domingo, 15 de abril de 2018

Deus e o Diabo na Terra dos Kim

Se tem algo na Coreia do Norte que é realmente marcante, diferente de tudo que já vi em outros lugares, é a relação das pessoas com a história/a política/os governantes. Tudo isso, na verdade, se confunde e se mistura de uma forma que é difícil separar, que dirá explicar. Mas aos poucos, conforme vai se convivendo com os norte-coreanos, a gente começa a perceber algumas semelhanças com certos aspectos da vida comuns no Ocidente...
Guia rápido do "quem é quem" no panteão norte-coreano. Kim Il-Sung, o avô, conhecido como o Grande Líder e Eterno Presidente, é considerado o herói da criação da Coreia do Norte - foi ele quem liderou o país na guerra pela independência e também na Guerra da Coreia. Morreu em 1994 e foi sucedido pelo filho, Kim Jong-Il, o Querido Líder. Quando faleceu, em 2011, quem assumiu foi Kim Jong-Un, o Líder Supremo, neto do primeiro Kim e filho do segundo. Notem que estes dois acumulam uma porção de títulos e de cargos, mas não o de presidente, que é exclusivo (e literalmente "eterno") de Kim Il-Sung, o que faz da Coreia do Norte um país que, oficialmente, tem um presidente fantasma.
Mas não se enganem: nada nem ninguém pode estar mais presente na vida dos norte-coreanos quanto o Grande Líder.
Há, claro, os retratos e estátuas que estão por toda a parte (mas, curiosamente, as representações são apenas dos líderes falecidos, nunca do governante atual). E vai mais além: na ideologia Juche (que foi criada e disseminada por Kim Il-Sung), nos jornais e na televisão, nas anedotas que se conta... E sobretudo no tom solene e respeitoso quando se fala de qualquer um dos líderes. Para quem é de fora, como nós, é difícil entender exatamente a motivação desse culto aos líderes - devoção sincera, costume, medo? Talvez um pouco de tudo isso. Fomos ver as estátuas de Kim Il-Sung e Kim Jong-Il em Pyongyang. Chegando lá, em tom de respeito, uns tantos casais de noivos depositavam flores e tiravam fotos - não muito diferente da postura de noivos ocidentais que fossem pedir a bênção a seu santo de devoção.
Reparamos que nossas guias (que de hábito já costumavam andar bem arrumadas), quando o roteiro incluía algum lugar relacionado aos líderes, caprichavam ainda mais na elegância.
Um desses lugares é a Exposição Internacional da Amizade (pausa para absorver o significado desse nome). Trata-se de um grande museu que contém os presentes recebidos por cada um dos líderes ao longo de sua vida. Para quem não sabe, é um costume diplomático que representantes de governos troquem presentes entre si. Nesse museu, tais presentes são exibidos com orgulho. Acontece que a coisa toda acaba parecendo um tanto surreal. Alguns dos itens de maior destaque lá são, claro, doações de países historicamente alinhados com a Coreia do Norte - assim, presentes de "gente boa" como Stalin e Mao Tse Tung são expostos com orgulho. Mas não se enganem, praticamente o mundo inteiro está representado, de presidentes estadunidenses ao embaixador do Brasil em Pyongyang. Os presentes vão desde carros, vagões e aviões inteiros (oferecidos por alguns dos grandes ditadores que nosso planeta já teve) até um quadrinho do Ceará (cortesia do nosso diligente embaixador). E chama a atenção a quantidade de presentes, digamos, politicamente incorretos: peles de ursos, um trono feito de chifres de veados, uma indescritível mesa de apoio na forma de um jacaré empalhado que segura uma bandeja com copos (procurem no Google e encontrarão fotos). A impressão que fica é de que quanto mais notório o ofertante na escala de crimes presumidos contra a humanidade, maior o número de animais mortos na confecção do presente. Saímos da Exposição sem dizer palavra.
Mas nada, nada mesmo, poderia ter nos preparado para a visita ao Palácio do Sol (um jogo de palavras com o próprio nome Il-Sung que, dizem, pode ser traduzido como "o sol"). Este palácio é um prédio incrivelmente imponente que, após a morte do Grande Líder, foi transformado em mausoléu. O lugar hoje abriga os corpos embalsamados de Kim Il-Sung e Kim Jong-Il, que são o ponto focal de uma contínua peregrinação ritual de incontáveis coreanos. O que se vê lá dentro, além dos corpos propriamente ditos, de retratos e de objetos usados pelos líderes quando em vida, são filas e filas de pessoas chorando, com os olhos cheios de lágrimas que só podem ser sinceras (ainda que incompreensíveis para muitos estrangeiros). Como disse nossa impecável guia: "já vim aqui muitas vezes, mas sempre me emociono". De uma certa forma, também saímos profundamente tocados, ainda que por motivos diferentes dos dela. O meu preconceito a respeito da Coreia do Norte tinha me preparado para encontrar um culto à personalidade ímpar, mas não me preparou para testemunhar essa singular forma de religião.

sábado, 7 de abril de 2018

Muito além do kimchi: comida na Coreia

É tentadora a imagem de que a Coreia do Norte e a do Sul são "dois irmãos brigados". Porém, embora razoável até certo ponto, ela me parece uma simplificação perigosa. Eu não diria que há exatamente uma briga entre os coreanos do norte e do sul; em vez disso, o clima lá me pareceu mais de desconfiança, isso sim; de dois irmãos que, por circunstâncias da vida, ficaram anos sem se falar e agora não sabem mais como puxar assunto numa conversa.
Mas o fato é que, apesar disso e dos que dizem o contrário, têm o mesmo sangue e a mesma criação: compartilham a língua, a história, a paisagem, o clima, o tipo de comida. O que nos leva a esse assunto: o que comemos por lá. Confesso que minha expectativa com a comida coreana era bastante baixa: as descrições de pratos que eu achava na Internet não chamavam a atenção e a minha experiência anterior com comida na vizinha China, muito menos.
Acabei me surpreendendo enormemente, a tal ponto que voltei para o Brasil com saudade da comida de lá e voltaria feliz a qualquer um dos restaurantes que visitamos.
Verdade que na Coreia do Sul, a princípio, foi difícil encontrar o caminho das pedras - dos pratos, no caso. A oferta é muita, variada e numa língua pouco amigável. Mas, à medida que ia me familiarizando, descobria que a comida coreana não era nenhum bicho de sete cabeças. Havia opções para praticamente todos os gostos, era em geral menos apimentada que o previsto e, sempre, muito saborosa. De quebra, descobrimos em Seul alguns restaurantes no estilo bufê livre. Uma maneira excelente para provar de uma vez várias das possibilidades da cozinha coreana! De fato, em pelo menos uma ocasião saímos do restaurante rolando de tão cheios.
Kimchi (espécie de acelga em conserva) é onipresente, mas é mais um acompanhamento que um prato propriamente dito. Sopas são comuns. As panquecas coreanas, em suas diferentes variações, são deliciosas. Massas são abundantes e de todos os tipos, não só de trigo. Chás acompanham a maioria das refeições, mas também são feitos de cereais variados e só raramente encontramos um sabor igual aos que estamos acostumados.
Na Coreia do Norte, curiosamente, a alimentação foi bem mais simples. Primeiro porque, já tendo passado por um "estágio" do sul, sabíamos um pouco melhor o que esperar. E principalmente porque nossas guias não mediam esforços para nos proporcionar experiências fantásticas. Em cada uma das nossas refeições norte-coreanas, uma coisa era certa: a quantidade de comida era sempre demasiada. A comida vem à mesa em pequenas vasilhas, cada uma com um preparo; quando se vê, a mesa está cheia de potinhos cada um com com arroz, sopa, kimchi, repolho, ovos, massa, carne, panqueca, tofu ou alguma outra coisa... Às vezes é difícil adivinhar a sequência ou a quantidade de pratos. Mais de uma vez nos saciamos apenas com a entrada, sem saber que outros tantos pratos ainda estavam por vir...
