Praticamente não há trens na costa croata. Em compensação, os ônibus são eficientes e confiáveis.
Tomei um deles, portanto, para ir de uma cidade a outra. Embarquei, procurei meu assento. Ao meu lado, havia um senhor de idade, relativamente magro, de roupas escuras e barba espessa. Após uns instantes, ele puxou assunto (uma fala arrastada, quase gaguejando, e um sotaque incomum) dizendo que estava indo até Trieste (parada final daquele ônibus). Perguntei ingenuamente se ele era italiano ou croata e ele me respondeu o que eu já devia ter desconfiado: era um israelense de Jerusalém, mas nascido na Rússia. Chamava-se Hanoch.
Foi tagarelando a viagem inteira. Sobre todos os assuntos possíveis. Já havia passado por uns tantos países da Europa e agora ia para outro. Aproveitava umas longas férias. E tinha como principal passatempo o estudo de línguas.
Logo percebi que ele sabia falar pelo menos o básico de inúmeras línguas. Bem pouco de português, que quando tentava falar ele confundia com espanhol (uma confusão bastante comum), mas em compensação parecia saber tudo sobre detalhes de pronúncia, sotaques e variações linguísticas do nosso idioma. Deu-me uma verdadeira aula sobre as possíveis pronúncias de "leite quente" em diferentes partes do Brasil. Mas seu interesse maior era por línguas e dialetos realmente pequenos, daqueles conhecidos apenas por um punhado de gente. Falou sobre o basco e o galego, mas estas acho que ainda eram grandes demais para ele. Falou sobre o aragonês. Falou sobre línguas usadas apenas em pequenas aldeias e do quanto gostava de percorrer a Europa visitando esses lugares... Falou, falou...
Lá pelas tantas, pedi licença e adormeci. Quando acordei, ele estava numa acalorada conversa com um australiano do outro banco e mais o cobrador do ônibus, croata... Falando em iídiche!
Até então eu havia evitado puxar algum assunto que tocasse na questão religiosa, ainda que por alto. Quando ele falou de comida, por exemplo, controlei-me para não dizer o quanto eu adoro o presunto que se encontra em toda essa região do Mediterrâneo. Mas, instigado pelo australiano, Hanoch confessou que, nesta viagem, havia comido carne de porco... Contou, também, que o único realmente religioso da família é seu irmão, que tem 11 filhos! (A religiosidade está em levar a sério o preceito de "crescei e multiplicai-vos".)
Cheguei ao meu destino, despedi-me e desembarquei. Enquanto Hanoch seguia sua peregrinação particular, eu penetrava mais fundo no coração da Croácia.
Croácia que tem uma cultura rica - na arquitetura, língua, danças, música, comida - e que, também, tem algo que nós brasileiros não temos: uma história permeada por inúmeras guerras, algumas delas bem recentes.
É preciso dizer algumas coisas para que não passem por naturais ou caiam no esquecimento. Praticamente não vi gente pobre nas ruas por onde andei, mas vi alguns homens de meia idade usando muletas ou algo do tipo e pedindo esmola. Inválidos da última guerra, pensei logo. Vi fotos e mapas de bombas lançadas há 20 anos sobre Dubrovnik - patrimônio histórico da humanidade. Visitei um memorial com fotos de gente que perdeu a vida nesta guerra - garotos nos seus 18 anos, que teriam família, namorada, sonhos. Vi um dos abrigos anti-bombardeio usados no passado e que hoje é um local fértil para a coleta de trufas - provavelmente úmido e nada salubre para humanos, portanto. Vi prédios abandonados, hotéis que abrigaram refugiados e depois nunca mais voltaram a abrir as portas. Encontrei um amigo croata e conversei com a avó dele, hoje uma senhora de 79 anos, que devido às bombas lançadas sobre sua cidade perdeu a audição e parou de estudar quando era uma menina da quinta série. O mesmo amigo me contou outras histórias de guerra. Sonhei com minas terrestres - talvez a face mais estúpida de todas as histórias estúpidas que a guerra traz.
E o porquê de tudo isso? Bem, os povos desta região são histórica e culturalmente bem parecidos, falam praticamente a mesma língua e viveram bastante tempo sobre a mesma bandeira... Até alguém concluir que, sendo uns católicos, outros ortodoxos (mas também cristãos!) e outros muçulmanos, não podiam viver sobre o mesmo teto - ou que isso pelo menos poderia servir facilmente para alimentar um ódio mortal. A quem interessa esse ódio? Prefiro não responder. Ora, se eu posso viajar lado a lado com um judeu, se este judeu pode se dar ao luxo de comer carne de porco uma vez na vida sem se achar condenado ao inferno, e tantas outras coisas... Não temos todos coração, não sentimos dor e sangramos quando feridos, não sorrimos e choramos, não crescemos, envelhecemos e nos reproduzimos da mesma maneira? Será tão importante assim a maneira como reverenciamos o nosso deus (que, afinal, é o mesmo deus para todos)?
Meu amigo tem confiança no futuro, acredita que as coisas serão melhores. Passaram-se duas décadas desde a última guerra. Éramos crianças! Eu sou otimista e gosto de pensar que ele pode estar certo. Gente como ele e terra como essa não merecem novas cicatrizes. Gente como nós, merecemos paz.
