segunda-feira, 13 de abril de 2020

Comida na Geórgia

Uma coisa marcante quando se senta à mesa na Geórgia é a quantidade de preparações emblemáticas que há no país. A rigor, não se trata de pratos nem ingredientes exóticos, mas sim de receitas que, apesar de possuirem uma inegável identidade distinta, lembram outras encontradas com certa facilidade ao redor do mundo. Herança talvez da rota da seda, que passava pela Geórgia e arredores.

A começar pelo khachapuri e suas variantes. Khachapuri é um pão assado com queijo, uma iguaria que lembra uma pizza ovalada. Eventualmente servem com um ovo por cima. Está por toda parte e vai muito bem como um lanche substancioso. É a típica comida fácil, boa e barata - perfeita para viajantes, portanto. Dependendo da fome, pode até substituir o almoço!

E então temos os khinkali. Estes são considerados o prato nacional da Geórgia, a ponto de fotos e desenhos dele estarem frequentemente presentes em lembranças para turistas: um ímã de geladeira em forma de khinkali, quem vai?
Estamos falando de uma massa recheada (recheios mais comuns: carne, queijo e cogumelos), de tamanho um tanto maior que cappelletti e, ao contrário destes, feita para ser comida com a mão. O khinkali não leva molho algum e é servido seco no prato. Como ele possui uma ponta saliente, feita da própria massa, a intenção é que seja segurado com os dedos por essa ponta (a qual, por ser uma massa mais grossa e mais seca, com "função estrutural", não costuma ser comida). Mais curioso ainda, as variedades de khinkali de carne possuem um caldo no interior da massa, junto com o recheio. É preciso então segurar o khinkali pela ponta, morder com cuidado e sorver o caldo, sem que este escorra.
Um prato muito comum entre os imigrantes italianos do Rio Grande do Sul (e, de resto, em qualquer lugar com influência italiana) é a sopa de capeléti, ou cappelletti in brodo: massa recheada servida num caldo de carne. Na Geórgia, o khinkali me lembrou uma sopa de capeléti reconstruída: com o caldo por dentro da massa, em vez de fora dela. Em outras palavras: não uma sopa de capeléti, e sim capeléti de sopa... Vira um outro prato, apesar de possuir basicamente com os mesmos elementos. Nos restaurantes, khinkali são vendidos por unidade, o que os torna muito convenientes para serem compartilhados por todos à mesa, mais ou menos como uma porção de pastéis ou de bolinhos no Brasil.

Na parte de sobremesas, encontram-se algumas variantes de baclavas, possivelmente por influência dos países vizinhos, mas com menos frequência que no Azerbaijão ou na Turquia. O doce tradicional georgiano é uma tira de nozes embebidas numa calda de suco de uva engrossada com farinha. Ao esfriar, esse suco solidifica e o conjunto como um todo fica com a aparência de uma espécie de linguiça doce. Definitivamente incomum, mas razoável numa região de uvas abundantes. Por outro lado, há também a confeitaria clássica, de origem franco-russa, que acaba sendo a mais agradável a paladares ocidentais. Assim, fomos apresentados a uma "Georgian cake" primorosa que no fundo era uma torta mil-folhas, com lascas de amêndoas e creme de confeiteiro. DNA francês no coração de Tbilisi.


Finalmente, há as compotas. Enquanto que, no Brasil, é comum chamar de compotas a um doce de frutas em calda, na Geórgia e em outros países a compota é a bebida (extremamente doce) que consiste na calda das frutas. É bem simples: a fruta é deixada "de molho" em água com açúcar e então essa mistura, com a água ao final contendo o sabor da fruta, é servida para ser bebida como acompanhamento da refeição. Nos supermercados, refrigerantes de frutas são também chamados de compotas, mas não se comparam à bebida tradicional. "Modernismos" à parte, se às vezes fica difícil adivinhar onde surgiram as receitas e quem influenciou quem, fácil é se deixar levar pelos sabores oferecidos na Geórgia.




terça-feira, 24 de março de 2020

Estava escrito na Geórgia

A Geórgia é daqueles países tão misteriosos que muita gente nem sabe que existe - ou então confunde com o estado estadunidense da Geórgia.