No final das contas, as refeições menos memoráveis foram as que fizemos no restaurante de algum hotel: estas tendiam a ser servidas num ambiente mais nobre, mas ficavam devendo um pouco do sabor e da variedade dos lugares mais simples. Por outro lado, uma dúvida que eu sempre tinha era: o quão parecido estas refeições seriam da comida norte-coreana do dia-a-dia. Meu palpite é que o grau de semelhança é tanto quanto o de um restaurante brasileiro com a nossa comida caseira: um almoço comum no Brasil dificilmente será tão variado ou tão bem apresentado quanto o de um restaurante (digamos, uma churrascaria), mas a ideia dos pratos possíveis em casa é a mesma dos que poderíamos encontrar na rua. O mesmo acho que vale para uma refeição típica de Pyongyang e algumas das comidas que provamos por lá.
Um bônus adicional desses momentos era que se tratava de ocasiões em que conversávamos e interagíamos mais à vontade com nossas guias e nosso motorista. Uma experiência que não tem preço!
Quanto aos pratos propriamente ditos... Eram tantos e tão diferentes que é difícil deter-se explicando todos. Talvez um dos mais emblemáticos, tanto no sul quanto no norte, seja o bibimbap: arroz com legumes, tempero e eventualmente um ovo. A particularidade é que a comida vem toda separada num grande prato e cabe à própria pessoa misturar todos os ingredientes. Aliás, parece que esse tipo de solução, que requer algum "preparo" à mesa, é bastante comum. Outro exemplo é um tipo de hot pot coreano, uma sopa em que os ingredientes todos são cozidos na nossa frente. Para fazer um assado, a mesma coisa: a carne chega crua à mesa e é assada numa grelha ali mesmo. Aliás, esses restaurantes nos proporcionaram risadas impagáveis: certo dia, Lee, a guia, anunciou que o almoço seria num restaurante especializado em frango - chicken. Como a Renata é vegetariana, Lee logo completou: e baby chicken. Por baby chicken, entenda-se ovo de galinha... Não houve como não rir. Noutro dia, haveria pato assado (duck) no jantar; para ela, baby duck...
Outro prato surpreendente é o naengmyeon, que dizem ser típico de Pyongyang. Em inglês: cold noodles. Bem, poucas coisas parecem menos animadoras que um prato de espaguete frio; mas a receita coreana superou todas as minhas expectativas e se mostrou bastante apetitosa, mesmo para um dia de inverno. É uma sopa com uma massa fina e comprida e diferentes vegetais, com um tempero levemente ácido e apimentado. É, como outras, uma comida finalizada pela própria pessoa imediatamente antes de comer, que se encarrega de temperar e misturar os ingredientes no prato.
Pode ser difícil de acreditar, mas não tem como não ficar com água na boca falando disso tudo!




