quarta-feira, 4 de abril de 2018

Tão perto e tão longe: a fronteira entre as duas Coreias

A península da Coreia é cheia de contradições, e talvez a maior delas seja exatamente a fronteira que a divide ao meio.
Monumento à Reunificação da Coreia
Quando a Guerra da Coreia terminou, com a assinatura de um cessar-fogo em 1953, a península ficou dividida por uma faixa de quatro quilômetros de largura nas proximidades do paralelo 38. Na tentativa de evitar futuros conflitos, acordou-se que armas não seriam permitidas nessa região, que passou a ser chamada de Zona Desmilitarizada.
A questão é que o entorno dessa região pode ser qualquer coisa, menos desmilitarizado. Nunca estive num lugar que exalasse tanta tensão, medo e guerra. Ao mesmo tempo, há ali um silêncio, uma calma, uma natureza surreal. Bicho estranho é o ser humano.
Apesar da atmosfera gritantemente bélica, visitas à Zona Desmilitarizada de alguma forma se tornaram passeios turísticos acessíveis dos dois lados da fronteira. De quebra, cada lado aproveita para contar sua versão da história - uma radicalmente diferente da outra. Tentar conhecer ambos os lados e encontrar um meio termo é um exercício bastante esclarecedor. Por exemplo: os números variam, mas é quase certo que o contingente militar dos Estados Unidos na Guerra foi maior do que o das forças tanto norte- quanto sul-coreanas. Ou seja, fica claro que não se tratava simplesmente de uma briga entre os coreanos dos dois lados. Ainda hoje, a propósito, os Estados Unidos mantém uma força nada desprezível na Coreia do Sul. O que faz pensar que o negócio da guerra (e do medo) deve ser bastante lucrativo para eles (tivemos contato com um desses soldados estadunidenses na Coreia do Sul, que aliás nos passou a perna, induzindo-nos a pagar por uma corrida de táxi que deveria ter sido dividida).
Bem, nós visitamos a Zona Desmilitarizada pelo norte, saindo de Pyongyang. Na estrada que leva à fronteira fica o Monumento à Reunificação da Coreia. Por mais que a questão da unificação seja explorada de forma política por todos os envolvidos e intrometidos, o monumento em si é muito bonito, assim como a causa por trás dele. Afinal, embora nenhuma união se faça facilmente, como sabem todos os casais, é confortante que alguém pense em reunificação enquanto tanta gente no mundo pensa em separatismo.
À medida que a estrada (chamada Estrada da Reunificação, que tem placas marcando a distância até Seul) se aproxima da fronteira, começam a surgir postos de controle militar. Chegando ao limite da Zona Desmilitarizada, o clima é de um quartel em prontidão. Um militar norte-coreano sobe na van onde estamos eu, a Renata, as duas guias norte-coreanas e o motorista. Não consigo achar agradável esse clima, e a apreensão disputa espaço com o fascínio por estar nesse lugar exclusivo.
Interior da Zona Desmilitarizada
A van segue por uma pista estreita entre fortes muros e barreiras antitanques até o interior da Zona Desmilitarizada - vamos em direção ao local onde foram feitas as negociações de paz durante a Guerra e que é, hoje, o único ponto onde as Coreias do Norte e do Sul "se tocam" de fato - ou quase isso. No caminho, o soldado começa a falar sobre a Zona Desmilitarizada, contar histórias e conversar. Vamos facilmente nos afeiçoando a ele - por baixo da solenidade do uniforme há com certeza uma rapaz simples, de sorriso largo e cheio de curiosidade sobre o mundo exterior. Ao chegar, ele nos apresenta o local onde foi assinado o armistício e que é hoje um museu no lado norte-coreano. 
"You are not machines (...), you have the love of
humanity in your hearts." (The Great Ditactor, Chaplin)
Logo adiante está a fronteira propriamente dita, marcada por uma linha de tijolos na metade da Zona Desmilitarizada. Há alguns barracões colocados precisamente sobre esta linha. Do lado de cá, soldados norte-coreanos montam guarda; do lado de lá, soldados estadunidenses e sul-coreanos montam guarda. Do lado de cá, um prédio norte-coreano virado para o sul; do lado de lá, um prédio sul-coreano virado para o norte. Tudo em simetria.
Ainda iríamos andar por uns bons minutos, até um posto de observação no alto de uma colina a alguns quilômetros dali. Desse posto, com a ajuda de binóculos, avista-se o muro, construído no lado sul, que ajuda a separar a península. A Estrada da Reunificação obviamente não atravessa a fronteira. O ser humano é um bicho estranho.
No final, o militar sorridente que nos acompanhou se ofereceu para tirar fotos conosco. Abraçamo-nos. Naquele lugar carregado, parece que de alguma forma o uniforme não pesava mais. Aquele olhar e aquele sorriso me impressionaram mais que os muros e as cercas. Ah, o ser humano.

