton" de
Atatürk na lapela, nascido e criado nos arredores, torcedor do Besiktas. Apontou-me no jornal que o Galatasaray, o outro time de Istambul, tinha aplicado uma virada de 4x2 na noite anterior (o que me surpreendeu porque eu havia visto um relance da partida e o Galatasaray perdia por 2x0). Em seguida deixou o jornal de lado, com um gesto e uma frase que só podiam significar "são apenas as mesmas notícias de sempre".
O chá ficou pronto, Mustafa serviu cuidadosamente duas taças (reparei que a minha era um pouco mais fraca que a dele), abriu a gaveta, tirou um pacote de bolachas e me ofereceu uma. Enquanto tomávamos chá, reparei no ambiente, um misto de cozinha, sala e escritório. Além do aquecedor a carvão, uma espécie de fogão a gás; um radinho de pilha que ele sintonizou em alguma estação de música turca; um calendário na parede (são comuns por aqui os velhos calendários com uma folhinha para cada dia do ano); ao fundo, um retrato de Atatürk.
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Interior da igreja. |
Terminamos de beber e Mustafa ofereceu mais chá, mais bolachas. Recusei e, um tanto constrangido, insinuei: visitar a igreja? Ele sorriu e - ah, sim, a igreja! Sacou um bloquinho de ingressos da gaveta. Paguei e nos levantamos, saímos e ele me acompanhou à igreja. No caminho, um dos muitos cachorros turcos fez graça para Mustafa e ele respondeu. Perguntei se o cachorro era dele e me disse que sim, mas não sei se ele entendeu a pergunta.
A igreja vale a visita, mas vale mais acompanhada por Mustafa. Ele sabe cada detalhe das pinturas nas paredes e é engraçado vê-lo apontar e fazer mímicas: o número 12 com as mãos, e entendo que são os apóstolos; uma sutil agachada e então um salto como quem quer voar, eis a Ascenção. Mustafa me abraça e percorre cada canto da pequena igreja comigo, nenhuma das imagens fica de fora. Pergunto se ele é cristão ou muçulmano e ele responde, orgulhoso, que é muçulmano. Digo que
visitei algumas mesquitas em Istambul e ele leva a mão ao peito em sinal de aprovação.
Na saída, penso em dar a ele uma gorjeta e levo a mão ao bolso, mas desisto ao descobrir que só tenho umas moedas insignificantes. Não quero ofendê-lo. E, a julgar pelo sorriso dele ao se afastar, acho que faço certo. De qualquer maneira, muito obrigado, Mustafa Efendi.