terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Muito além da burca

Talvez se possa dizer que os países árabes, de forma geral, são os que mais são vistos com preconceito no Brasil. Claro que isso tem uma série de motivos, como a relativa distância (física e cultural) desses países, uma deficiência da nossa educação, uma imprensa parcial e (por que não) uma certa preguiça de aprender sobre outras culturas antes de repetir ideias fáceis sobre elas. Uma pena, eu acho... Mas não é minha intenção aqui discutir esses motivos.
O fato é que viajar - e viajar de mente aberta - costuma ser dos melhores antídotos contra preconceitos assim.
É verdade que, nos Emirados (e suponho que na maioria do mundo árabe), aspectos culturais e religiosos se entrelaçam, e nem sempre é fácil distinguir o que é um hábito cultural do que é um preceito islâmico. Apesar disso, eu suponho que, em muitos casos, a questão cultural seja mais forte que a religiosa - exatamente como acontece no Brasil e em outras partes do mundo, onde mesmo quem não é cristão fervoroso, muitas vezes, procura casar na igreja, comemorar o Natal, fazer o sinal da cruz antes de uma cobrança de pênalti ou uma decolagem de avião...
Algumas descobertas. A burca, aquele tecido que cobre completamente o corpo feminino, tristemente famoso no Ocidente por culpa do regime talibã, é a menos comum das vestimentas associadas ao Islamismo. E particularmente nos Emirados Árabes, um país repleto de estrangeiros, é extremamente comum que as mulheres usem simplesmente roupas ocidentais ou ocidentalizadas. À parte isso, o que se vê bastante é o hijab, véu na maioria das vezes preto que cobre os cabelos e é usado juntamente com uma abaya - vestido longo tradicional. Nesse ponto, sei de gente que fala ou falaria coisas como: as muçulmanas não podem sequer mostrar os cabelos! elas são obrigadas a esconder o corpo debaixo daqueles panos pretos! e por aí afora. Bem, eu normalmente tento ao máximo entender qualquer questão cultural antes de criticá-la, e cheguei a algumas conclusões que repito com convicção. Uma, que (ressalvados exageros como os de alguns extremistas) elas não são obrigadas a nada, ou pelo menos não sofrem nenhum constrangimento muito diferente das mulheres no Ocidente - que, se pensarmos um pouco, não podem mostrar o peito da mesma forma que os homens fazem, e são levadas a atitudes "estranhas" como raspar as axilas ou mutilar o corpo, perfurando as orelhas desde a tenra idade para então enfiar nelas pedaços de metal - brincos. É tudo escolhas culturais. Outra conclusão, em geral as mulheres árabes realmente apreciam o que vestem, tanto é que muitos dos trajes típicos são lindos e ricamente elaborados. Elas ostentam uma abaya com o mesmo orgulho que uma ocidental usaria um brinco ou um vestido; exibem um hijab como no Brasil se exibiria um corte de cabelo. Mais ainda, sentiriam-se humilhadas e tolhidas na sua liberdade não pela suposta "obrigação" de usar determinado traje, mas sim se as proibissem disso, da mesma forma que seria vexamoso a uma ocidental se lhe arrancassem parte da roupa.
Mas nem só de teoria sociológica é feita nossa viagem. A verdade é que ficamos fascinados pelas roupas árabes que víamos expostas nas lojas e nos mercados. Num desses, em Dubai, o vendedor acabou vestindo eu e a Renata dos pés à cabeça, explicando como colocar cada peça. Não compramos as roupas; por mais persuasivo que fosse o vendedor, e ele era bastante, não estávamos dispostos a pagar tanto por algo que não voltaríamos a usar. Mas compramos um hijab (véu) para ela e uma ghutra (turbante) para mim, que acabamos usando um pouco durante o restante da viagem. Como estávamos longe de ser especialistas nessas peças, cuja colocação é mais intrincada do que aparenta ser (e que varia de acordo com preferências pessoais, regionais e de moda), baseávamos-nos nas indicações do vendedor, em vídeos do Youtube e em algum improviso.
Pois bem, poucos dias depois de ter comprado a ghutra, estava eu usando-a quando passa por mim um Porsche 911, diminui a velocidade e faz um sinal positivo, apontando para a minha cabeça. A interpretação lógica é a da aprovação de um nativo a um estrangeiro que, de alguma forma, parece demonstrar apreço pela cultura local. Sigo com mais segurança.
Mais alguns dias, estamos noutro lugar e eu novamente com a ghutra na cabeça. Sou abordado e me perguntam, apontando para minha cabeça: quem fez isso? Respondo que eu mesmo. Meu interlocutor é rápido e solícito: vem cá, vou arrumar para ti! Com prática, desfaz minha obra e refaz a colocação do lenço, dizendo ao final que agora sim está da forma como fazem no país... Agradeço e assumo minha ignorância da moda árabe, enquanto a Renata, que há dias reparava na minha incapacidade de acertar a forma correta de colocar um pano sobre a cabeça, não contém a risada...

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Teoria e prática do ilusionismo com tâmaras

por Eduardo TrindadeDe forma geral, dá para dizer que nos demos bem com a comida dos Emirados. Para começar, a oferta é tão variada quanto a quantidade de imigrantes que lá vivem, o que significa diferentes opções de cozinhas ocidentais, árabes, chinesas e sobretudo indianas. Sem contar que tínhamos quartos de hotel amplos e equipados para preparar nós mesmos algum lanche (o primeiro quarto em que ficamos tinha mesmo uma cozinha em estilo americano). Portanto, um prato cheio para exercitarmos a arte de investigar a oferta dos supermercados locais!
A tâmara é a estrela da comida árabe. Está em todos os lugares, de diferentes variedades e com diferentes apresentações - frescas ou secas, inteiras ou com os mais criativos recheios, desde lascas de limão até macadâmias. E as tamareiras são figura fácil na paisagem emiradense, seja nas cidades ou no deserto. Antes mesmo de descobrir tudo isso, descobrimos as tâmaras frescas num supermercado e compramos um punhado - mais precisamente, um cacho - para experimentarmos. À primeira mordida, decepcionamo-nos um pouco: aquelas frutas pequenas têm a consistência aproximada de uma pera, talvez um pouco mais duras, e são extremamente doces. A impressão é quase a de morder um torrão de açúcar, tão doce que chega a ser sem graça.
Indo além, fomos provando outras iguarias, como o falafel (bolinho árabe), o kebab, o samosa (pastel indiano) e até uma autêntica sfiha (esfirra). Eu tinha boas lembranças das culinárias da Turquia e da Índia, e isso me deixou mais confiante para provar comidas da mesma família. Confiante até demais. Num dos lugares em que jantamos, pedi um biryani (prato de arroz indiano) e o dito cujo teria sido uma boa escolha, não fosse a quantidade absurda de pimenta que me fez pensar que era aquilo que serviam em "Como treinar seu dragão". Cuspindo fogo, ataquei meu copo de lassi (iogurte indiano), apostando nele para refrescar a ardência da boca. Mas a coisa só ficou pior, porque o lassi, contrariando as bebidas doces a que estamos acostumados, tinha um bocado de sal e pimenta...
Apesar de tudo, sobrevivi, e sobrevieram experiências melhores. Nos dias seguintes, fui compensando a overdose de pimenta com várias tâmaras recheadas. Já aquelas tâmaras frescas, que havíamos comprado logo no começo da viagem, ficaram meio que esquecidas a um canto do quarto.
Seguimos. De Dubai, o próximo destino era Abu Dhabi. Obviamente levamos conosco as tâmaras, frescas e secas.
Em Abu Dhabi, nós nos hospedamos no hotel de uma cadeia internacional - definitivamente, os Emirados são a terra das grandes franquias de hotéis, não de pequenas pousadas ou de empreendimentos familiares.
Acontece que, ao voltarmos para o quarto depois do primeiro dia de passeio em Abu Dhabi, reparamos que estavam faltando duas frutas no cacho de tâmaras que havia ficado sobre a mesa. O sentimento foi de perplexidade. "Não... Não pode ser...", pensamos.
No outro dia, o número de tâmaras voltou a diminuir. Continuamos incrédulos.
Até que nos restou uma única tâmara presa ao cacho. O jeito foi reagir com ironia: "Será que a camareira vai ter coragem de comer a última tâmara? Mas quem come a última não casa... E se comer, será que vai deixar o galho vazio ou vai jogá-lo fora?"
Mais um dia, a tâmara continuava lá. Chegamos a pensar que ela estava a salvo.
Doce, doce ilusão: no dia seguinte, o cacho e a última tâmara tinham desaparecido sem deixar rastro, tão definitivamente que chegamos a duvidar de que os tínhamos visto alguma vez.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Emirados Árabes