sábado, 31 de março de 2018

Um dia como outro qualquer em Pyongyang

Uma das primeiras coisas que chamam a atenção na capital da Coreia do Norte é o quanto a vida ali é surpreendentemente normal. Chega a ser estranho dizer isso, não? Mas o fato é que sabemos tão pouco sobre os norte-coreanos que desembarcamos no país cheios de curiosidade sobre as coisas mais básicas.
Um passeio em Pyongyang pode começar pela Praça Kim Il Sung, o coração da cidade e um dos muitos logradouros nomeados em honra do Grande Líder e Eterno Presidente da Coreia do Norte. Bem perto dali fica uma das estações do metrô. Sim, Pyongyang tem metrô - são duas linhas e um total de 16 estações. Dizem que é o metrô mais profundo do mundo (de fato, é uma longa descida em escada-rolante) e que isso daria a ele a qualidade adicional de abrigo contra um eventual ataque aéreo. Os trens são relativamente antigos, mas bonitos e perfeitamente funcionais. Agora, o que chama a atenção mesmo são as estações: decoradas com esmero, são simplesmente lindas. Em geral, têm grandes murais com imagens celebrando algum aspecto da história do país ou da vida dos líderes (nem sempre é possível separar essas duas coisas na concepção oficial norte-coreana). São notáveis também os elaborados lustres, estátuas dos líderes e, na plataforma de cada estação, exemplares do jornal do dia à disposição de quem passa.
Do outro lado da mesma praça fica a Grande Casa de Estudos do Povo - uma biblioteca não menos imponente que o seu nome. Ao visitá-la, fomos recebidos com um grau de atenção quase inimaginável. Uma mocinha, que devia estar tão curiosa a nosso respeito quanto nós estávamos dela, percorreu conosco várias salas, explicando o propósito de cada uma e nos apresentando parte do acervo em português da biblioteca - alguns livros editados em Portugal e um CD de música brasileira. O lugar é, na verdade, mais do que uma biblioteca. Tem um grande auditório, espaços de trabalho e salas de aula onde são ministradas lições de línguas estrangeiras - durante nossa visita, pudemos presenciar uma aula de inglês e outra de chinês.
Saindo da biblioteca e andando pela rua, pode-se observar melhor a cidade. E ela é realmente bonita. Os espaços são amplos e os prédios são atraentes e coloridos. Vê-se sempre muita gente caminhando nas calçadas, algumas pessoas nas paradas de ônibus ou trólebus, outras de bicicleta. Aliás, como outras cidades ao redor do mundo, Pyongyang possui um sistema de compartilhamento de bicicletas.
Nas ruas, o que se destaca são os murais e cartazes de propaganda. Propaganda há em praticamente todos os lugares do mundo, óbvio.  A da Coreia do Norte, porém, possui algumas particularidades. Em primeiro lugar, claro, a inconfundível estética do realismo socialista. Em segundo lugar, os temas: excetuando-se um único outdoor de propaganda da marca de carros norte-coreana (Pyeonghwa), todos os cartazes que vi tratavam de exaltar as realizações do povo coreano, conquistas militares, mensagens ideológicas ou o carisma dos líderes. Além disso, chegando mais perto, percebe-se um terceiro ponto: a maioria dessas obras não são simples cartazes impressos como os que estamos acostumados a ver. São grandes mosaicos de azulejos ou pinturas feitas a mão, verdadeiras obras de arte. Fascinante. Numa ocasião, encontramos por acaso um artista a pintar um destes cartazes. O trabalho, lindo, já estava avançado, e naturalmente eu quis tirar uma foto. Apesar de os norte-coreanos serem normalmente bem tranquilos quanto a fotos, o rapaz (para minha tristeza) pediu que eu não fotografasse o trabalho inacabado. Acrescentou que não haveria problema em registrar a obra depois de pronta - mas eu não teria essa oportunidade.
E assim segue a vida em Pyongyang. A cidade também não está alheia ao comércio do dia-a-dia, embora o consumismo desenfreado (ainda bem) seja algo distante. Nossas guias faziam uso frequente do telefone celular, da mesma forma que pessoas de qualquer outro país. Nas ruas, veem-se alguns quiosques de comida e bebida. Aqui e ali, alguma loja. E tivemos a oportunidade de entrar em um grande supermercado, tão parecido com os nossos quanto se pode esperar de um supermercado asiático. Nas prateleiras, produtos norte-coreanos e alguns importados da China e de outros lugares da Ásia. Pessoas fazendo compras e pagando em dinheiro ou em cartão. Nesse gesto, aliás, desfaziam sem saber outra concepção equivocada que tínhamos: não é verdade que não haja cartão de crédito na Coreia do Norte, como não é verdade que não haja celulares ou internet; acontece é que eles usam sistemas diferentes dos nossos. Pensando bem, não era mesmo de se esperar que as bandeiras estadunidenses Visa ou Mastercard circulassem por lá. Tudo bem, pagamos em dinheiro mesmo e saímos com nossas compras: itens como chás, chocolates e uma lata de bolachas que, como tudo o mais, ajudaria a compor o mosaico desse país que, para nós, passava a ser cada vez menos misterioso e cada vez mais fascinante.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Coreia do Norte à vista!