E, no entanto, trata-se de um país que, embora apenas em 1995 tenha se tornado independente, possui uma história e uma cultura riquíssimas. Mas comecemos por um aspecto curioso: a língua e a escrita da Geórgia. Esse povo possui um alfabeto próprio que chama a atenção por ser completamente diferente do nosso - além de ser belíssimo. Duvidam? Pois olhem as imagens.

À primeira vista, ele se parece com o alfabeto da vizinha Armênia, mas é definitivamente outro, embora contemporâneo dele. Além de bonito, é único, o que significa que gente como nós, ao primeiro contato, não tem a menor ideia de como decifrá-lo. As pedras de Rosetta disponíveis nem sempre se prestam para nós: a segunda língua, por lá, é o russo (e não o inglês), o que significa que para ler um documento ou rótulo bilíngue é preciso mergulhar no alfabeto cirílico.
Claro, há muitos alfabetos pelo mundo e encontrar um deles num país que muitos diriam ser obscuro não chega a ser surpreendente. Mas o georgiano tem pinta de ter nascido no Sudeste Asiático ou na Índia, e não nas bordas da Europa.
E - ponto para a Geórgia, sua língua e seu alfabeto - um dos seus filhos mais celebrados da terra é um escritor, o poeta medieval Rustaveli. Em Tbilisi, está presente em estátuas e dá seu nome à maior avenida, ao aeroporto e ao teatro nacional. A obra de Rustaveli, épica (à moda de seus contemporâneos) tem, entretanto, aforismos quase místicos que lembram versos de Tagore. Nada poderia ser mais exótico para nós, ocidentais.
Por cima deste tapete linguístico e literário, a Geórgia de hoje tem muitas outras camadas que competem entre si e eventualmente se amalgamam. Se não, vejamos. Foi uma das repúblicas socialistas soviéticas e possui uma história de amor e ódio com a Rússia - provavelmente mais ódio que amor, a despeito de o mais longevo ditador soviético ser filho da "Mãe Geórgia". Sim, Stalin, ele mesmo, nasceu na Geórgia e lá começou sua carreira de roubos e sequestros. Contraponha-se a isso o forte apelo que a religião tem por lá, no caso o cristianismo ortodoxo. Estamos falando, afinal, de um país do Cáucaso, um lugar onde as nações se confundem com as etnias e estas se identificam com as religiões. Outro aspecto, pouco conhecido fora de lá, é que a Geórgia é considerada pioneira mundial na produção de vinho e ainda hoje possui uma posição respeitável, produzindo a bebida tanto industrial quanto artesanalmente. E, do vinho à comida, cabe dizer que estamos falando de um país possuidor de uma diversidade de pratos autóctones que, se não são sofisticados, ninguém pode acusar de não serem criativos e saborosos. Em meio à terra dos tapetes, a Geórgia é uma fascinante colcha de retalhos.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Guia Puffin de Gastronomia 2020

Que rufem os tambores! A leitura mais inspiradora e saborosa do ano acaba de chegar!
Guia Puffin de Gastronomia distribui entre uma e três enguias para os estabelecimentos que proporcionaram as mais excepcionais experiências gastronômicas - não só a comida, mas também o atendimento, o ambiente, enfim, a experiência completa. Seguindo o mesmo critério das edições anteriores, restaurantes listados nos outros anos (desde 2015) ficam de fora para, assim, dar mais espaço às novas descobertas. E não foram poucas as que este último ano proporcionou.
Mas não vamos mais nos alongar, que são tempos bicudos para quem gosta de um montão de amontoado de muita coisa escrita. Com vocês, a sexta edição do Guia Puffin de Gastronomia!


O Pico, Fernando de Noronha - 1 enguia
A verdade é que Fernando de Noronha é um destino turístico não tão voltado à gastronomia - as praias, o mergulho e as belezas naturais são os principais atrativos. Mas surfistas e mergulhadores também precisam comer! O Pico é um restaurante agradável, com uma vista linda, atendentes simpáticos e comida saborosa. Precisa de mais do que isso?






Nakhchivan, Baku (Azerbaijão) - 1 enguia
O nome do lugar é uma homenagem ao Naquichevão, o exclave do Azerbaijão para lá da Armênia. Mas o restaurante propriamente dito fica num endereço conveniente na parte alta da Baku e é um excelente lugar para se conhecer a comida tradicional do país numa roupagem elegante. A experiência começa com a visão do salão, amplo e bonito. O cardápio não é extenso, mas nele figuram com destaque ingredientes e preparações típicos do país - por exemplo, um molho de romã de sabor marcante e o inigualável pão azéri.