E aconteceu que foram os Emirados Árabes o primeiro país do Oriente Médio a ser visitado por mim.
Chegamos um tanto cheios de cuidados: mesmo sabendo que se trata de um dos países mais tranquilos da região, havia uma série de informações sobre como se portar com "decência", usar as roupas adequadas, não demonstrar afeto em público etc.
Acabamos descobrindo que a regra principal lá (como provavelmente em qualquer lugar do mundo) é o bom senso. As roupas que as mulheres usam, por exemplo, há de todos os tipos, desde o nível prostituta-de-Copacabana até o nível  burca talibã - e fica evidente que o bom senso se localiza no meio do espectro. Aliás, a roupa que se usa nos Emirados merece um capítulo à parte.
Talvez a maior diferença seja mesmo que os casais, quando em público, evitam andar abraçados e trocar beijos. Embora, procurando com atenção, seja possível ver algum par árabe de mãos dadas.
O que chama a atenção é a quantidade de estrangeiros: o país tem mais imigrantes que emiradenses. Na rua, todo mundo pergunta de onde somos e acaba sendo interessante quando perguntamos de volta e descobrimos pessoas de vários lugares da Ásia ou de outras partes do mundo.
Boa parte dos ocidentais, quando pensa nos Emirados, lembra de Dubai e, em menor escala, de Abu Dhabi. Não à toa; são cidades que impressionam. Não me espantaria descobrir que o país tem proporcionalmente uma das populações mais urbanizadas do mundo, afinal a terra por lá é inóspita e viver fora das cidades é um desafio. Ainda assim, é incrível pensar em como essas cidades cresceram e se desenvolveram em tão pouco tempo. O que não tira o fascínio de se passear além dos grandes centros: o interior também tem paisagens e pessoas únicas.
Enfim, viajar aos Emirados é um mergulho cultural daqueles que dificilmente se consegue de outra forma. E o que é melhor: mergulha-se de forma tranquila, sem grandes medos ou sustos. Aprende-se um pouco a cada carona na estrada, a cada prato de comida, a cada barganha no mercado.

sábado, 25 de outubro de 2014

Na ilha dos puffins

O puffin, ou papagaio-do-mar, é a ave mais cativante que eu já vi. E não seria exagero dizer, como fez a Renata, que essa avezinha de bico laranja e olhos tristes mudou a nossa vida. Já contei um pouco dessa história aqui e ali, nas minhas postagens; assim, um leitor atento sabe que nos apaixonamos pelos puffins, mesmo sem tê-los visto, durante nossas férias nórdicas de 2013. E sabe também que um dos principais motivos para termos voltado às Ilhas Faroe em 2014, além do genuíno encanto pelo lugar como um todo, foi o desejo de ver os puffins.
Foi assim que, de um jeito bem natural, Mykines se tornou um destino de viagem indispensável. Trata-se de uma das menores ilhas faroesas, com uma população permanente de 14 pessoas, que é o paraíso das aves - e particularmente dos puffins.
Há quem vá a Mykines e volte no mesmo dia. Claro que iríamos querer mais do que isso. Com boa antecedência e por telefone (suponho que não haja Internet em Mykines), tratei de reservar um quarto na única pousada da ilha.
Quando chegamos, fomos recebidos no casarão de madeira por uma simpática moça sueca - Greta - que nos orientou a achar nosso quarto, no andar superior. Seguindo o que entendemos das instruções dela, passamos por uma porta, entramos no prédio geminado, subimos as escadas e, já no quarto, largamos nossas coisas. Retornamos. Greta nos perguntou se tínhamos achado o quarto, ao que respondemos que sim. Ela: "mas não ouvi o barulho de vocês na escada!" Descobrimos que tinhamos ido ao lugar errado... Um pouco envergonhados, voltamos lá, buscamos a bagagem e, agora sim, instalados no quarto certo, descemos novamente.
Tomamos um sorvete no andar de baixo da pousada, que também é a única lancheria da cidade. Tomamos apenas sorvete; economizávamos dinheiro por saber que não havia caixa eletrônico nem possibilidade de usar cartão na ilha. Greta conversava conosco e contava histórias. Em seguida saímos, ávidos que estávamos para procurar os puffins.
Para isso, há que se sair do vilarejo e tomar uma trilha subindo uma longa colina. Com a temperatura abaixo de 10 graus, começou a chover. Não desistimos, embora sentíssemos os sapatos e as roupas molhando; a ansiedade era tanta que continuamos subindo. Lá pelas tantas, eis que vemos um puffin! Um único, parado na relva, a meia distância... O bastante para ficarmos observando, admirados. Depois, vimos mais outro... Após algum tempo, saciada a ansiedade - considerando que chovia e que teríamos mais tempo para explorar a ilha no dia seguinte - resolvemos voltar à pousada. Com frio e com as roupas encharcadas (o que era crítico porque quase não tínhamos trazido mudas, deixáramos a maior parte da bagagem em Tórshavn), entramos no quarto. Enquanto eu bolava técnicas de secagem de meias, sapatos e calças, pendurando-os no aquecedor do quarto ou aproximando-os da lâmpada incandescente, a Renata foi tomar banho. Havia um banheiro ao lado do nosso quarto, mas que estava com a placa "Bad". Outra placa, na lancheria do andar de baixo, instruía a não usar aquele banheiro. Deduzimos que a alternativa era o do anexo, o que, apesar de um pouco incômodo, não chegou a nos surpreender. Foi só a observação da Renata após o banho, de que aquele banheiro do anexo "não era usado há muito tempo", que nos deixou com a pulga atrás da orelha... Resolvemos perguntar se podíamos usar o banheiro ao lado do nosso. "Claro!", a resposta. E lá fui eu, tentando esconder as orelhas asininas, afinal "bad", em feroês, na porta de um banheiro, só pode significar "banheiro", e nem em inglês significaria "defeituoso".
O dia seguinte foi dedicado a caminhar pela ilha, percorrendo a trilha que leva até o farol e através de uma curiosa ponte de madeira que, rigorosamente falando, atravessa o Atlântico. No caminho, ovelhas e várias espécies de aves. E principalmente, claro, os puffins! Não um ou dois, mas dezenas, centenas deles! Voando, boiando no mar, espalhados pela grama... Com seus passinhos, seu jeito único de levantar voo e de pousar... Estávamos realmente maravilhados com os puffins e perdemos até a noção do tempo, ali, observando-os. Passamos o dia assim: caminhando pela ilha e admirando as aves. De comida, para economizar, apenas lanchamos: chocolate e besteiras trazidas de Tórshavn. 
por Eduardo Trindade
Mas ainda não tínhamos esgotado nossa cota de "micos". De noite, a moça da pousada veio nos avisar: o café da manhã é servido no andar de baixo e está incluído na diária. O quê? Tínhamos passado as últimas mais de 24 h comendo quase nada, quando tínhamos um café da manhã à nossa disposição? Isso mesmo. Mas, àquela altura, só nos restava irmos dormir, esperando sonhar com puffins e com comida.
O café da manhã realmente valeu a pena (e nos fez sentir um pouco mais tolos por tê-lo perdido no dia anterior). Os puffins... Acho que, depois de tudo, não preciso acrescentar nada. Ainda vamos voltar a Mykines para visitá-los novamente!

