domingo, 23 de abril de 2017

Montenegro

Montenegro, como os outros países da região, tem uma história bastante conturbada. Já foi ou fez parte de diferentes impérios, reinos, federações. Hoje é uma república relativamente pacífica (paz é um conceito relativo nos Bálcãs).
Em termos de geografia, Montenegro é um país pequeno dividido em duas regiões: o interior é bastante montanhoso e guarda afinidades históricas com a Sérvia; o litoral é onde estão os atrativos turísticos mais famosos do país e, assim como a Croácia, sofreu influência da antiga República de Veneza.
Ficamos hospedados em Podgorica, a capital, uma cidade não muito grande com uma mistura de estilos arquitetônicos onde se destacam as ruelas do antigo bairro otomano e os blocos e avenidas da época iugoslava. Em Podgorica, estávamos a cerca de 50 quilômetros do litoral e nos planejamos para alugar um carro, com o que poderíamos explorar o país no pouco tempo que teríamos por lá.
Saindo da capital em direção ao sudoeste, a estrada passa pelo belo lago Skadar e atravessa um túnel até chegar nas cidades do litoral. É um trecho rápido e agradável, que permite explorar o sul de Montenegro. Lá descobrimos, por exemplo, que entre os séculos XVI e XVIII a cidade de Ulcinj foi uma base de pirataria famosa (e temida). Dizem que foi em Ulcinj que Miguel de Cervantes foi prisioneiro e escravo após a batalha de Lepanto; dizem ainda que o próprio nome de Dulcinea seria uma referência a Dulcinium, o antigo nome latino de Ulcinj. A história é interessante e quase desconhecida fora de Montenegro. Já a cidade em si tem uma atrativa parte antiga, toda murada, que se eleva num promontório com vista para as belas águas do mar Adriático.
Um pouco mais ao norte está Budva, outra cidade litorânea cercada por antigas muralhas que vale a visita. No caminho entre as duas está Sveti Stefan (Santo Estevão), figurinha fácil nos cartões-postais de Montenegro. É uma pequena ilha que foi ligada ao continente por um istmo e que chama a atenção de longe. Eu já vira imagens de lá e tinha muita curiosidade de conhecer o lugar, embora não soubesse nada da sua história. Daí que fomos até lá. Na entrada do istmo havia uma guarita. Eu fui caminhando em direção à ilha enquanto a Renata, inibida pela guarita ou talvez pressentindo algo, parou. Pois foi só eu dar uns passos na elegante passarela que leva à ilha que fui chamado - e impedido de continuar - pelo segurança. A ilha inteira é propriedade privada - é um hotel ou, melhor dizendo, um exclusivo resort de luxo! Tive de recuar com o rabo entre as pernas. Mais tarde, pesquisando, descobri que o lugar era originalmente uma vila fortificada e que, durante o breve Reino da Iugoslávia, foi usado como residência de verão da família real. Com a chegada da república, virou um complexo de luxo - e, mesmo com algumas mudanças de dono, é o que continua sendo até hoje.
Seguindo mais ao norte (e assim terminando nosso recorrido por praticamente todo o litoral montenegrino) está a baía de Kotor, cujo ponto principal é a cidade de mesmo nome. Kotor é mais uma antiga joia veneziana no Adriático e, na minha opinião, a cidade mais bonita que visitamos em Montenegro. As ruas e praças são lindas, assim como o entorno. Kotor tem até um museu dedicado aos gatos! Pena termos ficado pouco tempo lá.
Bem, fizemos esse passeio pelo litoral ao longo de dois dias. Ao final do primeiro dia, seguimos o GPS para voltar a Podgorica. No caminho, ainda nos demos ao luxo de oferecer carona. A estrada subia por um caminho bem mais íngreme e estreito que o da ida - não se trata apenas do nome, Montenegro é um país realmente montanhoso. Mas o pior não era isso: aqui e ali havia obras na estrada que deixavam apenas uma faixa disponível ao tráfego, o que gerava pequenas paradas até que pudéssemos seguir em frente. Em certo ponto, já com mais de metade do caminho percorrido, chegamos a uma estrada grande e razoavelmente plana. Respirei aliviado, achando que o pior já havia passado. Porém: oh, ilusão! Logo adiante nesta mesma estrada havia um bloqueio (certamente mais alguma obra) e uma fila de dezenas de carros esperando, motores desligados, motoristas caminhando e fumando no acostamento... Não tivemos escolha senão esperar uma boa meia hora até que o trânsito começasse a andar - e descobrir que sairíamos da estrada para enfrentar uma íngreme descida de terra até praticamente os subúrbios da capital.
Kotor bay
No dia seguinte, já sabíamos que, não importa o que dissesse o GPS, aquele era um caminho a ser evitado. Assim, para ir até Kotor, no litoral norte, demos toda uma volta pela parte razoavelmente plana do litoral sul. Na volta, não resisti e resolvi pegar outro caminho (mais uma vez recomendado pelo GPS) que passava por Cetinje, a antiga capital. Bem, o asfalto até que era bem conservado, mas a subida era ainda mais acentuada que a do dia anterior e pontuada por dezenas de curvas acentuadas - cotovelos de quase 180 graus. A belíssima vista da baía de Kotor nos consolava, até que, em certo ponto, topamos com mais um bloqueio. Não havia muitos outros carros mas, como o trânsito não andava, resolvi descer e perguntar. A resposta foi breve: "Bum, bum! [fazendo sinal de quem explode algo] Do četiri." Minha interpretação: a obra envolvia dinamitar alguma coisa mais à frente e deveríamos esperar mais quatro (četiri) minutos. Mas se passaram quatro, cinco, dez minutos, e nada. Foi só então que compreendi o que ele literalmente dissera: até as quatro [horas]. Olhei para o relógio e vi que não faltava muito (pudera, já estávamos esperando há algum tempo). Quando andamos, foi para mergulhar num dejà vu: perto de Cetinje, demos novamente carona (desta vez, para uma senhora montenegrina); mais adiante, uma nova bifurcação nos levou à mesma autoestrada do dia anterior. Ou seja, a mesma fila de carros, a mesma espera, o mesmo "atalho" pelo barranco de terra. Foi já bem cansados que chegamos em casa. O país pode ser pequeno, mas tem caminhos que o fazem parecer tão grande!