Le Blond, Rio de Janeiro - 1 enguia
Já foi dito antes que a família Troisgros é frequentadora assídua do Guia Puffin, e com mérito.  Le Blond é uma espécie de restaurante irmão do Chez Claude, a outra casa de Claude Troisgros que estreou no Guia do ano passado. O conceito de ambos é parecido e, no cardápio, reconhece-se facilmente a mão do mestre, com referências a clássicos da sua carreira. Trata-se de num restaurante que convida a voltar inúmeras vezes.





Maní, São Paulo - 1 enguia
Impossível não estar cheio de expectativas ao entrar no disputado restaurante da chef gaúcha Helena Rizzo. O menu degustação é extenso e saboroso, mas um pouco prejudicado justamente pelas elevadas expectativas. O uso de álcool e coentro em alguns pratos beira o excessivo para o gosto de alguns mas, por outro lado, o cuidado e a criatividade da chef (que também usa ingredientes regionais, como erva-mate) fazem com que, no final, o balanço seja bastante positivo. E com um bônus: ao lado do restaurante funciona a Padoca do Maní, uma padaria excelente para o café-da-manhã do dia seguinte.


Zazu, Quito (Equador) - 2 enguias
Correndo por fora, o restaurante comandado pelo simpático Wilson Alpala chega para dizer por que esta é uma das edições mais surpreendentes do Guia Puffin. Quem diria que Quito, teria comida tão boa? O fato é que a culinária andina deu ingredientes de primeira classe à gastronomia mundial e, muito além disso, ainda tem coisa bastante interessante a ser descoberta. O Zazu proporciona esta descoberta, com uma imersão apaixonante e bem cuidada na cultura e na comida equatorianas. Inesquecível.




Tuju, São Paulo - 2 enguias
Ah, São Paulo, terra da boa comida! Que dizer deste restaurante de nome simpático, garçons atenciosos e comida espetacular? Pois o Tuju vai direto ao ponto: gastronomia contemporânea de dar água na boca, simples assim. Não enrola e não decepciona.





Flor de Lis, Cidade da Guatemala - 3 enguias
Alguém aí falou em azarão? Pois o Flor de Lis está aqui para mostrar que a pouco falada Guatemala merece lugar de destaque à mesa. Algo me diz que este Guia Puffin será lembrado por anos a fio! O Flor de Lis já foi citado aqui antes, e por um bom motivo: o restaurante propõe uma sinestesia gastronômico-literária, se é que isso é possível. Trata-se de um menu inteiro inspirado no Popol Vuh, o grande clássico da literatura maia. Com ingredientes simples, mas trabalhados com maestria, somos convidados a usar a imaginação - e o resultado é inigualável. Só lamento não ter lido antes o Popol Vuh... Em compensação, ao final conversamos com o chef Diego Telles, um sujeito incrivelmente simpático e humilde - talvez nem imaginasse que teria o primeiro 3-enguias da América Central!


ABaC, Barcelona (Espanha) - 3 enguias
O ABaC, do badalado chef Jordi Cruz, é um daqueles restaurantes que devia estar esperando ansiosamente a visita dos avaliadores do Guia Puffin. Isso sendo verdade ou não, o certo é que se prepararam para impressionar. E conseguiram. A criatividade do chef, no ABaC, lembra a de outro catalão - Salvador Dalí. Afinal, o tempo todo surgem surpresas quase surrealistas. Muita coisa lá não é o que parece: a caixinha sobre a mesa não é só decoração, quando menos se espera surge um lagostim que tinha ficado marinando dentro dela; a vela que dava um clima romântico, ao derreter, vira molho para embeber o pão; em certo momento, surgem balões de hélio. Tudo isso transforma a experiência em algo extremamente lúdico e deixa o ambiente leve, mas sem nunca esquecer o principal: vai-se lá para comer, e comer bem.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Xinaliq: mundo mundo vasto mundo