Uma cena que veríamos muitas vezes ao longo dos próximos dias
Ah, a Coreia do Norte! Poucas viagens poderiam ser marcadas por mais expectativa do que essa. Não é para menos: por mais que se pesquise, há pouca informação disponível sobre esse país. Pior ainda: muito do que se ouve e do que se lê são notícias tendenciosas publicadas por terceiros. Coisa rara, raríssima, é ter contato em primeira-mão com a Coreia do Norte.
Assim, está explicado um dos motivos por que decidimos ir até lá: muito mais do que qualquer outra país que já visitei, a Coreia do Norte é um lugar que só se pode conhecer e entender (pelo menos um pouco) estando lá pessoalmente.
E há, sim, muito preconceito. As pessoas torcem o nariz quando se fala em visitar a Coreia do Norte apontando diversos motivos: porque é uma ditadura, porque tem armas nucleares, porque é um país socialista... Bem, se a preocupação fosse mesmo com o armamento, ninguém visitaria o país que mais  tem gastos (ou investimentos) militares e que mais se envolve em conflitos bélicos - um tal de Estados Unidos, terra do Mickey e da liberdade... Assim como a questão política, que é virtualmente impossível de se dissociar da Coreia, não é motivo para não visitá-la: além de adicionar uma dimensão única à viagem, de fazer a gente abrir os olhos sobre muita coisa (e não só sobre a Coreia, as ditaduras ou o socialismo), é preciso lembrar que o país tem um único líder e dezenas de milhões de habitantes. Como qualquer lugar do mundo, a Coreia do Norte é feita pelas pessoas, todas elas, e encontrá-las é fascinante.
Aviões da Air Koryo em Pyongyang
"Ah, mas se o povo sofre, por que não faz nada? Não se revoltam?" - foi o que ouvi de alguns sobre a Coreia do Norte. Respondo com o que a norte-coreana Lee nos perguntou quando contamos a ela sobre alguns dos casos de corrupção no Brasil: "Mas por que o povo não faz nada? Vocês não protestam?" Digam-me qual dos dois países, Coreia do Norte ou Brasil, é considerado uma democracia, com livre acesso a informação e direito de opinião e manifestação; então respondam à pergunta dela e ganhem de brinde a resposta da pergunta sobre os coreanos. Ah, citar revoltas de Facebook não conta.
Bem, voltando a falar da viagem propriamente dita. Mais do que qual quer outra, ela começa antes, lendo, buscando informações e fazendo contatos. Só se pode entrar na Coreia do Norte através de uma agência de turismo, e sabendo que se vai andar o tempo todo na companhia de guias coreanos. Apesar de parecer que isso restringe a liberdade, no nosso caso foi super tranquilo. Nossas duas guias eram uns amores de pessoas e o roteiro (que na verdade foi montado com base nas coisas que pedimos para ver e fazer) não era tão rígido assim. A verdade é que isso facilita muito e permite acesso a muita informação e a conversas que não teríamos se estivéssemos por conta própria. Sim, acaba encarecendo o passeio mas, mesmo assim, quando penso no tanto de coisas que vimos, na qualidade das refeições e dos hotéis e no fato de termos guias e transporte à nossa disposição, dou-me conta de que o custo realmente não é tão caro assim.
Refeição de bordo
Agora, o difícil mesmo é descrever a expectativa que toma conta da gente no início da viagem. Em Pequim (parada quase que obrigatória, já que não há como ir diretamente da Coreia do Sul para a do Norte), seguindo a orientação de alguns sites da Internet, tivemos a precaução de largar o que tínhamos de livros e de artigos sul-coreanos. Mais tarde, teríamos a impressão de que o cuidado foi exagerado: uma das primeiras coisas que vimos quando chegamos em Pyongyang foi gente vestindo coisa alusiva aos Jogos Olímpicos que estavam acontecendo no vizinho do sul. Antes disso, ainda na hora de fazer o check-in, o coração já estava pulando forte. O voo foi bem mais cheio do que esperávamos e cada norte-coreano que estava ali levava caixas e caixas de bagagem. Certamente aproveitavam a viagem para comprar o máximo de coisas que podiam, dado que os embargos dos Estados Unidos e das Nações Unidas não permitem que uma série de produtos entre no país.
O voo em si, num Tupolev russo bem razoável, foi tranquilo. A televisão de bordo passava belas apresentações de cantoras coreanas; a comida, um curioso hambúrguer acompanhado de refrigerante fluorescente, era razoável e mais farta que a de muitos voos.
Aeroporto de Pyongyang
Ao desembarcar, a passagem pela imigração e pela aduana foi mais tranquila ainda. Ao contrário do que estávamos esperando, ninguém olhou nossas bagagens e passamos diretamente. Ao chegar no saguão do aeroporto, demorou uns minutos até que duas moças se adiantassem e se apresentassem como nossas guias, Lee e Choi. Achamos essa demora ligeiramente estranha, porque acreditávamos que elas estariam já esperando por nós e não seria difícil reconhecer dois estrangeiros como nós ali. Mais tarde, Lee esclareceu que estava esperando dois brasileiros e, portanto, duas pessoas negras; não imaginava que pudéssemos ser branquelos daquele jeito!
Enfim, a viagem estava começando. A terra dos Kim se abria para nós!


Mais sobre a Coreia do Norte: Um dia como outro qualquer em Pyongyang

sábado, 24 de março de 2018

Gangneung, a Olimpíada no gelo

Parte 2/2 da crônica sobre os jogos de PyeongChang 2018. Primeira parte aqui.
Gangneung, cidade litorânea vizinha a PyeongChang, foi a sede das competições de gelo em estádio fechado - como hóquei, patinação e curling. Ao contrário de PyeongChang propriamente dita, onde os eventos eram mais dispersos e de difícil acesso (por conta da própria natureza dos esportes disputados lá), em Gangneung a maioria das competições ficou concentrada num belo parque olímpico. De quebra, estávamos hospedados a apenas um quilômetro desse parque olímpico, de tal forma que era fácil ir e voltar a pé. Perfeito para nós, que queríamos aproveitar a oportunidade de presenciar diferentes modalidades.