domingo, 16 de abril de 2017

A histórica Prizren

Eduardo TrindadeDe Pristina, seguimos caminho até Prizren - esta acabou sendo, na minha opinião, a mais bonita das cidades que visitamos no Kosovo. É também, sem dúvida, a cidade em que o passado otomano da região é mais visível.
A espinha dorsal de Prizren é o rio Bistrica, cortado por belas pontes e ladeado por cafés, restaurantes e calçadas de pedestres. Mesquitas (e também algumas igrejas cristãs) pontuam a cidade e suas ruas. Dominando a paisagem, no alto, está a fortaleza de Prizren.
Quando falo do passado otomano, no entanto, não quero dizer hegemonia cultural. Pelo contrário: trata-se dos Bálcãs, do Kosovo... Uma região de muitas misturas. Claro que a influência albanesa, turca e muçulmana está por toda parte - a começar pelas mesquitas cujos minaretes se avistam de longe. Mas, por exemplo, basta sentar num dos cafés na margem esquerda do rio para encontrar doces com uma certa inspiração vienense (a Áustria também já dominou essas terras). Por outro lado, o café em si pode muito bem ser tirado à moda balcânica (ou turca), com um pó grosso decantado num bule de cobre, e não coado. Para matar a fome, quem quiser vai encontrar a universal pizza, mas também pode provar o tradicionalíssimo burek com iogurte ou ayran. Um legítimo burektore é um estabelecimento simples, sem cardápio, que só vende isso mesmo: burek que vem a ser uma espécie de pastel de massa folhada, acompanhado de ayran (iogurte diluído e salgado) ou de iogurte natural puro. Muito barato e saboroso, exceto pelo fato de que não consigo me acostumar à ideia de uma bebida salgada, como é o ayran.
Do outro lado do rio, ruas antigas, estreitas e sinuosas convergem para a čaršija - centro antigo, bazar e rua de comércio (onde, aliás, comprei um belo canivete artesanal do Kosovo).
Afastando-se do centro, há construções mais modernas, como a universidade, um parque para exercícios e um surpreendente supermercado com arquitetura inspirada na Casa Branca (os kosovares realmente amam os Estados Unidos).
No sopé do monte e seus arredores, construções sérvias: capelas e igrejas ortodoxas. Subindo (uma caminhada íngreme, porém curta), chega-se às ruínas do velho forte, de onde se tem uma vista maravilhosa da cidade e de todo o vale. Indo além, pode-se descer pelo outro lado, numa trilha em meio à natureza que aparentemente é bastante utilizada pelas pessoas da cidade em seus exercícios matinais. Como tudo o mais em Prizren, a trilha encontra o rio e segue ao lado dele. A cidade tem alguns museus - notadamente o Museu da Liga Albanesa de Prizren e o Museu Arqueológico - mas, como em outros lugares do Kosovo, o acervo não é grande. Foi só depois, em livros e na Internet, que pude descobrir o que era a Liga Albanesa de Prizren (um movimento que pretendeu lutar pelos direitos e eventual independência da maioria albanesa no século XIX). No Museu Arqueológico, instalado num antigo banho turco, fomos recebidos com simpatia por um funcionário que nos guiou pelas salas quase vazias. No final das contas, a história estava do lado de fora, no rio que corre, no ar cortado pela voz que emana das mesquitas e nas ruas repisadas por pés anônimos.