Imaginem o planeta numa época em que, isoladas pela distância e por caminhos inóspitos (ou pela falta deles), comunidades inteiras viviam quase sem contato umas com as outras. Agora imaginem que, mesmo neste nosso tempo de hiperconectividade, há gente que ainda vive assim.
Tomemos as planícies do Azerbaijão, coração da Transcaucásia, o que por si só já é uma região longínqua para um observador brasileiro. Agora peguemos um dos sinuosíssimos caminhos que sobem montanha acima, de preferência de carona num Lada Niva. Durante séculos, a cada invasão de armênios, russos, europeus ou mercenários diversos, o povo de lá só tinha uma saída real: fujam para as montanhas! No alto, um entre um punhado de vilarejos, está Xinaliq, ou Khinalug. A 2400 m de altitude, Xinaliq, de tão inóspita, foi poupada de todas os grandes massacres históricos - passou despercebida aos invasores, ou talvez estes tenham cogitado que não valia a pena subir a montanha até o pico pedregoso e nevado.
Hoje Xinaliq é uma cidade de menos de 2000 habitantes, na teoria já não tão isolada: uma estrada foi construída há poucos anos, ligando-a à capital da província, Quba. Mesmo assim, a tal estrada pode ser muitas coisas, mas não é fácil de se percorrer - e definitivamente não por forasteiros. Quem se arrisca, porém, é brindado com o privilégio de uma paisagem deslumbrante, de tirar o fôlego.
Lá no alto, além da vista do vale e das montanhas, outra surpresa: o contato com uma cultura única no mundo. As casas de pedra, a criação de ovelhas, o trabalho da lã. Um povo com uma língua própria, que só é falada naquele canto da planeta e que é totalmente diferente do que se fala no resto do país. Aliás, a comunicação é um desafio vencido com boa vontade: o inglês é apenas a quarta língua, atrás do xinaliq, do azéri e do russo. Apesar disso, praticamente todas as crianças com quem cruzávamos nos presenteavam com um sorriso e com umas palavras básicas (Hello! How are you?), orgulhosas do inglês que aprendem na escola.
Como não poderia deixar de ser, a pousada em que ficamos é rústica, para dizer o mínimo. Pertence a dois jovens irmãos, que recebem os poucos hóspedes com chá e uma aula básica da língua local. Depois de instalados, saímos a conhecer o pequeno vilarejo, o que não é difícil de fazer a pé, apesar das ruas íngremes. Há dois pequenos museus, mas o mais interessante mesmo é observar as casas, a paisagem de montanhas ao redor e as pessoas indo e vindo. Eventualmente, tem-se a impressão de estar num mundo totalmente diverso. Por exemplo: espalhadas pela cidade há várias pilhas de... estrume. Posto para secar ao sol, ele forma blocos compactos que depois são utilizados como combustível. No fundo, é muito melhor do que usar lenha!
Falando nisso, o clima lá varia bastante e pode chegar a fazer bastante frio! Enquanto que em Baku estávamos de mangas curtas, o casaco mais pesado não era exagero em Xinaliq. Pior que isso, porém, é que por alguma insondável conjunção zoroastrista, nosso quarto na pousada parecia ter o metro quadrado mais frio da cidade. Quiçá do país! Não consigo explicar exatamente o motivo - o sol que não batia, as paredes pouco isolantes... O quarto era tão frio que, à noite, dava medo pensar em ter de entrar nele. Adiar um pouco o sono não foi de todo ruim, pois nossos anfitriões ofereceram um jantar de superar as expectativas. Quando enfim nos recolhemos, foi para entrar de calça e tudo debaixo de todas as cobertas possíveis e evitar ao máximo qualquer movimento, a única forma de combater o frio. Ah, e claro, o fato de o banheiro ficar fora da casa, num anexo, também implicava que tomar banho àquela altura estava descartado e qualquer incursão noturna só seria feita se fosse absolutamente indispensável.
No final das contas, passar uma noite sem banho não é tão terrível e vale a pena se for o preço para conhecer um lugar tão bonito e autêntico; mas é difícil não pensar em como é a vida deles, acostumados a este tipo de coisa dia após dia.
Voltamos a Quba no mesmo Lada que havia nos levado, dirigido por um dos dois irmãos. No caminho, o telefone tocou: era um outro estrangeiro interessado em passar a noite em Xinaliq. Sem largar a direção, o rapaz me passou o telefone e, no inglês quase monossilábico em que nos comunicávamos, pediu que eu ajudasse a negociar o preço e as condições da estadia. Assim, com uma aula prática de como pechinchar à moda asiática (e, coisa rara, estando do lado de quem vende e não de quem compra), desci de Xinaliq. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração.