segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Girassol, o camarada Stalin e um time de refugiados: futebol no Azerbaijão

Estádio Tofiq Bahramov
O futebol rende histórias curiosas no Azerbaijão. E não só por estar ligado às mudanças políticas ocorridas no país ao longo das últimas décadas - afinal, durante um bom tempo os jogadores e equipes azéris formavam parte da estrutura soviética e só depois da independência é que passaram a contar com uma federação independente.
Qarabağ F.K.
Um dos times mais tradicionais e de maior sucesso, desde a época soviética, é o Neftçi, que, como o nome sugere, nasceu como um clube dos trabalhadores da indústria do petróleo. Porém, mais recentemente, outra equipe ganhou destaque: o Qarabağ. Este foi batizado em homenagem a sua terra natal, a região do Carabaque (ou Karabakh), uma das mais emblemáticas do Azerbaijão. O Carabaque é região de histórias mitológicas, considerado berço da tradição azéri e símbolo da bravura de seus guerreiros. Famosos em todo o Cáucaso são os cavalos do Carabaque, tidos como os maiores, mais velozes e mais belos animais do mundo (ao povo do Carabaque também se atribui uma falta de modéstia épica). Acontece, entretanto, que justamente esta região foi o alvo da recente guerra com a Armênia, que hoje controla o Carabaque. Isso feriu profundamente o orgulho dos azéris mais nacionalistas e, como costuma acontecer de vez em quando, o futebol despontou como uma válvula de escape - no final das contas, antes lutar no campo de jogo que no campo de batalha.
Assim, o Qarabağ é hoje um time de refugiados que joga em Baku, a centenas de quilômetros de sua terra natal, o que dá a ele um status de queridinho do país.
Estádio Tofiq Bahramov, com cobertura em formato de С de Cтaлин (Stalin)
No Azerbaijão, fomos assistir à semifinal da Copa Azéri entre Qarabağ e Qəbələ. O Qarabağ tem mandado seus jogos no estádio mais tradicional da capital e que tem, ele também, uma história curiosa. Foi construído em 1951 em formato de С de Cтaлин (Stalin) - reparem na cobertura! Depois o estádio mudou de nome, passando de Josef Stalin para Vladimir Lenin e, finalmente, para Tofiq Bahramov, o personagem mais famoso da história do futebol azéri. Bahramov se destacou não como jogador, mas como juiz! Apitou, entre outras partidas, a polêmica final da Copa de 1966.
Qarabağ vs. Qəbələ
Ao chegar ao estádio, procuramos em vão a bilheteria. Até que perguntei a um dos policiais que faziam a segurança e ele nos disse para entrar, que o ingresso era livre! O clima era de festa. O público é majoritariamente masculino, como era de se esperar, mas há algumas mulheres. O que não se vê, por motivos óbvios, é gente bêbada. Por outro lado, estão todos ocupados com as iguarias vendidas nas arquibancadas: chá quente e sementes de girassol! Em pouco tempo, as arquibancadas ficam repletas de cascas de sementes de girassol que restam dos snacks. No intervalo, pensando em comprar algo diferente para beliscar, sigo o fluxo de pessoas. Então descubro que estão todos literalmente saindo do estádio e indo até uma ou outra lancheria na esquina, no lado de fora, para esticar as pernas e comprar algo para comer e beber.
Voltando ao estádio, aquele mesmo policial me viu e perguntou de onde éramos; quando respondi, ele me abraçou forte e começou a dançar, exultante, repetindo: Ronaldinho! Pelé! Ronaldinho! Bons momentos em que somos lembrados pelo futebol e não pela política, mesmo num país em que esta última tem tanta força.

domingo, 17 de novembro de 2019

Baku

Ao desembarcar em Baku, eu não esperava ser recebido pelo destacamento de fachadas novas e imponentes que surgiam em ambos os lados das avenidas que levam ao centro da cidade. Chegando lá, a uma mera quadra de distância da avenida onde dali a poucos dias estariam rugindo os carros da Fórmula 1, nosso anfitrião nos guiou pelos meandros de um antigo prédio da era soviética. Subimos num elevador de portas pantográficas e passamos por um corredor escuro até chegar a um apartamento imenso, suficiente para uma família de tamanho razoável. Numa parede, uma tabela periódica dos tempos de Mendeleiev; noutra, uma estante com livros em persa.
Aos poucos, fomos desvendando a estrutura urbanística da cidade. Seu coração é o centro antigo, um conjunto de prédios seculares guardados por belas muralhas de pedra. Historicamente, é ali que vivia o povo azéri "de raiz", ou seja, as famílias mais tradicionais, muitas delas ligadas à nobreza e à religião islâmica. Em volta da cidade murada e ao longo do litoral, com o tempo, a cidade foi se expandindo em quarteirões mais modernos, ocupados pelos "novos ricos" que se destacavam em atividades ligadas direta ou indiretamente à exploração de petróleo. Eram industriais e banqueiros, muitos deles da terra, mas também estrangeiros - até a família de Alfred Nobel andou por lá.
A Revolução Russa trouxe uma nova onda de mudanças. Surgiram prédios imponentes, à moda soviética, e houve o crescimento do setor de serviços estatais tipicamente ligados ao governo socialista. Após a desintegração da União Soviética, quem tomou as rédeas foi um presidente autoritário, mas progressista, que ao menos conseguiu estabilizar o país e trazer certa abertura econômica. Hoje, vê-se que Baku, mesmo mantendo uma população azéri bastante homogênea, é uma cidade cosmopolita e aberta ao turismo.
Um dos principais símbolos da cidade - e do próprio Azerbaijão - é a Torre da Donzela, um monumento do século XII. Tem um formato distintivo ao qual demora-se um pouco para se acostumar e é cercada por lendas e mistérios. Tanto que até hoje não se tem certeza sobre qual era a sua função no passado: as hipóteses variam de observatório astronômica a torre de observação, mas nenhuma delas é totalmente convincente.
Outro orgulho do país é a cultura dos tapetes. São peças lindas, elaboradas com desenhos intrincados feitos por artistas talentosos. Uma impressionante coleção destas obras está no Museu do Tapete, prédio que chama a atenção por ter sido projetado em formato de... tapete.
Os subúrbios são notavelmente mais pobres ou, pelo menos, não se vê neles as grandes construções ocupadas, nos bairros centrais, por centros culturais, museus, estádios e ginásios esportivos. Mas têm, por outro lado, templos e sítios históricos. É uma região onde são comuns as exudações de gás natural da terra, que criam fenômenos como buracos, encostas ou montanhas eternamente em fogo. Mesmo onde isso não ocorre, é comum divisar na paisagem dezenas de cavalos-de-pau extraindo petróleo, sinal inequívoco de que o subsolo é mesmo rico em hidrocarbonetos.
Daí que, para um país que foi o primeiro a tirar óleo de pedra de forma comercial, sediar um grande prêmio de Fórmula 1, a categoria máxima do automobilismo, é uma consequência que faz jus à história. A corrida de Baku, por ser num circuito de rua, tem o mesmo problema de Mônaco: é virtualmente impossível ter-se uma visão geral da corrida, que passa ao redor dos prédios do centro da cidade. Por outro lado, é muito conveniente justamente por essa proximidade. Sem contar que a cidade em si forma um cenário invejável para a corrida. Não é todo dia que se pode ver alguns dos carros mais avançados do planeta tirando fininhos, em velocidade absurda, de antigas muralhas medievais.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Azerbaijão, esse desconhecido

