domingo, 2 de abril de 2017

Primeiros passos no Kosovo: Peja

Entramos no Kosovo vindos de Montenegro, num ônibus que cruza a fronteira montanhosa dos dois países. A expectativa era grande até mesmo para as formalidades de entrada: como o Brasil não reconhece a independência do Kosovo, a situação diplomática de visitantes brasileiros costumava ser nebulosa (aliás, esse foi um fator que nos fez adiar a decisão de visitar a região). Pois bem, apesar da situação ainda confusa, o Kosovo aparentemente tem hoje a política de receber todos (ou pelo menos os não-sérvios) de braços abertos. Assim, empreendemos a travessia sem maiores contratempos que o estado lamentável de sujeira do ônibus em que viajamos.
Curiosamente, havíamos comprado passagem para Peć e chegamos em Peja. Não é que o motorista tenha se equivocado ou mudado de ideia quanto ao destino; Peć é o nome sérvio da cidade, como ela é conhecida em Montenegro e nas demais regiões eslavas; Peja é o nome albanês. Entrando no Kosovo, logo duas coisas ficam claras: que os kosovares são basicamente de etnia albanesa, e que a língua é o principal elemento distintivo desta etnia. (A propósito, o albanês é bem diferente de qualquer outra língua que eu conhecia, mas é interessante como vai-se familiarizando com ela aos poucos).
Peja não é uma cidade opulenta; pelo contrário, já saindo da rodoviária se vê bastante lixo, cães de rua, camelôs e mendigos. Por outro lado, é uma cidade de tamanho médio em que a vida transcorre normalmente. A cidade fez parte do Império Otomano e a influência turca é bem visível nas mesquitas (a absoluta maioria da população é muçulmana), na arquitetura e na força do comércio. Além do tradicional bazar no centro da cidade, há uma profusão de lojas e todas expõem seus produtos na calçada: máquinas, móveis, sapatos, frutas, berços decorados e quinquilharias diversas. Já o bazar, além de roupas coloridas, tem muitas joalherias: os kosovares são historicamente famosos como ourives e conta-se que seu trabalho adornou não poucas coroas europeias.
Peć PatriarchateA cidade tem alguns prédios antigos e bonitos, embora seja preciso sorte para conseguir visitá-los por dentro: mesmo aqueles que supostamente são museus ou espaços públicos ficam fechados e não há indicação sobre horário de abertura ou alguma forma de contato. Mas, quando conseguimos (num centro cultural onde a pessoa responsável nos viu e foi buscar a chave para nos abrir o prédio), fomos tratados com a maior amabilidade possível. Coisa de gente simples e hospitaleira, que mal fala inglês e não sabe onde é o Brasil, mas tem carinho com quem vem de fora. Descobrimos que há uma tentativa incipiente de impulsionar o turismo na cidade, com a criação de um roteiro a pé que permite ver todos os prédios históricos do centro da cidade (mesquitas, um banho turco, um antigo moinho, casas de pedra) - em geral ligados ao passado albanês e turco-otomano de Peja. Significativamente, o ponto mais isolado do roteiro, dois quilômetros fora do centro, é o Patriarcado de Peć. Trata-se do principal ponto de visitação da cidade segundo os guias estrangeiros e um dos maiores pontos de discórdia do conflito sérvio-kosovar. O Patriarcado é a sede espiritual da Igreja Ortodoxa Sérvia, ou seja, guardadas as proporções, Peć/Peja está para os sérvios como o Vaticano para os católicos. Claro que a Sérvia não engoliu bem o fato de a sede do Patriarcado ter ficado em território do Kosovo. A propósito, desde a guerra, o patriarca vive não em Peć mas em Belgrado, numa singular forma de exílio ao contrário.
Para chegar ao Patriarcado, precisamos passar por dois postos de guarda policial (não é fácil ser minoria numa região em litígio), mas a visita é agradável. Não vimos outras pessoas, a não ser umas poucas monjas. Suponho que o local fosse mais frequentado antes de os sérvios terem ido embora (fugido ou expulsos), mas o fato é que agora não há como não sentir a calma e o silêncio que convêm a uma bela igreja medieval.
No final das contas, Peja não seria o que é se também não fosse Peć, e Peć não seria o que é se também não fosse Peja.

Um comentário:

Renata Teixeira disse...

O Kosovo! Sonho em caminhar pelas ruas do Kosovo desde as aulas de história, tratando da guerra, da geografia e dos conflitos religiosos. O professor de História não contou sobre os ourives kosovares. E hoje, além de um lindo conjunto para enfeitar minhas orelhas, pescoço e mãos, tenho seu nome gravado na minha aliança graças a um kosovar! Que encanto! Peja é uma cidade muito bonita, mesmo com a pouca infraestrutura. Acho que tem um carinho extra por ser o primeiro chão kosovar que meus pés pisaram e por ser a terra da minha única amiga kosovar. Muito fantástico!