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Um relógio de corda

Admito que minha última crônica não foi muito simpática com os andorranos. Acontece: todos estamos sujeitos a experiências (digamos) desconcertantes e, quando elas se passam num lugar desconhecido, a tendência é associarmos o lugar às experiências. Mas que fique claro que situações marcantes ou constrangedoras não são a regra e que eu teria o maior prazer em voltar a Andorra. Até porque também encontramos gente muito simpática por lá, como os adoráveis donos da pizzaria La Cantina, um lugar agradável e ao pé do nosso hotel. Ou como na creperia Els Teus Sentits. Andorra é um lugar onde se come bem, em ambientes convidativos e bem cuidados.
E é, sim, sobretudo, um lugar de compras. Se contei antes de tentativas frustradas, devo falar que também fui bem sucedido.
Assim que saíamos do hotel, passávamos em frente a uma loja que oferecia uma série de objetos quase que artesanais, e sempre inusitados, bem diferente das outras lojas - de eletrônicos, perfumes ou roupas. Curiosamente, porém, sempre passávamos ali quando a loja estava fechada, ou fechando, ou em horário de almoço, e só olhávamos através da vitrine. Namorávamos um relógio exposto, cada vez mais hipnotizados, até que no último dia fizemos questão de ir à loja num horário em que ela estivesse aberta e lá entrar.
"Hipnotizados" é a palavra certa. Estou falando do relógio que ilustra esse texto e que, claro, acabei comprando.
O que primeiro chama a atenção nele é o movimento do pêndulo, para lá e para cá - só ele já seria bastante original. A construção do mecanismo também é inusitada: aparente e toda em madeira, pode não ser o sistema mais preciso do mundo, mas é realmente muito bonito e inclusive mesmo didático. Um espetáculo de relojoaria. E, enfim, estamos falando de um legítimo relógio de corda. Ou seja, nada de pilhas: o que move o relógio é a gravidade, através da mais literal de todas as formas de se "dar corda" a um mecanismo.
Para completar, cuidava da loja uma senhora que era uma amor de pessoa, detalhou o funcionamento do relógio (de fabricação catalã inspirado em projeto do século XVII, segundo ela), fez a venda e embrulhou cuidadosamente o objeto numa caixa de papelão.
A história poderia terminar aqui. No entanto, de Andorra ainda passaríamos por outros países - faltavam cinco voos de avião antes de voltarmos para casa. A caixa com o relógio foi minha bagagem de mão em cada um desses voos. E, em cada aeroporto, aquela caixa com um mecanismo inusitado (e com os pesos do relógio) suscitava reações diferentes ao passar pela inspeção de raio X. Em todos eles, tive de parar e explicar o que continha a caixa. Então, às vezes a pessoa da segurança, olhando novamente o raio X, subitamente enxergava o objeto, abria um sorriso e fazia perguntas sobre o funcionamento do relógio ou onde eu o havia comprado. Noutras vezes, pediam para abrir a caixa, o que era incômodo pois ela estava envolta em fita adesiva e o relógio, cuidadosamente acomodado dentro dela. Até que, numa dessas, após inspecionar o relógio, o funcionário me fez a gentileza de fechar a caixa com uma fita especial, que dizia "Security OK". Graças a isso, nas inspeções seguintes, não precisei mais abrir a caixa - os funcionários perguntavam de que se tratava, olhavam para o volume lacrado, em seguida para a imagem do raio X, pensavam um pouco e em seguida me deixavam seguir. Nada excepcional, é verdade, mas eu não conseguia deixar de achar graça, especialmente porque aquilo sempre lembrava minha experiência anterior com um samovar.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Às compras em Andorra

Andorra, e Andorra la Vella em particular, é um lugar de comércio e de comerciantes. Mas não propriamente como a Turquia ou outras partes da Ásia, onde todos parece que nasceram para fazer negócios - falam incontáveis línguas, esgrimindo em todas elas uma lábia folclórica.
Em Andorra, pelo contrário, a vocação para os negócios é mais recente e vem de incentivos para instalação de uma zona de comércio livre no país dos Pirineus. Em outras palavras, Andorra la Vella é um grande free shop a céu aberto, algo como uma Rivera ou uma Ciudad del Este chique.
Parêntese. Andorra la Vella é a capital e maior cidade de Andorra. O curioso é que seu nome costuma ser traduzido como Andorra-a-Velha, Andorra-la-Vieja ou Andorra-la-Vieille, quando o significado real em catalão seria Andorra-a-Vila, ou seja, Cidade de Andorra...
Pois bem, a efervescência comercial de Andorra está muito longe de ser velha e, assim, o que tem de bons preços (ao menos para os padrões europeus) e de variedade nem sempre é o que tem de fino trato.
Numa ocasião, estávamos procurando a camisa da seleção de futebol de Andorra. Acabamos concluindo que a seleção é real (até prova em contrário), mas a respectiva camisa, se é que existe, passa longe de qualquer vitrine. Em umas tantas lojas nos disseram que não tinham a tal camisa. Até entrarmos em um estabelecimento grande, de uns três ou quatro andares, talvez uma das redes mais completas do país em termos de artigos esportivos. Um dos andares era dedicado ao futebol e vimos farta exposição de bolas e acessórios, além de camisas de Barcelona, Real Madrid, Manchester United e de várias seleções - a do Brasil em destaque -, mas não de Andorra. Descemos um andar para perguntar a uma vendedora; a mulher, antes de responder, olhou-nos com uma cara de incrédulo desdém, e então foi taxativa:
- A seção de futebol é no andar de cima.
- Eu sei, mas não há ninguém lá. - tentei contemporizar. - Talvez pudesses saber se a loja tem a camisa da seleção de Andorra.
E ela, com uma firmeza de meter medo:
- Não sei, não trabalho naquele andar. Vai lá e procura.
Afastei-me devagar, pensando (1) que a vendedora deve ter nascido e passado a vida inteira naquele andar, para não saber o que há nos outros e (2) como é diferente na Turquia, país em que ajudar um cliente a encontrar uma compra numa loja rival é uma opção, e deixar um cliente de mãos abanando não é.
Noutro dia, passávamos em frente a uma loja de eletrônicos que anunciava certo modelo de câmera a um preço bem convidativo. Entramos e perguntei pela câmera. O vendedor, não dos mais simpáticos, ofereceu uma pelo dobro do preço. Perguntei:
- E aquela câmera da vitrine?
- Não temos.
O rapaz foi enfático o suficiente para não deixar dúvidas disso, por estranho que parecesse; também tinha um pouco-caso de quem não parecia estar disposto a conversar; e, a exemplo da raposa diante das uvas, eu não queria tanto assim aquela câmera. Saí de fininho o mais rápido que pude.
Na loja ao lado, a vitrine anunciava uma máquina de cortar cabelo (e isso, sim, era algo que eu pensava em comprar, se surgisse a oportunidade) por 10 euros. Entramos e, quando fui pedir informações, um rosto e uma voz familiar ofereceram uma máquina por 30 euros. Só então reparamos que aquela loja era interligada por dentro à anterior e a mesma pessoa atendia lá e cá! Nem nos demos ao trabalho de perguntar pelo produto mais barato: agradecemos e buscamos mais uma vez a porta da rua...
Foi assim que desisti dos eletro-eletrônicos de Andorra.
Mas não das compras, e o próximo alvo era mais singelo. Acontece que Andorra, assim como boa parte da Espanha, tem um clima bastante seco. No meu caso, uma das consequências disso é: lábio seco, com rachaduras, de uma maneira no mínimo incômoda. Eu queria encontrar um protetor para os lábios - fosse no Brasil, eu me contentaria com um pouco de manteiga de cacau. Entramos numa farmácia e achamos o que eu queria, mas na forma de um hidratante labial importado da Noruega com preço mais salgado que o bacalhau daquele país. Hesitei um pouco, pensando no preço, e perguntei à Renata:
- O que achas? Compro?
Nisso, a balconista da farmácia, com os olhos fixos nas fendas ressecadas dos meus lábios, deu uma gargalhada e não resistiu:
- Eu não te digo nada!
Ainda tenho comigo o protetor labial norueguês comprado na velha Andorra la Vella.