Hóquei no gelo. De todos os esportes que vimos, era o único que já tínhamos assistido a uma partida antes. Ainda assim, Olimpíada é Olimpíada, e hóquei no gelo é um esporte simplesmente impressionante. Afinal, pessoas normais como nós teriam dificuldade em fazer qualquer uma das seguintes coisas separadamente, que dirá ao mesmo tempo: patinar com desenvoltura, incluindo mudanças bruscas de velocidade e direção; tacar com precisão um disco a 150 km/h; defender esse mesmo disco; resistir a trombadas e empurrões violentos e levantar-se/recuperar-se deles rapidamente.

Patinação de velocidade. Aqui a história parece um pouco mais fácil, mas só parece, porque quando se tem noção da velocidade que os patinadores atingem, a coisa fica mesmo impressionante. Além disso, algo que descobrimos é que os coreanos têm verdadeira paixão por patins. Nas ruas e parques das duas Coreias vemos crianças e jovens patinando. E, durante as Olimpíadas, o que mais a televisão mostrava eram as competições de patinação, as quais, provavelmente não por acaso, também eram o ponto forte dos competidores coreanos.

Patinação artística. Se a patinação de velocidade parece um balé, com seus movimentos ritmados e precisos, a patinação artística é um primor de dança no mais alto nível. Para ela, vale algo parecido ao que escrevi sobre o hóquei: se para quem tem dois pés esquerdos, como eu, qualquer passo de dança já é um desafio, fazer movimentos coreografados em cima de patins, e em duplas, é incrível. E belo.

Curling. Ah, curling, o jogo da vassourinha! Não é que adoramos e nos divertimos muito? O jogo envolve estratégia e precisão e consegue se manter emocionante até o último ponto. Além disso, é curioso descobrir que o curling atrai não somente curiosos como nós, mas verdadeiros fãs que acompanham o esporte e assistem às partidas paramentados a caráter!

No final das contas, os dias lá passaram tão rápido! É o tipo de evento que deixa saudades quando acaba. Ainda bem que ainda tinha muita coisa para acontecer em nossa viagem.

quinta-feira, 22 de março de 2018

PyeongChang 2018: no frio também tem Jogos Olímpicos, sim, senhor!

Biatlo
O calor reinante em jogos como os do Rio 2016 faz até com que a gente esqueça que as Olimpíadas também têm uma versão de inverno a cada quatro anos. Pois têm e, embora sejam menos grandiosos que os Jogos Olímpicos de Verão (até porque esportes de inverno são naturalmente menos universais que os de verão), são fantásticos. E com uma vantagem, ao menos para nós, brasileiros: são uma excelente oportunidade de acompanhar de perto esportes com os quais normalmente não temos contato.
Assim a ideia de um dia, se houvesse oportunidade, presenciar os Jogos de Inverno foi se tornando um plano concreto. PyeongChang, 2018, estava cada vez se aproximando mais! Verdade que não se tratava de uma viagem fácil de planejar - era um lugar distante, sobre o qual se tinha pouca informação, e que não falava a nossa língua... 
Interior de um "discreto" ônibus entre Gangneung e PyeongChang
Mas deu tudo certo, e foram Jogos fantásticos. A única grande dificuldade, a meu ver, foi o transporte. O problema é que os eventos se dividiam entre dois grandes centros: em PyeongChang propriamente dita ficava a parte de neve, na região montanhosa; a 50 km dali, em Gangneung, ocorriam os eventos de gelo, em ginásios fechados. Foi colocado um batalhão de linhas de ônibus circulando entre os diversos pontos e também entre as cidades vizinhas. Mas o que era para funcionar bem tinha alguns problemas básicos de organização. Algumas linhas demoravam demais para passar, enquanto outros ônibus se acumulavam no pátio. E os próprios itinerários pareciam não ter sido pensados de forma otimizada, sendo necessários três ônibus diferentes para se locomover entre os dois principais centros de Gangneung e PyeongChang, quando o lógico seria ter um ônibus direto nesse trajeto.
A diversão já começou antes, pesquisando sobre as modalidades e decidindo o que iríamos querer ver.   Algumas escolhas já sabíamos bem, outras tiveram de ser mais pensadas. Acontece que há eventos que são melhores para se assistir ao vivo, outros eu acho que são melhor acompanhados pela televisão. Escolhemos entre os primeiros, claro. Por isso, competições como o bobsled acabaram ficando de fora da nossa lista.
Esqui cross-country
Os dois primeiros dias dedicamos aos esportes de neve. Começamos pelo esqui cross-country, uma modalidade à qual terminei me afeiçoando. E acabou sendo muito bom, ainda mais porque se tratava de uma das competições mais democráticas dos Jogos de Inverno. Sim, eu falei aí em cima que são Jogos menos universais que os de verão; nem todo mundo tem invernos rigorosos, neve ou mesmo dinheiro para comprar equipamentos. Mas o esqui cross-country acaba sendo um dos esportes de inverno mais acessíveis para quem não tem... inverno. Assim, pudemos ver atletas de lugares tão diversos e improváveis como Groenlândia, Andorra e Liechtenstein (que têm neve, mas não têm tanta tradição); Mongólia e Coreia do Norte (que vemos raramente, qualquer que seja o evento); Tailândia e Bermudas (que têm clima tropical); e, especialmente, o Brasil. Nossa pátria de chuteiras, digo, de esquis foi representada (muito bem) pelo jovem Victor Santos, e simplesmente torcer por ele já nos valeu o ingresso.
Vimos também o biatlo, que, como competição, é ainda mais dinâmico: trata-se de esqui cross-country combinado com tiro. Errar ou acertar cada alvo pode fazer a diferença no resultado final. Muita coisa acontece ao mesmo tempo e é difícil acompanhar toda a movimentação mas, justamente por isso, não falta ação. Incrível!
Agora, se tem uma coisa que foi difícil saber a exata dimensão com antecedência, essa coisa foi o frio. E como faz falta umas boas botas e um bom par de meias! Havia uma espécie de abrigo, um salão fechado cheio de aquecedores elétricos. Entre uma competição e outra, ia todo mundo para dentro do abrigo, tentando se esquentar ao máximo na frente dos aquecedores antes de sair novamente para o frio! Menos mal que nos dias seguintes veríamos competições em ginásios fechados, portanto relativamente bem mais quentes. Mas o frio, apesar de exagerado, foi, de certa forma, parte da história. Afinal, não se fazem Jogos de Inverno sem ele.
Continuação da crônica sobre os Jogos de PyeongChang aqui.

