quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

E se o mundo tiver outro aroma além da pólvora?

É inevitável: pensar na Bósnia é pensar na guerra. Admito que pensei muito na guerra. Mesmo ela já tendo terminado há 17 anos, o que é bastante e é pouco.
Cheguei em Sarajevo e os olhos, com um instinto de curiosidade mórbida, começaram a procurar as marcas da guerra. Foi fácil encontrar: prédios com marcas de balas e bombas, outros em ruínas. As pessoas também têm marcas, e não preciso estar em Sarajevo para saber disso.
Mas não vou a Sarajevo por causa de guerra alguma, embora elas às vezes se interponham no caminho (os conflitos, nessa região, dão mais que chuchu). Quero saber o que mais Sarajevo tem, e a primeira coisa que descubro é que tem um povo não apenas simpático como também muito ávido para mostrar o lado alegre de seu país.
São uma simpatia e uma alegria que contagiam. Mais ou menos como quando visitamos um conhecido humilde numa cidade do interior. A Bósnia é aquele primo pobre e de bom coração que nos recebe de um jeito simples, quase ingênuo, mas que cativa mais que toda a ostentação do tio rico. Chego a Sarajevo, nevou bastante nos últimos dias e a neve atrapalha a caminhada, mas o coração se sente aquecido. As mesquitas, as cores e as lojas lembram a Turquia, mas com menos ostentação. É um ar oriental adquirido porque um dia o destino quis assim e os bósnios, humildemente, souberam fazer uma bela limonada do que era para ser um ácido limão (a invasão turca, uma das tantas guerras que ensanguentaram os Bálcãs).
Às vezes me incomoda a fumaça de um cigarro: a Bósnia é aquele primo pobre que fuma o tempo todo, mas de um jeito que dá mais pena que raiva.
A música bósnia é contagiante: soa ao mesmo tempo mais autêntica que a dos turcos e mais original que a de croatas e sérvios. Procuro-a nas rádios e na televisão, vou a uma loja e saio com um punhado de discos.
A comida bósnia segue o mesmo caminho do meio, um meio que vai além. O kebab, como na Turquia, está em toda parte; alguns dos pratos que vejo na Bósnia eu já havia provado na Croácia; outros são novidade, e sou conquistado pelos uštipci, bolinhos tão deliciosos que merecem uma crônica à parte.
Provo uma barra de chocolate bósnio: deixa muito a desejar e me dou conta de que isso era previsível, a marca do chocolate se chama Mikado. Mas fico rindo do nome da marca e termino de comer o chocolate como quem aceita por educação a xícara de café do primo humilde.
Vejo um país de montanhas nevadas que já sediou orgulhosamente uma edição dos Jogos Olímpicos (de Inverno). Que deu ao mundo dois Prêmios Nobel, o que definitivamente não é pouca coisa. Um país de rios humildes como ele mesmo, cativantes como ele mesmo. Sobretudo, de pontes para atravessar os rios. Pontes para ir ao encontro das gentes, nada poderia representar melhor a Bósnia. Um país de encontros, de gentes, de sorrisos, onde o aroma de esperança sempre soube durar mais que o de pólvora.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Sarajevo

Quando puderem, assistam a "In the land of blood and honey" ("U zemlji krvi i meda"). É um filme sobre a Guerra da Bósnia. Não esperem as palhaçadas trágicas de "A vida é bela"; é só mais um filme de guerra. Um filme magnífico. Verdade que, como praticamente qualquer um que se propusesse a mexer numa ferida tão funda e recente como a da Guerra da Bósnia, o filme levanta polêmica. Mas, acima de tudo, faz pensar.
Assisti a ele num cinema de Sarajevo.
Passei toda a sessão sem respirar, o coração apertando a cada cena que a tela mostrava. Guerra, a coisa mais estúpida que pôde ser inventada, aquilo que nos faz sentir vergonha da raça humana. Saí do cinema com vergonha.
E procurando desesperadamente algo de que eu pudesse me orgulhar.
Vi olhos bonitos que olhavam para os meus e mãos macias que tocavam as minhas. Saí para a rua e vi o anoitecer numa Sarajevo linda. Sim, linda. Coberta de neve, cortada por um rio, um rio costurado por pontes, pontes construídas por mãos humanas... Mãos que não sei se eram bósnias, sérvias ou croatas. Mãos muçulmanas ou cristãs, ou talvez agnósticas, ou quem sabe de que outra religião? Uma Sarajevo de gente bonita, de gente simpática, sobretudo de gente que não é tão diferente assim de nós ou de seus vizinhos. Uma Sarajevo de músicas alegres e comidas saborosas - tudo isso também feito por mãos humanas. Assim como o filme que vi - feito por mãos humanas para que algo triste e importante não fosse esquecido, ou para fazer um desabafo como o que minhas mãos escrevem agora. Assistam o filme para se certificarem de que nenhuma guerra é bonita, mas venham a Sarajevo quando puderem para descobrirem que esta cidade e estas pessoas têm, sim, um coração encantador.