sábado, 30 de agosto de 2014

É dia de festa em Tórshavn

Exposição de carros antigos
Uma imagem fácil das Ilhas Faroe seria a de um lugar pouco habitado, onde se vê mais paisagem natural do que gente e onde as opções de convívio social a que estamos acostumados - festas, cinemas, shoppings - são limitadas. Bem, isso pode até ter um fundo de verdade: as ilhas têm mais ovelhas ou pássaros do que pessoas, e muitíssimo mais áreas desertas que habitadas; há um único shopping (modestíssimo para os nossos padrões); e pode até haver cinema, mas os filmes que lá chegam, em geral, não são sequer legendados ou dublados na língua local.
Claro, isso não quer dizer que os faroeses não tenham seus momentos e espaços de convivência e lazer. Ao que parece, alguns desses momentos estão ligados aos tantos festivais anunciados por lá e ligados a certas datas do calendário, na melhor tradição nórdica, como o dia de Santo Olavo, que marca significativamente o auge do verão e a noite do feriado da Ascensão. Tivemos a sorte de nossa viagem coincidir com outra dessas datas, o Dia da Cultura.
Jogadores do B36 com as crianças
Nunca imaginei ver tanta gente reunida nas ruas de Tórshavn, a pacata capital faroesa. Em alguns momentos, ficava até difícil caminhar. Tórshavn organizou uma programação realmente intensa, ao longo de todo o dia, com eventos simultâneos em diversos pontos da cidade. A maior parte do comércio do centro ficou aberta até tarde e com alguma programação especial. A loja de artigos esportivos, por exemplo, contou com a presença dos jogadores do Bóltfelagið 1936 (B36), um dos dois maiores times de futebol do país, posando para fotos, autografando, conversando e jogando fla-flu (totó) com as crianças. A biblioteca tinha uma sequência de palestras e outros eventos; em um deles, um escritor lia uma de suas obras lá na Dinamarca continental, com transmissão direta por Skype. A loja de discos da Tutl, a gravadora local, tinha uma programação de pequenos shows na calçada da rua. Na catedral haveria música sacra. No porto, passeios de barco. E havia ainda caminhadas e visitas guiadas, prédios públicos de portas abertas, exposições de arte e até mesmo um evento de carros antigos - fascinante para nós pois, mesmo que não haja tantos carros antigos num pequeno e remoto arquipélago europeu, eles são quase todos bem diferentes dos que vemos no Brasil.
Desfile de trajes típicos da Marjun Heimá
Havia também um desfile de moda que seria talvez o ponto alto do dia, o primeiro e único desfile de moda que vi até hoje. Mas não como os que poderíamos esperar ver em qualquer lugar. Parece que tudo nas Ilhas Faroe é único, incomum, tudo tem um encanto levemente surpreendente. Na rua principal da cidade, apinhada de gente, montaram um palanque por onde desfilou diante de nós a moda tradicional faroesa. Sim, um desfile de trajes típicos. Ou como queiram, da pilcha faroesa - a roupa usada por eles ao longo de séculos, quando muito com alguns toques de modernidade aqui ali - com vocês, a moda tradicional das Ilhas Faroe, coleção primavera-verão 2014 da grife Marjun Heimá. Roupas típicas para a cidade, para o campo, para uma festa de casamento...
Vejam a expressão da menina de azul à direita!
Além das roupas em si, o mais legal é que as modelos (e os modelos) eram "gente como a gente". Uns jovens, outros de mais idade, outros ainda crianças em idade pré-escolar! Claro que esses últimos foram os que mais chamaram a atenção. Uma menininha toda envergonhada, coitadinha, tapando o rosto com uma mão e guiada pelo coleguinha com a outra mão. Outra menina, pelo contrário, acenava para todo mundo e parecia ter ganho o dia ao subir na passarela. Como não ficar encantado?

Mais crianças da Marjun Heimá

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ônibus particulares e táxis compartilhados

Desde a nossa chegada em Suðuroy, a mais meridional das Ilhas Faroe, sabíamos que precisávamos resolver como ir embora. Quer dizer: já tínhamos definido que pegaríamos o barco que saía dali a dois dias, às 7 h da manhã. O problema era que o ancoradouro de onde sai o tal barco fica fora da cidade, a uns 5 km de onde estávamos hospedados.
Assim, no dia seguinte, tentamos prestar atenção, mas não parecia haver ônibus que levasse até lá - pelo menos não um ônibus que saísse tão cedo quanto precisávamos. O lugar não é grande, ou pelo menos não é muito povoado - a ilha inteira tem menos de 5 mil habitantes e a cidade, Tvøroyri, não chega a 2 mil (o que torna impressionante o fato de que o barco tenha uma capacidade reportada de 975 passageiros!).
Foi então que, passando pelo centro da cidade, vi um prédio grande da empresa que opera tanto o barco quanto as linhas de ônibus das Ilhas Faroe, e resolvi entrar para pedir informações. Havia uma mulher num escritório a quem expliquei a intenção de tomar o barco das 7 h do dia seguinte e perguntei se haveria um ônibus até lá. Ela, num primeiro instante, respondeu que achava que não havia ônibus tão cedo; depois, pareceu pensar um pouco mais, pediu licença por um instante e foi consultar alguém numa outra sala. Voltou em seguida dizendo que ficássemos tranquilos, que poderíamos pegar o ônibus ali em frente mesmo, às 6h50.
Ficamos mais aliviados, porém não inteiramente satisfeitos. Estávamos com um carro alugado, que iríamos devolver. E então teríamos de caminhar cerca de um quilômetro, com as malas, para pegar o ônibus de manhã cedo. Mas a própria pessoa que nos alugou o carro (sim, o carro fora alugado de uma pessoa, e não de uma empresa!) ofereceu a solução: poderíamos ir dirigindo até o porto. Chegando lá, bastava estacionar o carro e deixar as chaves dentro, que ele iria mais tarde buscar o veículo. Como são simples as coisas nas Ilhas Faroe! Fizemos como ele dizia e, tudo certo, em poucos minutos já estávamos embarcando. No caminho, ainda passamos, de carro, pelo ônibus parado, confirmando que as indicações da moça do escritório tinham sido precisas... Apesar de que não vimos o ônibus saindo (e ele não tinha como sair senão pelo caminho que fizemos). Só então tive a revelação: não havia ônibus regular naquele horário, eles haviam programado um ônibus especialmente para nos levar, para atender ao nosso pedido... Tão óbvio e tão de acordo com o modo como as coisas funcionam nas Ilhas Faroe. E nós, com o pensamento egoísta dos estrangeiros, não percebemos isso nem nos demos ao trabalho de avisar que, afinal, o ônibus não seria mais necessário...
Mas, enfim, partimos e chegamos a Tórshavn, a capital. Lá, curiosamente, teríamos um problema parecido: pegar um ônibus de manhã cedo a tempo de embarcar no nosso voo para o continente. Como Tórshavn é uma cidade maior, seria mais fácil. Vi na tabela de horários um ônibus que saía às 5h50 e chegava no aeroporto às 6h40; um tanto cedo para nosso voo, que saía às 8h15, mas aceitável.
Foi então que acordamos cedo, sem ter direito sequer ao café da manhã do hotel, e fomos até o terminal de ônibus, para encontrá-lo deserto. Esperamos um pouco, mas comecei a me preocupar quando já era mais de 5h50 e nada de ônibus... Nos cartazes do terminal, acabei descobrindo que a falha fora minha: aquele horário só valia de segunda a sexta, e estávamos num sábado!
Como não parecíamos ter alternativa, fui até o ponto de táxi que funcionava ao lado e pedi um táxi; disseram-me que esperasse, que já estava vindo um carro para nos levar ao aeroporto. Aquele ponto era uma espécie de terminal aonde os taxistas vinham comer alguma coisa ou usar o banheiro e, embora houvesse alguns deles por ali, aparentemente não estavam trabalhando ou já tinham outras corridas agendadas. Esperamos, então. Mas os minutos passavam, e nada... Com minha impaciência nem um pouco faroesa, resolvi perguntar novamente pelo táxi. Disseram para esperar só mais um minuto, o motorista acabara de chegar... Perguntei qual era o motorista e a resposta, tão espontânea, não poderia ser mais inusitada: aquele ali fora, de cabelo escuro. Eu olhava e só via gente de cabelos nordicamente loiros e olhos azuis!
Mas enfim achei o motorista (loiríssimo para os nossos padrões) e embarcamos, depois de ter combinado um preço por pessoa. Dali a pouco, do nada, o carro num hotel para pegar outro passageiro. Fomos entendendo que o táxi para o aeroporto é compartilhado - daí o preço por pessoa.
Chegamos bem e com uma tranquila antecedência para o voo. Para completar, quando já estávamos entrando, vimos chegar uma porção de gente e não tivemos dúvida: era o ônibus das 6h50, que chega às 7h45 - tempo suficiente para decolar às 8h15 num país onde tudo é sincronizado e, portanto, o ônibus que poderíamos e deveríamos ter pegado.