sábado, 17 de março de 2018

Seul, porta de entrada para a Coreia

Acho que ouvi falar pela primeira vez de Seul quando eu ainda era criança e a cidade sediou os Jogos Olímpicos (a primeira vez em que tive alguma consciência do que eram jogos olímpicos). Mas, por um motivo ou outro, Seul nunca tinha estado na minha lista de prioridades de viagem. Até que outra olimpíada, os jogos de PyeongChang, acabaram dando um incentivo, e eis que pousei na capital sul-coreana.
Trata-se de uma cidade menos exuberante que Pequim, embora esta não me pareça uma comparação totalmente justa, dadas as diferenças históricas e econômicas entre a China e a Coreia. Por outro lado, Seul sai ganhando em pelo menos um ponto: a comida coreana é fantástica (assunto para um próximo capítulo!).
Seul é uma mistura interessante de construções e culturas novas e antigas. Em alguns momentos parece que o novo prevalece, como quando se nota a profusão de arranha-céus por quase toda a parte central da cidade; mas então surge um bairro inteiro de casas em estilo tradicional. Isso para não citar os antigos palácios, templos budistas e portões. Em aspectos mais intangíveis, o contraste é ainda mais marcante: jovens usando as roupas tradicionais (hanbok), preocupados com a família e respeitando todas as normas de etiqueta convivem com a obsessão pelo k-pop (música pop sul-coreana), pelos telefones celulares e por maquiagem e cosméticos. Também nos banheiros, há sempre uma expectativa sobre o que se vai encontrar: o tradicional "buraco no chão" asiático ou moderníssimos vasos sanitários com luz interna e diferentes jatos de água e ar com temperatura regulável...
A despeito da dificuldade com a língua e apesar de todas as diferenças que costumamos experimentar quando viajamos ao Extremo Oriente, acabou sendo relativamente fácil se localizar e sentir-se em casa em Seul. Pelo menos a partir do momento em que comecei a entender o peculiar sistema de numeração dos prédios nas ruas coreanas! Tivemos a sorte de nos hospedarmos num excelente albergue, confortável e muito bem-localizado, o que ajudou bastante. Claro que a Coreia do Sul tem seu quinhão de curiosidades asiáticas. Por exemplo: uma comida extremamente popular é o Spam, uma marca de carne enlatada que entrou no país trazida por soldados estadunidenses durante a Guerra da Coreia. No Ano Novo Lunar, uma das principais datas comemorativas, as pessoas se presenteiam com caixas enormes e bem-decoradas cheias de latas de Spam. Chá também é bastante popular; mas, ao contrário da China e de outros lugares onde se consome chá preto, verde e outras variações da mesma planta, na Coreia predominam infusões de cereais - cevada, trigo sarraceno, arroz...
SeoulNo Centro, perto da prefeitura, encontramos uma pista de patinação no gelo e dividimos espaço com os coreanos. Em outros lugares, telões, lojas e exposições lembravam que o país vivia o clima olímpico. Seul, apesar de não ser sede dos jogos, é de longe a maior cidade do país e fica a duas horas dos locais de disputa. E assim, aos poucos, fomos encontrando e ficando íntimos de Soohorang e Bandabi, os mascotes dos Jogos de Pyeongchang. Quando chegamos às competições propriamente ditas, já estávamos ambientados - ressalvado apenas o frio, que não deixava esquecer que era inverno com todas as letras!

domingo, 4 de fevereiro de 2018

Guia Puffin de Gastronomia 2018

Com um pequeno atraso, é verdade, mas aqui está: a nova edição do Guia Puffin de Gastronomia! Mais uma vez, com o árduo e saboroso desafio de listar os melhores restaurantes do ano anterior. 
Só para lembrar: restaurantes que apareceram nas edições anteriores (20152016 e 2017) ficam de fora para, assim, dar mais espaço às novas descobertas. Como das outras vezes, o Guia Puffin de Gastronomia distribui entre uma e três enguias para os estabelecimentos que proporcionaram as mais excepcionais experiências gastronômicas - não só a comida, mas também o atendimento, o ambiente, enfim, a experiência completa. Neste ano, mais um restaurante vem se juntar a OlympeLe Louis XVMaaemo, Kokkeriet e Gordon Ramsay no exclusivo clube dos agraciados com três enguias. Querem saber qual é ele? Pois que então que rufem os tambores... Com vocês: o novo Guia Puffin de Gastronomia!