Tomei um deles, portanto, para ir de uma cidade a outra. Embarquei, procurei meu assento. Ao meu lado, havia um senhor de idade, relativamente magro, de roupas escuras e barba espessa. Após uns instantes, ele puxou assunto (uma fala arrastada, quase gaguejando, e um sotaque incomum) dizendo que estava indo até Trieste (parada final daquele ônibus). Perguntei ingenuamente se ele era italiano ou croata e ele me respondeu o que eu já devia ter desconfiado: era um israelense de Jerusalém, mas nascido na Rússia. Chamava-se Hanoch.
Foi tagarelando a viagem inteira. Sobre todos os assuntos possíveis. Já havia passado por uns tantos países da Europa e agora ia para outro. Aproveitava umas longas férias. E tinha como principal passatempo o estudo de línguas.
Logo percebi que ele sabia falar pelo menos o básico de inúmeras línguas. Bem pouco de português, que quando tentava falar ele confundia com espanhol (uma confusão bastante comum), mas em compensação parecia saber tudo sobre detalhes de pronúncia, sotaques e variações linguísticas do nosso idioma. Deu-me uma verdadeira aula sobre as possíveis pronúncias de "leite quente" em diferentes partes do Brasil. Mas seu interesse maior era por línguas e dialetos realmente pequenos, daqueles conhecidos apenas por um punhado de gente. Falou sobre o basco e o galego, mas estas acho que ainda eram grandes demais para ele. Falou sobre o aragonês. Falou sobre línguas usadas apenas em pequenas aldeias e do quanto gostava de percorrer a Europa visitando esses lugares... Falou, falou...
Lá pelas tantas, pedi licença e adormeci. Quando acordei, ele estava numa acalorada conversa com um australiano do outro banco e mais o cobrador do ônibus, croata... Falando em iídiche!
Até então eu havia evitado puxar algum assunto que tocasse na questão religiosa, ainda que por alto. Quando ele falou de comida, por exemplo, controlei-me para não dizer o quanto eu adoro o presunto que se encontra em toda essa região do Mediterrâneo. Mas, instigado pelo australiano, Hanoch confessou que, nesta viagem, havia comido carne de porco... Contou, também, que o único realmente religioso da família é seu irmão, que tem 11 filhos! (A religiosidade está em levar a sério o preceito de "crescei e multiplicai-vos".)
Cheguei ao meu destino, despedi-me e desembarquei. Enquanto Hanoch seguia sua peregrinação particular, eu penetrava mais fundo no coração da Croácia.
Croácia que tem uma cultura rica - na arquitetura, língua, danças, música, comida - e que, também, tem algo que nós brasileiros não temos: uma história permeada por inúmeras guerras, algumas delas bem recentes.
É preciso dizer algumas coisas para que não passem por naturais ou caiam no esquecimento. Praticamente não vi gente pobre nas ruas por onde andei, mas vi alguns homens de meia idade usando muletas ou algo do tipo e pedindo esmola. Inválidos da última guerra, pensei logo. Vi fotos e mapas de bombas lançadas há 20 anos sobre Dubrovnik - patrimônio histórico da humanidade. Visitei um memorial com fotos de gente que perdeu a vida nesta guerra - garotos nos seus 18 anos, que teriam família, namorada, sonhos. Vi um dos abrigos anti-bombardeio usados no passado e que hoje é um local fértil para a coleta de trufas - provavelmente úmido e nada salubre para humanos, portanto. Vi prédios abandonados, hotéis que abrigaram refugiados e depois nunca mais voltaram a abrir as portas. Encontrei um amigo croata e conversei com a avó dele, hoje uma senhora de 79 anos, que devido às bombas lançadas sobre sua cidade perdeu a audição e parou de estudar quando era uma menina da quinta série. O mesmo amigo me contou outras histórias de guerra. Sonhei com minas terrestres - talvez a face mais estúpida de todas as histórias estúpidas que a guerra traz.
E o porquê de tudo isso? Bem, os povos desta região são histórica e culturalmente bem parecidos, falam praticamente a mesma língua e viveram bastante tempo sobre a mesma bandeira... Até alguém concluir que, sendo uns católicos, outros ortodoxos (mas também cristãos!) e outros muçulmanos, não podiam viver sobre o mesmo teto - ou que isso pelo menos poderia servir facilmente para alimentar um ódio mortal. A quem interessa esse ódio? Prefiro não responder. Ora, se eu posso viajar lado a lado com um judeu, se este judeu pode se dar ao luxo de comer carne de porco uma vez na vida sem se achar condenado ao inferno, e tantas outras coisas... Não temos todos coração, não sentimos dor e sangramos quando feridos, não sorrimos e choramos, não crescemos, envelhecemos e nos reproduzimos da mesma maneira? Será tão importante assim a maneira como reverenciamos o nosso deus (que, afinal, é o mesmo deus para todos)?
Meu amigo tem confiança no futuro, acredita que as coisas serão melhores. Passaram-se duas décadas desde a última guerra. Éramos crianças! Eu sou otimista e gosto de pensar que ele pode estar certo. Gente como ele e terra como essa não merecem novas cicatrizes. Gente como nós, merecemos paz.