Há pelo menos um punhado de cidades que alardeiam para si o título de "ponte entre o Ocidente e o Oriente", graças talvez à natureza longa e subjetiva da fronteira geográfica entre a Europa e a Ásia. A mais famosa é, sem dúvida, Istambul, ajudada pelo fato de estar localizada dos dois lados do Bósforo. Porém, é claro que influências culturais são difusas. Há fortes traços orientais (e islâmicos) em cidades firmemente fincadas na Europa, como Sarajevo e Pristina.  E, a leste da Turquia, ares europeus se misturam à atmosfera oriental das cidades banhadas pelo mar Cáspio. Estou falando da ex-república soviética do Azerbaijão.
No começo do romance "Ali e Nino", um dos maiores clássicos da literatura azéri, Kurban Said coloca um professor de escola falando exatamente disso: "Alguns estudiosos olham para a área ao sul das montanhas do Cáucaso como pertencendo à Ásia, enquanto outros, tendo em vista a evolução cultural da Transcaucásia, acreditam que este país deva ser considerado parte da Europa. Assim, pode-se dizer, minhas crianças, que é um pouco responsabilidade sua que nossa cidade pertença à progressiva Europa ou à reacionária Ásia".
O Azerbaijão, e em particular sua capital Baku, é daqueles lugares que nos jogam na cara nossa ignorância do mundo. Tem uma história riquíssima com âncoras em ambos os continentes. Ao longo dos séculos, foi parte da rota da seda; foi local de peregrinação do zoroastrismo (atraído pelo fogo que "emana da terra" na forma de afloramentos de gás natural); foi um dos berços da indústria do petróleo, ainda hoje uma de suas maiores riquezas; como tal, foi a fonte de combustível por excelência da poderosa União Soviética. É um país laico de maioria muçulmana. Tem, assim como seus vizinhos, uma relação controversa com a democracia, tendo convivido com ditaduras (algumas extremas e outras brandas), cultos à personalidade (idem) e guerras recentes.
Visitar um país desses é um privilégio que não se resume ao aprendizado da história. É uma imersão cultural. O Azerbaijão tem traços que lembram a Turquia, como na língua e na comida, mas com suas particularidades. Tendo sido uma das repúblicas nas franjas da União Soviética, a influência russa se encontra aqui e ali, no urbanismo com grandes espaços abertos e principalmente nas prateleiras dos supermercados. Mas o dia-a-dia é distintamente caucasiano. A manhã começa com um típico pão tandir, simples e incrivelmente viciante, e uma taça de café tradicional preparado no cezve.  O dia envolve dividir as ruas com antigos Ladas ou as calçadas com vendedores de suco de romã. Mesquitas? Estão à disposição por toda parte, porém são notavelmente mais discretas que em outros países tanto da Ásia quanto da Europa.
No final, aliás, a maior divisão do Azerbaijão não parece ser entre Oriente e Ocidente; ambas as culturas, lá, estão bastante misturadas. Mais visível é uma diferença entre a capital e o interior ou, mesmo, entre a zona central de Baku e os subúrbios. De um lado, tem-se uma cidade nova, pujante e colorida, esbanjando toda a beleza proporcionada pela (renda proveniente da) exploração do petróleo. Do outro, um país que não é necessariamente pobre, mas que é montanhoso, árido e com firmes raízes no passado. Há talvez um certo orgulho nesse jeito de ser, de se cultivar costumes tradicionais num país que atravessou guerras, fome, turbulência e o vigor econômico do petróleo.
Voltando a "Ali e Nino": ao final daquela exposição do professor, claramente tendencioso a favor dos aspectos europeus (e portanto "civilizados") de Baku, é um dos alunos que levanta a mão para responder ao mestre: "Por favor, senhor, nós preferimos ficar na Ásia."