Miam Miam, Rio de Janeiro - 1 enguia
É um restaurante cômodo: um casarão antigo, com um ambiente intimista, uma decoração bem-cuidada e longe de ser extravagante, o Miam Miam convida quem vai lá a se sentir em casa. E a comida vai pelo mesmo caminho: saborosa, bem-preparada e sem fugir muito do clássico.



Irajá Gastrô, Rio de Janeiro - 1 enguia
Restaurante comandado pelo chef Pedro de Artagão (e que não fica no bairro de Irajá, mas na rua Conde de Irajá). A comida, saborosa, é servida num salão agradável cheio de plantas. Um "senão": quando fomos, a casa trabalhava com duas versões de menu degustação, uma maior e a outra menor, mas somente a menor tinha opção vegetariana. Uma falha que provavelmente custou uma enguia ao chef, pois a qualidade dos pratos merecia mais.



Liburnia, Pristina - 1 enguia
Esta é uma daquelas agradáveis surpresas que o Guia Puffin revela. Quem diria que o Kosovo abrigaria uma enguia? Pois o Liburnia faz por merecer ao cumprir com mérito a proposta de um menu recheado de opções típicas da cozinha kosovar-albanesa com um leve toque de sofisticação. É uma culinária bem temperada, farta e que não perde o ar de comida caseira. Cozinha que aproveita o melhor da terra e que dá ideia para fazermos o mesmo em casa. De quebra, é provavelmente um dos restaurantes mais baratos que já apareceram no guia, o que faz dele um excelente custo-benefício.


Glouton, Belo Horizonte - 2 enguias
Comida mineira em uma de suas melhores roupagens. Simples assim. Quem é de lá vai reconhecer, nos pratos criados pelo chef Leo Paixão, a influência e os ingredientes da comida caseira tradicional. Quem não é, vai descobri-los e fazer associações com sua própria infância. Tudo com um toque levemente contemporâneo de quem sabe o que está fazendo. Em nossa visita, pudemos saborear um menu degustação ao qual não faltou nada - nem mesmo a alternativa vegetariana, que foi aprovadíssima!

Boragó, Santiago de Chile - 2 enguias
Não menos do que o lápis-lazúli, este restaurante é uma legítima joia chilena. O menu do Boragó é grandioso (e extenso), um verdadeiro banquete que se propõe à tarefa hercúlea de fazer um apanhado de toda a tradição culinária do país. E estamos falando de um país diverso, com altitudes e latitudes bastante diferentes. O chef Rodolfo Guzmán parece ir à raiz destas tradições para buscar o que elas tem de melhor e de mais autêntico - no caminho, chega a parecer quase hermético, para em seguida se revelar em sabores tão variados que seriam difíceis de prever.


Hof van Cleve, Kruishoutem (Bélgica) - 2 enguias
Esta é a casa do chef Peter Goossens, alguém que realmente sabe o que faz - e sabe que faz bem. Para começar o restaurante fica num lugar quase isolado nos arredores de Gante. Não é o tipo de lugar a que se vai por acaso (pelo contrário, merece figurar nos melhores sonhos e listas de restaurantes a se visitar). Já ao chegar, estacionando nosso humilde carrinho alugado entre os Porsches e Ferraris, ele se impõe. Mas, ao entrar, pouco a pouco, vamos ficando à vontade. Comida e serviço meticulosos, sabores que explodem e se sucedem, o prazer e a certeza: comer bem é um luxo, talvez o melhor deles.

Maison Troisgros (Le bois sans feuilles), Roanne/Ouches (França) - 3 enguias

Este restaurante figurava na nossa lista dos sonhos desde a primeira edição do Guia Puffin. Chegar até ele exigiu um cuidadoso planejamento de viagem - que foi plenamente justificado. Para quem não sabe, é a casa de Michel Troisgros, irmão de Claude Troisgros (que já é habitué do nosso guia), herdeiros ambos do sobrenome que figura entre os criadores de nada menos que a nouvelle cuisine francesa. E assim a Maison Troisgros entrega com folga o que se espera dela: uma aula magistral sobre o que de melhor a gastronomia do país de Asterix já produziu. Num lugar incrível, em plena zona rural no centro da França, somos levados ao êxtase - não há outra palavra que possa ser utilizada. De quebra, ainda saímos de lá com a certeza de que Michel Troisgros (assim como seu filho César) não só é um mestre como é uma simpatia de pessoa. A incrível amabilidade e simplicidade que se encontra nos verdadeiros gênios.

