Yo tengo pintada en la piel
la lagrima de esta ciudad.
Jorge Drexler
Tenho o péssimo hábito de deixar as coisas mais importantes para depois. Vou me dedicando ao que é menor, mais fácil, explico para mim mesmo que se trata de um aquecimento para o que vem depois... E corro o risco de muito tempo ser tempo demais. Na ânsia de fazer perfeito, acabo não fazendo.
Foi assim com minha crônica sobre Montevidéu. Quando se trata de escrever sobre minhas viagens, não faz sentido eu não falar sobre Montevidéu. E, no entanto, até agora a cidade tem passado quase em branco, alvo de uma ou outra referência, mas não das palavras que eu queria e que ela merecia.
Então me dei conta de que já era hora; vamos à crônica, saia ela do jeito que sair. Certa vez, quando eu era pequeno, a tia Nini me deu dinheiro para que eu comprasse alfajores. Sempre amei alfajores, mas naquele dia morri de medo e vergonha: o que ela queria era que eu fosse sozinho até o mercado e pedisse alfajores, numa cidade que, por mais que já começasse a me soar familiar, não falava a minha língua. Quis recusar, mas ela insistiu para que eu fosse, para que eu não tivesse medo de falar com um montevideano desconhecido ou de falar errado. Acabei comprando os alfajores e ela me abraçou, orgulhosa. Aquela foi minha primeira experiência de negócios em língua estrangeira.
Não, a tia Nini não é minha tia de verdade, mas é como se fosse. É daquelas pessoas que a gente não sabe como qualificar, porque seria pouco chamar de amiga. É a tia Nini, e pronto, quem a conhece não precisa de mais para saber o tamanho do coração por trás dessas letras.
Minhas viagens para Montevidéu, quando eu era criança, aconteciam lá e cá - claro que pegar a estrada era especial, mas igualmente especial era receber os amigos uruguaios na nossa casa brasileira. Quando íamos para Montevidéu, muitas vezes no carnaval (nosso maior feriado, afinal de contas), eu virava as noites ao lado do tio Pepe, assistindo à transmissão em espanhol dos desfiles na Sapucaí. Tio Pepe, fã do futebol uruguaio e do carnaval brasileiro, tão tio quanto a Nini. Ele que me havia tomado nos braços num dia em que eu tive medo de morrer e gritei assustado, tudo porque eu era um guri de uns cinco anos que tropeçara e dera com a cabeça numa quina de pedra, sentia o sangue escorrer e meus pais não estavam por perto. Ali nos conhecemos, eu e o tio Pepe. Ficou na testa minha única cicatriz e no peito, mais indelével ainda, uma amizade.
Quando eles vinham ao Brasil, aproveitávamos para visitar os pontos turísticos do meu estado. Gramado, Canela, algumas praias gaúchas, um minicruzeiro pelo Guaíba... Muito do que conheço do Rio Grande do Sul acabou tendo um sotaque uruguaio. Tive a sorte de passar minha infância num Brasil-Uruguai de fronteiras fluidas.
E o lado de lá acabou ficando quase tão familiar quanto o lado de cá – mas não a ponto de perder o encanto. O tempo e a minha mudança para o Rio de Janeiro ameaçaram me afastar do Uruguai mas, no final das contas, só aumentaram a vontade de voltar. Voltei. O mate uruguaio, os parques da infância, o rio que parece mar (ou será o mar que na verdade é um rio?), as feiras de rua, o doce de leite. O Estádio Centenário, as calçadas centenárias, as árvores às centenas. E as risadas, e os sorrisos, sempre os sorrisos. Mais uma vez, voltarei.