Se tem algo na Coreia do Norte que é realmente marcante, diferente de tudo que já vi em outros lugares, é a relação das pessoas com a história/a política/os governantes. Tudo isso, na verdade, se confunde e se mistura de uma forma que é difícil separar, que dirá explicar. Mas aos poucos, conforme vai se convivendo com os norte-coreanos, a gente começa a perceber algumas semelhanças com certos aspectos da vida comuns no Ocidente...
Guia rápido do "quem é quem" no panteão norte-coreano. Kim Il-Sung, o avô, conhecido como o Grande Líder e Eterno Presidente, é considerado o herói da criação da Coreia do Norte - foi ele quem liderou o país na guerra pela independência e também na Guerra da Coreia. Morreu em 1994 e foi sucedido pelo filho, Kim Jong-Il, o Querido Líder. Quando faleceu, em 2011, quem assumiu foi Kim Jong-Un, o Líder Supremo, neto do primeiro Kim e filho do segundo. Notem que estes dois acumulam uma porção de títulos e de cargos, mas não o de presidente, que é exclusivo (e literalmente "eterno") de Kim Il-Sung, o que faz da Coreia do Norte um país que, oficialmente, tem um presidente fantasma.
Mas não se enganem: nada nem ninguém pode estar mais presente na vida dos norte-coreanos quanto o Grande Líder.
Há, claro, os retratos e estátuas que estão por toda a parte (mas, curiosamente, as representações são apenas dos líderes falecidos, nunca do governante atual). E vai mais além: na ideologia Juche (que foi criada e disseminada por Kim Il-Sung), nos jornais e na televisão, nas anedotas que se conta... E sobretudo no tom solene e respeitoso quando se fala de qualquer um dos líderes. Para quem é de fora, como nós, é difícil entender exatamente a motivação desse culto aos líderes - devoção sincera, costume, medo? Talvez um pouco de tudo isso. Fomos ver as estátuas de Kim Il-Sung e Kim Jong-Il em Pyongyang. Chegando lá, em tom de respeito, uns tantos casais de noivos depositavam flores e tiravam fotos - não muito diferente da postura de noivos ocidentais que fossem pedir a bênção a seu santo de devoção.
Reparamos que nossas guias (que de hábito já costumavam andar bem arrumadas), quando o roteiro incluía algum lugar relacionado aos líderes, caprichavam ainda mais na elegância.
Um desses lugares é a Exposição Internacional da Amizade (pausa para absorver o significado desse nome). Trata-se de um grande museu que contém os presentes recebidos por cada um dos líderes ao longo de sua vida. Para quem não sabe, é um costume diplomático que representantes de governos troquem presentes entre si. Nesse museu, tais presentes são exibidos com orgulho. Acontece que a coisa toda acaba parecendo um tanto surreal. Alguns dos itens de maior destaque lá são, claro, doações de países historicamente alinhados com a Coreia do Norte - assim, presentes de "gente boa" como Stalin e Mao Tse Tung são expostos com orgulho. Mas não se enganem, praticamente o mundo inteiro está representado, de presidentes estadunidenses ao embaixador do Brasil em Pyongyang. Os presentes vão desde carros, vagões e aviões inteiros (oferecidos por alguns dos grandes ditadores que nosso planeta já teve) até um quadrinho do Ceará (cortesia do nosso diligente embaixador). E chama a atenção a quantidade de presentes, digamos, politicamente incorretos: peles de ursos, um trono feito de chifres de veados, uma indescritível mesa de apoio na forma de um jacaré empalhado que segura uma bandeja com copos (procurem no Google e encontrarão fotos). A impressão que fica é de que quanto mais notório o ofertante na escala de crimes presumidos contra a humanidade, maior o número de animais mortos na confecção do presente. Saímos da Exposição sem dizer palavra.
Mas nada, nada mesmo, poderia ter nos preparado para a visita ao Palácio do Sol (um jogo de palavras com o próprio nome Il-Sung que, dizem, pode ser traduzido como "o sol"). Este palácio é um prédio incrivelmente imponente que, após a morte do Grande Líder, foi transformado em mausoléu. O lugar hoje abriga os corpos embalsamados de Kim Il-Sung e Kim Jong-Il, que são o ponto focal de uma contínua peregrinação ritual de incontáveis coreanos. O que se vê lá dentro, além dos corpos propriamente ditos, de retratos e de objetos usados pelos líderes quando em vida, são filas e filas de pessoas chorando, com os olhos cheios de lágrimas que só podem ser sinceras (ainda que incompreensíveis para muitos estrangeiros). Como disse nossa impecável guia: "já vim aqui muitas vezes, mas sempre me emociono". De uma certa forma, também saímos profundamente tocados, ainda que por motivos diferentes dos dela. O meu preconceito a respeito da Coreia do Norte tinha me preparado para encontrar um culto à personalidade ímpar, mas não me preparou para testemunhar essa singular forma de religião.