domingo, 9 de abril de 2017

Da velha Iugoslávia ao jovem Kosovo: Pristina

Sendo a capital e maior cidade do Kosovo, Pristina é também a mais famosa. Assim, havia também uma expectativa para finalmente conhecê-la. Por coincidência, chegamos a Pristina no dia 17 de fevereiro, aniversário da declaração de independência do país - algo bastante significativo para um estado que ainda está tentando se firmar política e economicamente. Encontramos o centro lotado de pessoas marchando, música, crianças com cartazes e as ruas decoradas com bandeiras. Mas foi no dia seguinte, com a cidade mais calma, que pudemos conhecê-la melhor.
Com 200 mil habitantes, a cidade tem um bom tamanho - uma longa e bonita rua de pedestres (a Bulevardi Nënë Tereza), universidade, estádio, shopping center, teatro, restaurantes, monumentos. É, ao mesmo tempo, precária: o estádio (interditado, em obras) oferece uma triste visão; há muito lixo nas ruas; a estação de trem está abandonada; os museus (apesar da boa vontade de quem trabalha lá) contam com exposições um tanto decepcionantes. Sem contar que não há sinal da presença sérvia por lá (a maior igreja ortodoxa do centro está abandonada e em ruínas). Além disso, parece que os serviços públicos são notoriamente pouco confiáveis: dizem que há ou havia falta de energia elétrica (se é verdade, não presenciamos) e de água (isso sim experimentamos onde ficamos hospedados).
Kosovo National LibraryAliás, o apartamento em que nos hospedamos acabou sendo parte importante da nossa experiência em Pristina (e, por que não dizer, no próprio Kosovo). Era um apartamento num velho prédio residencial da época iugoslava a poucos passos do coração da cidade. Exceto pela localização, não podíamos dizer que era luxuoso. Apesar disso, cada detalhe (da programação da televisão aos cortes de água que aconteciam toda madrugada e que, conforme apurei, são uma precária maneira de minimizar o desperdício que ocorre devido a vazamentos nas linhas da cidade) nos deixava com a sensação de ainda estar vivendo em plena época da Guerra Fria - ou da antiga Iugoslávia. Não podíamos ter experiência mais autêntica que essa, e não nos arrependemos por um instante. Sem contar que da nossa própria sacada tínhamos a vista da Biblioteca Nacional - provavelmente o prédio mais chamativo do país. A biblioteca já foi acusada de ser um dos prédios mais feios do mundo mas, a despeito disso, eu realmente a considero de uma beleza peculiar, ainda mais depois de ponderar que suas cúpulas, além de funcionais (permitem a entrada de luz natural) remetem aos típicos chapéus albaneses da região e que o interior é mais bonito ainda que o exterior.
Isso tudo posto, claro está que há também vários pontos da cidade que realmente valem a visita. Há principalmente duas outras instituições chamam a atenção no Kosovo. De um lado, as mesquitas, que, como em outras regiões de população muçulmana, estão por toda parte, com seus minaretes que chamam os fiéis para a oração. De outro lado, o chamado mais mundano das ëmbëltore - as confeitarias locais. Há várias delas, todas oferecendo doces irresistíveis a preços irrisórios. Para acompanhar, outra instituição local: o café, de preferência preparado à moda balcânica (nítida influência turca). Não nos faltaram doces na nossa experiência da capital kosovar.