sexta-feira, 11 de julho de 2014

A Copa é do Mundo

Eu sei que nem o Brasil nem país algum tem obrigação de disputar - que dirá ganhar - todas as finais de Copa do Mundo. Também sei que sempre haverá algum fracasso, e de todos os fracassos algum terá de ser o mais incisivo, e nem por isso ele será motivo de vergonha.
Apesar disso, a derrota para a Alemanha doeu em mim. Doeu e continua doendo como quando a mais inocente das crianças tem de confrontar a realidade.
Eu sei que havia a FIFA, os políticos, os desvios de verba, as obras inacabadas, as promessas mal cumpridas ou não cumpridas. Como sempre houve, com ou sem Copa do Mundo, e não só no Brasil. Mas, dessa vez, havia a Copa, em casa, e um desejo de vivê-la, de receber gente, de acolher visitas. A Copa, no Brasil, seria do Mundo.
E, apesar dos percalços, foi - está - estava - sendo maravilhosa.
Antes mesmo de começar, encontrando e interagindo com visitantes estrangeiros na própria esquina de casa.
E então, primeiro, no Mineirão, estávamos eu e a Jéssica - o plano era estar a Renata também, mas ela é tão competente no trabalho que um convite irrecusável afastou-a de nós e do estádio. Tivemos pelo menos o consolo de um bom provocante (provolone crocante), de um belo jogo e das palavras trocadas com a Renata pelo celular.
Depois, o Beira-Rio, porque nenhum outro estádio seria a minha casa tanto quanto ele.
Em seguida, o Mineirão de novo. O plano agora era nos reunirmos; a Renata veio e o pai dela também, mas a Jéssica não conseguiu decolar de Porto Alegre e acabou sendo a ausência do dia.
Fomos então a Salvador. Local e partida inusitados, entre um desclassificado e outro quase, mas havia o desejo de ver a Bósnia-Herzegovina e torcer por ela. Fomos a caráter; a Renata passou por bósnia na televisão e, juntos, nós dois não tivemos coragem de acabar com a ilusão de quem pensava sermos estrangeiros - posamos para fotos e tudo o mais.
De lá fomos para Pernambuco - no mata-mata que teria uma equipe do "grupo da morte", acabamos vendo justamente a Costa Rica. Mas tudo bem, era Copa do Mundo. Ainda pudemos encontrar amigos no inusitado restaurante Kovačić e, como se não bastasse isso, descobrimos também um grupo de faroeses que ficou espantado com o carinho que tínhamos pelo país deles.
Então, Salvador de novo. Não estava nos planos originais, mas foi o que sobrou como última alternativa para nos reunirmos os três - eu, a Renata e a Jéssica - depois dos desencontros em Belo Horizonte. Deu certo e foi bastante divertido. Afinal, era Copa do Mundo. A Copa do Brasil.
Tudo tão bom, uma rotina tão fora da rotina, pequenas loucuras tão impensáveis (como colecionar copos da Coca-Cola ou embarcar espontaneamente num voo de madrugada) que parecíamos crianças. Numa Copa assim, nada poderia dar errado.
E foi exatamente por isso que a derrota doeu tanto. Não é que eu acreditasse ou idolatrasse desmesuradamente a seleção brasileira. Não é que o futebol seja a coisa mais importante do mundo para mim. Nem se tratava de um desejo febril de vingar o Maracanazo. Acontece que essa Copa, a nossa Copa, eu queria guardá-la com as lembranças boas que ela estava proporcionando. E, de repente, eis que ela ameaçava ficar na memória como a Copa dos sete a um.
Então eu lembrei de quando o Brasil perdeu para a França, em 1986, na primeira lembrança que tenho de uma Copa do Mundo. Naquele dia, eu me recusei a acreditar na derrota e fui para meu quarto brincar - na minha brincadeira, o Brasil era o campeão. Assim, voltando a 2014, percebi que a Copa do Brasil não era uma ilusão, nem apenas um sonho de ver meu país (mais uma vez) campeão. Era a nossa Copa, de tantos gols que vimos ao vivo e pela televisão, de encontros e desencontros, da camisa que ritualmente escolhíamos a cada jogo, da chuva que nos surpreendeu em Salvador, do sorvete que tomamos após a classificação suada nos pênaltis e de pagar promessa pela mesma classificação suada, dos sotaques mineiro, gaúcho, baiano, pernambucano, colombiano, argentino, francês, faroês, bósnio, grego... Era a nossa Copa de todos os sotaques, e que placar conseguiria tirar isso de nós? É a nossa Copa.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Do afrouxamento das normas morais

Aconteceu que iríamos viajar durante o carnaval e o horário do nosso voo era relativamente cedo. Como temos um horário de trabalho flexível (a empresa nos permite sair mais cedo, desde que compensemos as horas não trabalhadas ficando até mais tarde em outro dia), perguntei à Renata sobre sairmos antes do fim do expediente para pegarmos o voo. A resposta:
Venho, por meio de traçadas linhas, dizer que estou em completa concordância com o pleito de deixar meu recinto de trabalho com o sol a pino para levar a efeito a jornada até o campo de pouso e decolagem de aviões com operações de cunho relativo às relações entre nações para nos pormos dentro de uma embarcação ou qualquer outro veículo que nos permita seguir viagem no presente período de três dias de folia que precede a quarta-feira de cinzas, durante o qual, com o afrouxamento das normas morais, se dá o irromper de recalques por meio de danças, cantos, trejeitos, indumentária diversa da habitual, e aos demais dias os quais acrescentaremos ao período referido.
Por essa e por outras, amo essa guria.

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Manual prático de como receber visitantes

Entramos na lojinha-sorveteria em Tvøroyri, nas Ilhas Faroe, tentados pelo cartaz que anunciava sorvetes.
Enquanto escolhíamos nossos sabores, entrou outra pessoa que nos cumprimentou e falou mais alguma coisa em feroês. Certamente percebeu nossa hesitação, pois, em seguida, já em inglês, perguntou se éramos estrangeiros. Ao respondermos que sim, ele nos fez o convite com total naturalidade:
– Querem vir comigo visitar um amigo? Estou levando flores para ele. – e apontou para uma sacola de plástico com algumas mudas.
Mesmo já tendo tido antes um bom vislumbre da hospitalidade faroesa, não pudemos deixar de ficarmos surpresos. E de seguir o senhor que nos convidava. Atravessamos a rua e chegamos a uma casa grande, no alto e com mais uma bela vista para o fiorde. O dono da casa se entretinha com flores numa longa jardineira e se levantou para cumprimentar o amigo, que nos apresentou e entregou as mudas que trazia.
Fomos convidados a nos sentarmos de frente para a jardineira e para o mar. Ofereceram chocolates. Depois cerveja. O próprio dono da casa não bebe álcool, mas tem cerveja em casa para as visitas. O amigo reclama que a cerveja está velha, mas não perde a oportunidade de beber. Logo se vê que são amigos de longa data. Pedem à Renata que dê um palpite sobre a idade deles e ela, certeira, acerta: têm 67 anos os dois.
O dono da casa, agora aposentado, foi pescador, o que nas Ilhas Faroe é bastante emblemático. Aliás, ele chegou a comandante de navio pesqueiro. Durante o tempo em que conversamos, ele contou da vida no mar, das viagens de pesca à Groenlândia e de como, após seis meses no mar, voltava para casa sem ser reconhecido pelos próprios filhos. Vida dura a daqueles tempos, mas que parece ter conduzido os dois bem-humorados senhores a uma rotina hoje agradável. A casa tem dois enormes congeladores de tamanho industrial repletos de peixe. Nosso anfitrião entende tudo de barcos, de pesca e, claro, de peixes. Bem como de baleias. “Hoje em dia o Greenpeace vive no nosso pé”, diz ele sobre a controversa caça à baleia tradicional das Ilhas Faroe, e é fascinante sentir, nas palavras e nas histórias dele, o outro lado da moeda, aquele que vai além da pesquisa fácil no Google. Conversamos de tudo um pouco. Do clima, de economia, de costumes. Do costume faroês de se ajudarem mutuamente, algo talvez imprescindível à sobrevivência num ambiente inóspito. E de como aos poucos esse costume vai perdendo força entre as novas gerações, com o dinheiro falando cada vez mais alto.
Não importa: no bom e velho estilo faroês, oferecem-nos bacalhau congelado. Como recusamos, insinuam que podemos ficar para jantar... O que, constrangidos, também recusamos.
Então o dono da casa vem, dali a pouco, com um baita livro de fotografias de pesca e de pescadores. Ele diz que tem dois exemplares do mesmo livro (o que tanto pode ser verdade quanto não...). E nos oferece o livro de presente, de uma forma que ficamos sem argumentos para recusar.
Quando nos despedimos, deixamos a promessa de enviar, pelo correio, sementes de flores brasileiras. Eles estão ansiosos para saber se serão capazes de cultivar, lá, algumas das nossas plantas. Já eu fico pensando se, algum dia, seremos capazes de cultivar com tanta naturalidade uma hospitalidade como a deles.

terça-feira, 10 de junho de 2014

O dia em que bati bola com uma estrela da seleção

E o bate-bola sequer é a melhor parte da história.
Suđuroy, Ilhas Faroe. Após desembarcarmos, eu e a Renata, tínhamos um caminho de algo mais de um quilômetro até a nossa pousada. Assim, pusemo-nos a andar, arrastando a mala, pela estrada que leva ao centro da cidade. Lá pela metade da distância, um carro que vinha passando parou e ofereceu carona – não a primeira vez que nos ofereciam carona, espontaneamente, nas Ilhas Faroe. Aceitamos de bom grado. Assim que entramos no carro, reparamos que havia uma camisa da seleção brasileira no banco de trás. Quase no mesmo instante, o homem perguntou de onde éramos e...
...e não há como descrever a reação dele ao descobrir que éramos brasileiros. Ficou empolgado, sorria, exclamava e se sacudia – o que era ainda mais dramático porque notamos que tinha mal de Parkinson. Daí começou a falar, ao mesmo tempo que pedia desculpas por não saber muito de inglês (mas entendia uma meia dúzia de outras línguas: feroês, dinamarquês, islandês, sueco e por aí afora). Fã de Pelé. Disse que havia sido jogador do time de futebol da cidade, o Tvøroyrar Bóltfelag (TB), e da seleção faroesa. Não cabia em si de empolgação. “Brasilia! Fantastik! Brasilia!” Perguntou se podia nos levar ao estádio de futebol e, quase que respondendo por nós, cruzou a pequena cidade até chegar no tal estádio. Parou o carro, tirou do porta-malas uma bola de futebol, entrou no campo e me chamou para jogar. Eu não conseguia acreditar, mas estava ali, tentando embaixadinhas e dribles com um ex-jogador faroês (e descobrindo que minhas limitadas habilidades futebolísticas não melhoraram com o tempo) no estádio municipal de Tvøroyri.
Foto de Renata Teixeira
Na verdade, ficamos poucos minutos lá; ele nos convidou para irmos conhecer a casa dele e lá fomos. Nosso anfitrião – cujo nome é Tróndur Nolsøe – mora em uma grande casa de dois andares, com ampla vista para o lindo fiorde em frente, e com toda espécie de relíquias e bugigangas que se pode imaginar, boa parte delas ligada ao futebol: um pôster gigante do Pelé autografado pelo próprio, inúmeras flâmulas e camisas de futebol, álbuns de figurinhas, livros, fotos, bibelôs...
Não duvido de que ele teria passado a tarde toda conosco. Mas lá pelas tantas, após ter mostrado parte do seu museu pessoal, Tróndur se prontificou a nos levar à pousada e só se despediu quando já estávamos bem instalados lá.
Acontece que a história não parou por aí. Mais tarde, estávamos na pousada quando ouvimos alguém chamar – era ele que tinha vindo fazer uma visita. Conversamos, ele catou um baralho e se pôs a fazer mágicas com cartas, em seguida ensinou alguns truques, depois ainda fez um convite para ir pescar – recusei, minha intimidade com pesca consegue ser menor do que minha intimidade com a bola. No final, ofereceu-nos de presente uma pequena bandeira das Ilhas Faroe.
Eu e a Renata estávamos maravilhados, tínhamos anotado o endereço dele e prometido enviar algo (uma camisa da seleção, alguma lembrança do Brasil?), e não nos perdoávamos por não ter nada para oferecer (um par de havaianas, que fosse!). Resolvemos sair e procurar por algo que pudéssemos comprar para ele – mesmo a cidade sendo pequena e as lojas quase inexistentes, já tínhamos reparado que, graças à Copa do Mundo, não era impossível encontrar artigos verde-amarelos em qualquer lugar que fosse. Acabamos comprando a Brazuca, a bola da Copa. E fomos até a casa dele para retribuir as gentilezas do dia anterior.
Tróndur ficou eufórico quando nos viu, convidou-nos para entrar, ofereceu chá, bolo, doces, balas. Trouxe um presente: uma pedra arredondada, comum na região, em que ele mesmo pintou a bandeira brasileira. Sentamo-nos no sofá do andar de cima, que tem as enormes janelas com a vista para Tvøroyri, uma grande televisão, vasos e mesa de vidro. Tróndur não cabia em si, desceu e voltou com a bola que havia ganho de presente e pediu que eu a autografasse! Após, começou a fazer embaixadinhas no meio da sala – ele, com Parkinson, no meio daquele universo de coisas quebráveis! E conversava, falava da esposa, dos filhos já crescidos, do trabalho e de futebol.
Despedimo-nos. Para quê! Não deu meia hora, lá estava nosso novo amigo nos procurando na pousada. Vinha trazer mais presentes: um livro sobre o Tvøroyrar Bóltfelag, desenhos feitos por ele e meias de lã (legítima lã faroesa!) feitas pela mãe dele. Ah! Como não ficar encantado e sem graça depois de tudo isso?