domingo, 21 de janeiro de 2018

Liechtenstein: os príncipes e nós

Eduardo Trindade
Castelo de Vaduz, residência do príncipe e de sua família
Países pequenos exercem sobre mim um certo fascínio. Talvez devido ao antagonismo de alguém como eu, vindo de um país tão grande e diverso, encontrar uma nação que seja justamente o oposto disso. Talvez pela satisfação levemente preguiçosa (e eventualmente traiçoeira) de achar que se consegue conhecer um país inteiro andando pouco. Talvez simplesmente porque esses países - Luxemburgo, Andorra, Mônaco, agora Liechtenstein... - são realmente bonitos, além de não serem lugares congestionados de turistas.
Liechtenstein é um pequeno país entre a Suíça e a Áustria e possui uma curiosa história com reminiscências medievais, como o fato de ser uma monarquia: mais precisamente, um principado em que o monarca possui um papel político ativo, muito mais do que decorativo.
Dia de festa em Liechtenstein
Assim sendo, tivemos a feliz coincidência de estar em Liechtenstein no aniversário do príncipe, uma ocasião que (não por acaso) é dia de festa nacional. Os jardins do castelo são abertos aos súditos que, neste dia, podem desfrutar de um almoço literalmente principesco. Os próprios príncipes e sua família (aliás, uma das mais ricas da Europa) desfilam no meio do povo. Há um pronunciamento ao qual aparentemente o país inteiro assiste espalhado pelo gramado em volta do castelo, num clima que mistura piquenique familiar com conto de fadas. A banda toca. Depois descem todos para o centro da cidade, onde há uma feira com barracas de comidas, música ao vivo nas praças e museus abertos com entrada franca. À noite, uma queima de fogos encerra a festa.
Liechtenstein do lado de cá, Suíça do lado de lá
No dia seguinte, aproveitamos para explorar o país, o que não é difícil dada a sua pequena dimensão. Liechtenstein possui 11 municípios, com uma média de 3 mil habitantes em cada um deles. Ou seja, o que se vê são pequenos vilarejos alpinos aqui e ali. Mesmo a capital, Vaduz, tem um certo ar de província. A geografia do país é bem dividida em duas partes: a oeste, Liechtenstein ocupa metade de um vale (no meio do vale está o rio Reno e, do outro lado, a Suíça); a leste, montanhas que formam parte da cadeia dos Alpes e a fronteira com a Áustria. Na parte baixa, campos para pastagem de gado leiteiro; na parte alta (de onde, aliás, tem-se uma bela vista de quase todo o país), estradas sinuosas e uma estação de esqui que, no inverno, é o principal destino turístico do país. Aqui e ali, castelos, alguns em ruínas, outros conservados e erguendo-se imponentes, como aquele de Vaduz, em que vive a família do príncipe. Os caminhos cruzam as duas fronteiras o tempo todo: a única autoestrada digna do nome fica do lado suíço, de tal forma que, para ir rapidamente de uma ponta à outra de Liechtenstein, é preciso atravessar para o país vizinho e voltar. Mas tem horas em que simplesmente vale mais a pena fazer o caminho lento, atravessando os campos. É preciso tempo para assimilar os tons de verde desse vale.

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

Unindo as pontas da Europa

Pristina, Kosovo
Neste ano, passamos por dois dos países mais pobres e menos desenvolvidos da Europa - Kosovo e Albânia. Poucos meses depois, visitávamos dois países no extremo oposto da lista - os notoriamente ricos Liechtenstein e Suíça. A coincidência não foi planejada, tanto que só me dei conta dela algum tempo depois. Isso não quer dizer que não tenhamos podido fazer algumas comparações muito interessantes.
A viagem ao Kosovo fora sonhada e planejada durante bastante tempo. Estávamos um pouco apreensivos com o que encontraríamos lá, dado o histórico recente de conflito armado na região. Mas acabou sendo uma viagem muito tranquila (além de fascinante!). Na Albânia estivemos só de passagem, literalmente, mas vimos os impressionantes e onipresentes abrigos antibombas que estão por toda parte. Também aprendemos que o próprio Kosovo é, decididamente uma região (de etnia) albanesa.
Para visitar Suíça e Liechtenstein, estávamos bem mais despreocupados. Claro que qualquer viagem sempre requer algum planejamento, mas, neste caso, tudo era mais fácil: há informações fartas e detalhadas na Internet; são países (principalmente a Suíça) bastante habituados a receberem turistas; e, de quebra, têm uma longa tradição de não-envolvimento bélico (neste ponto, mais uma vez, o oposto do Kosovo).
Mas afinal... Como é estar lá realmente? Nada substitui a experiência real do lugar, e toda viagem sempre traz alguma surpresa. Então vamos por partes...
As pessoas
Praticamente todas as pessoas com quem conversamos no Kosovo são simpáticas e sorridentes. Mesmo em lugares simples, sentíamos que nosso interlocutor tinha um interesse genuíno na nossa presença ali, quase como se coubesse a ele retribuir o fato de receber visitas de tão longe. De certa forma, a hospitalidade faz parte da cultura albanesa. Não há como dizer que não fomos bem tratados!
Já na Suíça, não é que as pessoas não sejam simpáticas - longe disso. Mas são menos efusivas e mais fechadas. Coisas de um país maior (embora as cidades suíças nem sempre sejam tão maiores que as kosovares) e mais cosmopolita. Ainda assim, é difícil generalizar. No pequeno principado de Liechtenstein, por exemplo, fomos incrivelmente bem recebidos por uma de nossas anfitriãs, tivemos um curioso momento de conversa com operários de uma obra e não há como menosprezar o fato de que estivemos cara a cara com a família real no aniversário do país.