domingo, 2 de abril de 2017

Primeiros passos no Kosovo: Peja

Entramos no Kosovo vindos de Montenegro, num ônibus que cruza a fronteira montanhosa dos dois países. A expectativa era grande até mesmo para as formalidades de entrada: como o Brasil não reconhece a independência do Kosovo, a situação diplomática de visitantes brasileiros costumava ser nebulosa (aliás, esse foi um fator que nos fez adiar a decisão de visitar a região). Pois bem, apesar da situação ainda confusa, o Kosovo aparentemente tem hoje a política de receber todos (ou pelo menos os não-sérvios) de braços abertos. Assim, empreendemos a travessia sem maiores contratempos que o estado lamentável de sujeira do ônibus em que viajamos.
Curiosamente, havíamos comprado passagem para Peć e chegamos em Peja. Não é que o motorista tenha se equivocado ou mudado de ideia quanto ao destino; Peć é o nome sérvio da cidade, como ela é conhecida em Montenegro e nas demais regiões eslavas; Peja é o nome albanês. Entrando no Kosovo, logo duas coisas ficam claras: que os kosovares são basicamente de etnia albanesa, e que a língua é o principal elemento distintivo desta etnia. (A propósito, o albanês é bem diferente de qualquer outra língua que eu conhecia, mas é interessante como vai-se familiarizando com ela aos poucos).
Peja não é uma cidade opulenta; pelo contrário, já saindo da rodoviária se vê bastante lixo, cães de rua, camelôs e mendigos. Por outro lado, é uma cidade de tamanho médio em que a vida transcorre normalmente. A cidade fez parte do Império Otomano e a influência turca é bem visível nas mesquitas (a absoluta maioria da população é muçulmana), na arquitetura e na força do comércio. Além do tradicional bazar no centro da cidade, há uma profusão de lojas e todas expõem seus produtos na calçada: máquinas, móveis, sapatos, frutas, berços decorados e quinquilharias diversas. Já o bazar, além de roupas coloridas, tem muitas joalherias: os kosovares são historicamente famosos como ourives e conta-se que seu trabalho adornou não poucas coroas europeias.
Peć PatriarchateA cidade tem alguns prédios antigos e bonitos, embora seja preciso sorte para conseguir visitá-los por dentro: mesmo aqueles que supostamente são museus ou espaços públicos ficam fechados e não há indicação sobre horário de abertura ou alguma forma de contato. Mas, quando conseguimos (num centro cultural onde a pessoa responsável nos viu e foi buscar a chave para nos abrir o prédio), fomos tratados com a maior amabilidade possível. Coisa de gente simples e hospitaleira, que mal fala inglês e não sabe onde é o Brasil, mas tem carinho com quem vem de fora. Descobrimos que há uma tentativa incipiente de impulsionar o turismo na cidade, com a criação de um roteiro a pé que permite ver todos os prédios históricos do centro da cidade (mesquitas, um banho turco, um antigo moinho, casas de pedra) - em geral ligados ao passado albanês e turco-otomano de Peja. Significativamente, o ponto mais isolado do roteiro, dois quilômetros fora do centro, é o Patriarcado de Peć. Trata-se do principal ponto de visitação da cidade segundo os guias estrangeiros e um dos maiores pontos de discórdia do conflito sérvio-kosovar. O Patriarcado é a sede espiritual da Igreja Ortodoxa Sérvia, ou seja, guardadas as proporções, Peć/Peja está para os sérvios como o Vaticano para os católicos. Claro que a Sérvia não engoliu bem o fato de a sede do Patriarcado ter ficado em território do Kosovo. A propósito, desde a guerra, o patriarca vive não em Peć mas em Belgrado, numa singular forma de exílio ao contrário.
Para chegar ao Patriarcado, precisamos passar por dois postos de guarda policial (não é fácil ser minoria numa região em litígio), mas a visita é agradável. Não vimos outras pessoas, a não ser umas poucas monjas. Suponho que o local fosse mais frequentado antes de os sérvios terem ido embora (fugido ou expulsos), mas o fato é que agora não há como não sentir a calma e o silêncio que convêm a uma bela igreja medieval.
No final das contas, Peja não seria o que é se também não fosse Peć, e Peć não seria o que é se também não fosse Peja.