sábado, 7 de junho de 2014

Quando aparências enganam

Alguns países desafiam o nosso senso comum quando procuramos por um produto ou serviço específico. Definitivamente, as aparências enganam.
Nossa intenção era trocar o dinheiro por coroas em um banco assim que chegássemos à Dinamarca (afinal, graças à criatividade duvidosa de nossos legisladores, somos obrigados a carregar dinheiro vivo quando viajamos, enquanto o resto do mundo usa cartão). Mas perdemos o horário bancário em Billund, então deixamos para fazer o câmbio em Tórshavn.
Ao desembarcar em Tórshavn, numa quinta-feira, chegamos a procurar um banco, e ainda atribuímos o fato de estarem todos fechados a uma hipotética sesta, para só depois descobrir que era feriado nacional (Dia da Ascensão).
Esperamos então pela sexta-feira. Nesse dia, o plano era alugar um carro e sair dirigindo pelo arquipélago. Fácil, então: na primeira cidade que passássemos, após as 10 h, procuraríamos um banco com o auxílio do GPS (na verdade, de um aplicativo para celular, pois o programa original do GPS simplesmente ignora a existência das Ilhas Faroe!).
Dito e feito: entramos em Kollafjørđur, onde o aplicativo apontava a existência de dois bancos, e fomos até o primeiro deles. Como é comum nas Ilhas Faroe, o prédio era absolutamente igual a todos os outros, sem nenhum letreiro aparente, a não ser pelo horário de funcionamento afixado na porta - fechada. Uma mulher fumava do lado de fora. Deduzimos que a única funcionária tinha saído para fumar, então perguntamos a ela se estava aberto, ao que ela respondeu que não sabia - obviamente não se tratava de uma funcionária. Mas, prestativa, apontou para um cartaz com um número de telefone e se ofereceu para ligar e contatar a pessoa responsável. Agradecemos a boa vontade e nos prontificamos a esperar.
Enquanto a mulher ligava e começava a falar em feroês com alguém do outro lado da linha, espiei pela janela da agência. Chamei a Renata:
- Isso não é um banco...
E ela:
- Claro que é, o cartaz até diz o horário de funcionamento!
Eu repliquei:
- Olha lá dentro!
E, pela janela, ela viu o mesmo que eu: uma porção de cremes de cabelo. E uma placa que, mesmo em feroês - "Salong Hár" - não deixava dúvidas de que estávamos em frente a um salão de beleza.
E, dando a volta na casa, descobrimos o motivo do nosso erro: um simples caixa eletrônico, inútil para nós, até o qual o GPS havia nos guiado.
Entreolhamo-nos, sem graça, como quem pergunta: quem vai explicar para a mulher tão prestativa, que já está no meio da ligação?
Acontece que a própria mulher se virou para nós dizendo que a dona do salão estava em viagem na Dinamarca. Continuou explicando quando a tal dona voltava, mas mal sabia ela que, a essa altura, aliviados, nem prestávamos mais atenção!
Voltamos ao carro e seguimos viagem até Klaksvík, cidade maior onde tínhamos mais chances de encontrar uma agência de verdade. Mesmo assim, só pudemos ter certeza de que havíamos encontrado ao sair da agência já com as notas de coroas faroesas na mão, pois o banco não se parece nem um pouco com o que estamos acostumados. Nada de seguranças, detetores de metal ou portas giratórias. É uma simples construção de madeira. Entra-se e há uma mesa com café e bolachas para os clientes. Mesas e arquivos que lembram um escritório. Ressabiado, procurei indícios que pudessem me garantir que eu estava em uma agência bancária. Mas havia dois caixas atendendo, e uma pessoa esperando no que não chegava a ser uma fila. Juntei-me a ela e logo fui atendido, com a simpatia típica daqui e que, junto com a tranquilidade de se poder fazer um banco simples como aquele, não tem preço.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

Noivos!

Le Louis XV, de Alain Ducasse, é certamente um dos restaurantes mais bem-conceituados do mundo. Um jantar lá seria algo assim como um sonho distante. Até que começamos a planejar a viagem a Mônaco, onde fica o restaurante. Mas coragem para se aventurar no Le Louis XV, e sorte de conseguir uma reserva na semana do Grande Prêmio de Mônaco, também parecia ser algo distante.
Até eu pensar "por que não?" e entrar em contato com eles. De repente, não é que tínhamos uma reserva para Le Louis XV? Então o sonho começou de verdade.
Afinal, seria a ocasião perfeita para oficializar nossa união, não é mesmo?
Nem vou contar como foi escolher um anel de noivado, acertar o tamanho dele e buscá-lo na H.Stern na manhã do próprio dia em que seria a tua defesa de mestrado e também o nosso voo para a Europa. Mas as coisas seguiram dentro do planejado!
De acordo com a etiqueta do restaurante, levei terno e gravata, traje completo para a nossa noite, e passando em Andorra, não foi por acaso que acabei comprando o mais chique dos relógios - eu queria estar impecável em todos os detalhes! Assim como acompanhava a tua expectativa, a tua escolha de roupas e acessórios...
No dia, prontos para sair para o restaurante, testei todos os bolsos que eu tinha para tentar ver em qual deles conseguiria esconder a caixinha com o anel. Parecia-me impossível que não percebesses, ainda mais quando quiseste tirar uma foto nossa a caminho do restaurante! Mas não reparaste no volume que eu tentava esconder...
Antes de sair do Brasil, não sabias que eu tinha telefonado para Mônaco, a princípio para reconfirmar a reserva, mas também para falar sobre um marriage proposal. Acertei tudo, eu deveria procurar um certo Michel e entregar o anel para que ele cuidasse do resto.
Daí que, enquanto saboreávamos cada um dos nossos inesquecíveis pratos - o couvert, o amuse-bouche (ou amansa-bucho, como gostamos de brincar) de vegetais com pequenos peixes (seriam enguias?), a sopa, os aspargos, les jardins de Provence com trufas negras... enquanto saboreávamos cada momento, eu procurava a ocasião de te distrair e chamar um dos garçons. Quando quiseste ir ao banheiro, agradeci intimamente. Tu te levantaste da mesa e eu procurei um garçom com os olhos, mas antes mesmo de conseguir contato visual já havia alguém do meu lado, com toda a elegância e discrição que o momento pedia, e me dizia: "I am Michel, monsieur, do you have anything for me?" Rapidamente passei o anel, juntamente com um bilhete. Ele fez um sinal positivo com a cabeça e saiu discretamente, para ainda voltar duas vezes - na primeira, dizendo que eu ficasse tranquilo, pois estava tudo certo e, na segunda, para me parabenizar e desejar boa sorte.
Voltaste à mesa e seguimos em direção ao grand finale. Os inesquecíveis raviólis com morels. Em seguida viriam as sobremesas que pedíramos.
Então trouxeram uma bandeja coberta com uma redoma de ouro! e a puseram na tua frente. "Un cadeau tout spécial pour le madame!" E, confessaste depois, chegaste a pensar que tua sobremesa estava em falta e estavam trazendo alguma compensação. Eu estava nervoso, admito. Ainda mais porque - indo além do combinado, mas seguindo o roteiro mais tradicional possível - de repente arredaram a mesinha e colocaram uma almofada no chão, ao teu lado. Não tive escolha e não precisei pensar. Num instante estavas descobrindo a bandeja, para achar lá dentro o teu anel envolto em pétalas de rosa e o meu bilhete onde digo para sermos, nós dois, um só. No instante seguinte olhas para o lado, estou de joelhos e seguro tua mão. Rimos e sorrimos. Então nos beijamos e ouvimos as palmas de todo o restaurante.
E que todo o resto da vida tenha esse sabor da mais deliciosa das nossas sobremesas. Te amo, Renata.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Um ginásio nos Pirineus