Triesenberg, Liechtenstein
Limpeza e organização
Aqui é onde a comparação se faz mais gritante. No Kosovo e na Albânia, o que se vê é de entristecer: rios lindíssimos, de águas azuis cristalinas, salpicados de lixo. Cães de rua revirando sujeira. Prédios abandonados. Parte o coração, e fica-se pensando o quanto disso tudo é culpa (ou consequência) da guerra. Afinal, um país que tem poucos recursos e precisa se reconstruir deve estabelecer prioridades... Mas, ao mesmo tempo em que essa contingência não ajuda em nada, é difícil acreditar que se trate só disso e não de algo mais profundo. Assim como o hábito balcânico de fumar sempre e em todo lugar, difícil de aceitar para quem não está acostumado.
A Suíça, por outro lado... é a Suíça. Não à toa virou exemplo de organização, pontualidade e limpeza para boa parte do mundo.
Comida
A culinária do Kosovo, como de outros lugares dos Bálcãs, reflete muito da antiga ocupação turca: no café da manhã (e no próprio café), no burek, na bebida à base de iogurte (ajran), no croquete (ćevapi)... São coisas que, embora saborosas, chamam-nos a atenção, antes de tudo, por serem levemente exóticas. Já na Suíça a comida não é exótica, pelo contrário: é a terra de alguns clássicos que eles sabem executar à perfeição e entre os quais reinam supremos o fondue e o chocolate ao leite.

Preços
Claro, é quase injusto comparar: os preços no Kosovo são bem mais baixos que na Suíça e ainda mais que em Liechtenstein. Quer dizer que estes últimos são países caros? Depende. Recebe-se pelo que se paga: serviços de primeira qualidade, transporte público farto, confiável e impecável (e, em alguns casos, gratuito); qualidade de vida. No Kosovo as coisas são mais baratas, mas é triste ver obras inacabadas, estruturas precárias, museus subutilizados... E, no final das contas, isso é o que dói mais: saber que a corrupção e a ineficiência privam muita gente de ter acesso a coisas que seriam básicas em outros lugares.

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Escópia, a surpreendente capital da Macedônia

Čaršija, o centro antigo
Escópia, a capital da Macedônia, é uma das cidades mais surpreendentes que já visitei. Por mais que cada cidade dos Bálcãs (uma região particularmente diversa) tenha suas peculiaridades, a capital macedônia atual encontrou uma forma única de se diferenciar.
Ao que parece, a cidade - chamada de Skopje ou Скопје nas línguas locais - era um lugar relativamente cinza e sem graça durante a maior parte das últimas décadas. Em 1963, um terremoto arrasou a cidade. O desastre, porém marcou a região de duas formas talvez inesperadas. A primeira delas, política: foi um grande exemplo (ou oportunidade, ou pretexto) para o Marechal Broz Tito, o poderoso presidente da Iugoslávia, usar sua diplomacia visando a atrair investimentos da comunidade internacional. Em plena Guerra Fria, a Iugoslávia gozava de uma posição ímpar: um país não-alinhado, o que tornou possível que o esforço de reconstrução da cidade fosse feito com ajuda tanto do bloco ocidental quanto do bloco dito comunista. Até hoje, muitos logradouros de Escópia têm nomes que homenageiam doadores que ajudaram na reconstrução: a rua México, o quarteirão russo, os blocos sueco e finlandês.
Ponte das Artes sobre o rio Vardar
Mesmo assim, a cidade reerguida dos escombros não deixava de ter a cara da arquitetura socialista iugoslava, ou seja, continuava um tanto cinza e sem graça.
A coisa toda mudou radicalmente há poucos anos, quando a prefeitura resolveu executar um grande plano de reurbanização, enchendo a cidade de monumentos, pontes e prédios grandiosos. O conceito de arquitetura neoclássica foi levado às últimas consequências em colunas, fachadas e outros elementos que lembram nitidamente a antiguidade da região. Algumas das construções impressionam pelo tamanho, outras pelo realismo, outras ainda por um ar, digamos, kitsch - um exemplo é o inacreditável hotel em que ficamos, erguido sobre pilares cravados no rio para imitar um barco. Inusitado, sem dúvida. O hotel-navio disputa a atenção dos passantes com fachadas cheias de colunas, pontes repletas de estátuas e monumentos como o de Alexandre, o Grande. Isso sem contar que em fevereiro de 2017, quando visitamos, a cidade continuava com diversos canteiros de obras a anunciar futuros acréscimos à paisagem.
Uma das muitas estátuas
Não faltam críticos a essa política de urbanismo. Alguns dizem que se trata de desperdício de dinheiro para um povo que não é exatamente rico. Outros dizem que as construções não são "autênticas" ou que deixam de lado a oportunidade de valorizar o trabalho de artistas de vanguarda. Há quem fale que estão transformando Escópia numa Las Vegas dos Bálcãs. Eu particularmente acho as críticas exageradas. Pode haver controvérsias, sim, mas não me resta dúvidas de que todas essas obras fazem da capital macedônia um lugar muito bonito - e quem não gosta de viver num lugar bonito? E as partes antigas da cidade - como as ruínas do forte, o velho centro e os templos - estão sendo preservadas. As novas obras trazem consigo corrupção e desvio de verbas? Provavelmente sim, infelizmente, duma forma que nós brasileiros ja estamos (vergonhosamente) acostumados. Mas é claro que o embelezamento da cidade não é o culpado pela corrupção e não deve ser atacado por isso; não culpemos os frutos sadios pela parte podre. Enfim, o fato é que é difícil ficar indiferente quando se visita Escópia e, ao mesmo tempo, vê-la pessoalmente ajuda muito a entendê-la - como sói acontecer com as cidades, principalmente as longínquas.

Hotel Senigalia, construído num (falso) navio