quarta-feira, 4 de abril de 2018

Tão perto e tão longe: a fronteira entre as duas Coreias

A península da Coreia é cheia de contradições, e talvez a maior delas seja exatamente a fronteira que a divide ao meio.
Monumento à Reunificação da Coreia
Quando a Guerra da Coreia terminou, com a assinatura de um cessar-fogo em 1953, a península ficou dividida por uma faixa de quatro quilômetros de largura nas proximidades do paralelo 38. Na tentativa de evitar futuros conflitos, acordou-se que armas não seriam permitidas nessa região, que passou a ser chamada de Zona Desmilitarizada.
A questão é que o entorno dessa região pode ser qualquer coisa, menos desmilitarizado. Nunca estive num lugar que exalasse tanta tensão, medo e guerra. Ao mesmo tempo, há ali um silêncio, uma calma, uma natureza surreal. Bicho estranho é o ser humano.
Apesar da atmosfera gritantemente bélica, visitas à Zona Desmilitarizada de alguma forma se tornaram passeios turísticos acessíveis dos dois lados da fronteira. De quebra, cada lado aproveita para contar sua versão da história - uma radicalmente diferente da outra. Tentar conhecer ambos os lados e encontrar um meio termo é um exercício bastante esclarecedor. Por exemplo: os números variam, mas é quase certo que o contingente militar dos Estados Unidos na Guerra foi maior do que o das forças tanto norte- quanto sul-coreanas. Ou seja, fica claro que não se tratava simplesmente de uma briga entre os coreanos dos dois lados. Ainda hoje, a propósito, os Estados Unidos mantém uma força nada desprezível na Coreia do Sul. O que faz pensar que o negócio da guerra (e do medo) deve ser bastante lucrativo para eles (tivemos contato com um desses soldados estadunidenses na Coreia do Sul, que aliás nos passou a perna, induzindo-nos a pagar por uma corrida de táxi que deveria ter sido dividida).
Bem, nós visitamos a Zona Desmilitarizada pelo norte, saindo de Pyongyang. Na estrada que leva à fronteira fica o Monumento à Reunificação da Coreia. Por mais que a questão da unificação seja explorada de forma política por todos os envolvidos e intrometidos, o monumento em si é muito bonito, assim como a causa por trás dele. Afinal, embora nenhuma união se faça facilmente, como sabem todos os casais, é confortante que alguém pense em reunificação enquanto tanta gente no mundo pensa em separatismo.
À medida que a estrada (chamada Estrada da Reunificação, que tem placas marcando a distância até Seul) se aproxima da fronteira, começam a surgir postos de controle militar. Chegando ao limite da Zona Desmilitarizada, o clima é de um quartel em prontidão. Um militar norte-coreano sobe na van onde estamos eu, a Renata, as duas guias norte-coreanas e o motorista. Não consigo achar agradável esse clima, e a apreensão disputa espaço com o fascínio por estar nesse lugar exclusivo.
Interior da Zona Desmilitarizada
A van segue por uma pista estreita entre fortes muros e barreiras antitanques até o interior da Zona Desmilitarizada - vamos em direção ao local onde foram feitas as negociações de paz durante a Guerra e que é, hoje, o único ponto onde as Coreias do Norte e do Sul "se tocam" de fato - ou quase isso. No caminho, o soldado começa a falar sobre a Zona Desmilitarizada, contar histórias e conversar. Vamos facilmente nos afeiçoando a ele - por baixo da solenidade do uniforme há com certeza uma rapaz simples, de sorriso largo e cheio de curiosidade sobre o mundo exterior. Ao chegar, ele nos apresenta o local onde foi assinado o armistício e que é hoje um museu no lado norte-coreano. 
"You are not machines (...), you have the love of
humanity in your hearts." (The Great Ditactor, Chaplin)
Logo adiante está a fronteira propriamente dita, marcada por uma linha de tijolos na metade da Zona Desmilitarizada. Há alguns barracões colocados precisamente sobre esta linha. Do lado de cá, soldados norte-coreanos montam guarda; do lado de lá, soldados estadunidenses e sul-coreanos montam guarda. Do lado de cá, um prédio norte-coreano virado para o sul; do lado de lá, um prédio sul-coreano virado para o norte. Tudo em simetria.
Ainda iríamos andar por uns bons minutos, até um posto de observação no alto de uma colina a alguns quilômetros dali. Desse posto, com a ajuda de binóculos, avista-se o muro, construído no lado sul, que ajuda a separar a península. A Estrada da Reunificação obviamente não atravessa a fronteira. O ser humano é um bicho estranho.
No final, o militar sorridente que nos acompanhou se ofereceu para tirar fotos conosco. Abraçamo-nos. Naquele lugar carregado, parece que de alguma forma o uniforme não pesava mais. Aquele olhar e aquele sorriso me impressionaram mais que os muros e as cercas. Ah, o ser humano.