Prefiro conhecer poucos países de cada vez, acredito que isso me dá mais chances de apreciar a cultura local sem ficar "pingando" de um lado a outro. Apesar disso, planejamos a viagem incluindo cinco (ou seis) países: Espanha, Andorra, França, Mônaco, Dinamarca e Ilhas Faroe. Acontece que, quando se visita lugares pequenos como Andorra, Mônaco e as Ilhas Faroe, é literalmente impossível fazê-lo sem passsar antes por algum outro país.
E o roteiro, no final das contas, foi bem agradável e rendeu até algumas surpresas.
Em Andorra - um micropaís nos Pirineus, entre a Espanha e a França - reparei em cartazes nos postes que anunciavam o IHF Trophy 2014, um torneio de handebol sub-20 que começaria exatamente durante nossa estada. Tive a sorte de lembrar de procurar informações no Google sobre esse torneio (o que não foi tão fácil, pois não havia sequer uma página oficial) e descobri que, dentre as oito seleções participantes, estava a das nossas queridas Ilhas Faroe. Ora, como iríamos visitá-las em seguida, eu e a Renata tínhamos a camisa da seleção e, como se não bastasse, o nosso Puffin "emigrado" de lá! Claro que resolvemos ver o primeiro jogo, que seria contra o Azerbaijão.
A preliminar foi Moldávia e Reino Unido, uma partida veloz que os moldavos venceram com uma moderada vantagem. Prestes a começar a partida seguinte, reparamos que os jogadores faroeses pareciam crianças inocentes perto dos demais, grandes e barbados. Começamos a temer pela sorte deles, e o temor se acentuou ainda mais quando soou o apito inicial e vimos que o toque de bola faroês era bem mais lento que o do jogo anterior.
Nesse meio tempo, estávamos nas arquibancadas eu e a Renata de camisas faroesas, além do Puffin com suas penas faroesas. Acho que os únicos outros presentes eram os membros da seleção técnica e, sendo assim, é claro que acabamos chamando a atenção...
Alguém veio perguntar se éramos faroeses. Respondemos contando rapidamente nossa história. Dali a pouco, veio outro, tirou uma foto nossa, entrevistou-nos, e disse que publicaria a história no Facebook deles. Em seguida, voltou o primeiro, munido de câmera e microfone, e nos entrevistou para a rádio-televisão faroesa. Estávamos gastando com louvor nossos 15 min de fama!
O que poderia ser melhor? Contra nossos temores iniciais, as Ilhas Faroe dominaram a partida e venceram por 43 a 12. Saímos do ginásio exultantes e prometendo torcer por eles até o final (pelo menos à distância, já que não teríamos mais tempo em Andorra para acompanhar o torneio). E não é que os guris foram campeões, vencendo todos os seus cinco jogos? Nossa alegria só não foi maior que a do Puffin, que dava voltas e voltas pelo ar!

sábado, 10 de maio de 2014

Pé na Tábua, a Corrida de Calhambeques


por Eduardo Trindade e Renata Teixeira

Quando queremos dizer “acelera!”, “mais rápido!”, “depressa!”, temos uma expressão bem conhecida: “pé na tábua!” O que poucos imaginam – mas que nós, entusiastas de carros antigos, sabemos bem – é de onde nasceu essa expressão. Afinal, nossos queridos antigos clássicos possuem o assoalho de madeira e, quando queremos ir mais rápido, fazemos exatamente isso: metemos o “pé na tábua”, pressionando o acelerador até o assoalho!
Bem, estamos em 2014 e a maioria dos carros não possui mais o fundo de madeira, mas nós ainda continuamos colocando o pé na tábua de nossas adoradas máquinas. Pelo quarto ano consecutivo, veículos construídos até 1936 se reuniram na cidade de Franca, no interior de São Paulo, para fazer o mais inusitado e divertido evento de carros clássicos do Brasil – talvez de toda a América do Sul? Ou do Hemisfério Sul?
O que torna o evento único é o fato de não ser apenas uma exibição, nem apenas uma parada ou um simples encontro. É uma corrida – a Corrida de Calhambeques Pé na Tábua – disputada em um verdadeiro autódromo, entre verdadeiros carros antigos. Competem diferentes categorias:
· Ford Modelo A, a que tem o maior número de participantes;
· Speed, para carros de corrida com preparação original da época;
· Transplantados, para hot rods;
· Motocicletas, para aqueles em duas rodas;
· Miscelânea, para outros carros construídos até 1936: Ford Modelo T, Ford Modelo B, Chevrolet, Buick, DeSoto, e por aí vai.
Cada categoria tem suas atrações e seus fãs. Entre os corredores da categoria Speed, temos Nelson Piquet, o tricampeão mundial de Fórmula 1. Seu filho compete na categoria Transplantados. Entretanto, a maior diversão talvez não esteja entre os pilotos profissionais, mas com os amadores que esperam o ano inteiro pela oportunidade de entrar na pista. E nós estávamos entre estes, com certeza!
Nosso carro é um Ford Modelo A Tudor de 1931. É um carro de passeio, não apenas de exposições, e tão original quanto possível – temos restituído a sua originalidade desde que o compramos, em 2012. Bem, não somos pilotos profissionais; foi a primeira vez que fomos a um autódromo como competidores em vez de espectadores. E, acreditem, foi um fim de semana incrível!
Na manhã de sábado, assim que o sol saiu, chegamos ao autódromo. Hora de adesivar o carro. Iríamos competir com o número 31, escolhido por ser esse o ano de nosso Fordinho. Adesivos colocados, hora de assumir nossa posição nos boxes. Nesse momento, surge um problema: não conseguimos dar a partida no carro. Mas é apenas um pequeno contratempo que nos mostra o quão amigável é o clima por lá: somos cercados por gente querendo ajudar e pronto! Motor funcionando, fomos para os boxes excitados pela atmosfera de todos aqueles belos carros e, mais que isso, excitados por fazer parte do evento.
Logo a pista é aberta e vamos para nossa volta de reconhecimento. Não importa se a intenção era uma primeira volta lenta e conservadora; ficamos realmente entusiasmados e, quando nos demos conta, ainda na primeira curva, o pensamento era “entramos rápido demais!” Mas nosso Fordinho se comportou bravamente. A cada curva, íamos ficando mais confiantes e o carro ia mais rápido. Pé na tábua! Assim o dia foi dedicado aos treinos livres e classificatórios, com algum tempo livre que aproveitamos para circular, ver os outros carros e conversar com os colegas competidores – muitos deles usando, como nós, o tradicional gorro de couro. Lá estava a Família Gabarra, com três gerações de competidores. Lá estava Ronaldo Topete, que conquistou a pole position da categoria Speed, batendo Nelson Piquet, e quase derrotando o tricampeão na corrida. E lá estava também o entusiasmo de Tiago Songa, organizador do evento, sacudindo a bandeira quadriculada ao final de cada corrida.
E domingo foi o grande dia. É difícil descrever o que sentimos enquanto tomávamos nosso lugar no grid de largada. Estávamos prestes a pilotar nosso Fordinho de 1931 numa corrida de verdade! Medo, felicidade, coragem, tudo misturado. Motores ligados! Os primeiros metros já nos mostraram a emoção que estava por vir. Para sermos sinceros, devemos dizer que não fizemos uma grande largada. Mas logo recuperamos nossa posição ao fazermos uma bela ultrapassagem na segunda curva. E seguimos, cantando pneus, corrida afora! Durou apenas cerca de 10 minutos, mas foram minutos inesquecíveis.
Assim como foram inesquecíveis as pessoas que conhecemos. Depois de nossa corrida, tivemos tempo para interagir e assistir às demais categorias. E o evento não se resumiu apenas às corridas de velocidade. Havia também a categoria de Marcha Lenta, uma tradicional competição em que o vencedor é o competidor mais lento. Nessa categoria, o piloto caminha ao lado do carro, controlando sua velocidade pelo “bigode” – o objetivo é ir tão devagar quanto possível sem deixar o carro morrer.
Ao final do dia, tristes, percebemos que já era hora de voltar para casa. Não é fácil pensar que teremos de esperar todo um ano pela próxima edição. Mas, por outro lado, isso significa que teremos tempo de preparar nosso carro – alguma restauração adicional, algum treino e... 2015, aí vamos nós, pé na tábua!

Originalmente publicado em inglês em: TRINDADE, E.D.; TEIXEIRA, R.C. Behind the wheel: Brazilian jalopy racing. The Restorer, v. 59, n. 1, Maio/Jun., p. 28-30, 2014.