sábado, 31 de março de 2018

Um dia como outro qualquer em Pyongyang

Uma das primeiras coisas que chamam a atenção na capital da Coreia do Norte é o quanto a vida ali é surpreendentemente normal. Chega a ser estranho dizer isso, não? Mas o fato é que sabemos tão pouco sobre os norte-coreanos que desembarcamos no país cheios de curiosidade sobre as coisas mais básicas.
Um passeio em Pyongyang pode começar pela Praça Kim Il Sung, o coração da cidade e um dos muitos logradouros nomeados em honra do Grande Líder e Eterno Presidente da Coreia do Norte. Bem perto dali fica uma das estações do metrô. Sim, Pyongyang tem metrô - são duas linhas e um total de 16 estações. Dizem que é o metrô mais profundo do mundo (de fato, é uma longa descida em escada-rolante) e que isso daria a ele a qualidade adicional de abrigo contra um eventual ataque aéreo. Os trens são relativamente antigos, mas bonitos e perfeitamente funcionais. Agora, o que chama a atenção mesmo são as estações: decoradas com esmero, são simplesmente lindas. Em geral, têm grandes murais com imagens celebrando algum aspecto da história do país ou da vida dos líderes (nem sempre é possível separar essas duas coisas na concepção oficial norte-coreana). São notáveis também os elaborados lustres, estátuas dos líderes e, na plataforma de cada estação, exemplares do jornal do dia à disposição de quem passa.
Do outro lado da mesma praça fica a Grande Casa de Estudos do Povo - uma biblioteca não menos imponente que o seu nome. Ao visitá-la, fomos recebidos com um grau de atenção quase inimaginável. Uma mocinha, que devia estar tão curiosa a nosso respeito quanto nós estávamos dela, percorreu conosco várias salas, explicando o propósito de cada uma e nos apresentando parte do acervo em português da biblioteca - alguns livros editados em Portugal e um CD de música brasileira. O lugar é, na verdade, mais do que uma biblioteca. Tem um grande auditório, espaços de trabalho e salas de aula onde são ministradas lições de línguas estrangeiras - durante nossa visita, pudemos presenciar uma aula de inglês e outra de chinês.
Saindo da biblioteca e andando pela rua, pode-se observar melhor a cidade. E ela é realmente bonita. Os espaços são amplos e os prédios são atraentes e coloridos. Vê-se sempre muita gente caminhando nas calçadas, algumas pessoas nas paradas de ônibus ou trólebus, outras de bicicleta. Aliás, como outras cidades ao redor do mundo, Pyongyang possui um sistema de compartilhamento de bicicletas.
Nas ruas, o que se destaca são os murais e cartazes de propaganda. Propaganda há em praticamente todos os lugares do mundo, óbvio.  A da Coreia do Norte, porém, possui algumas particularidades. Em primeiro lugar, claro, a inconfundível estética do realismo socialista. Em segundo lugar, os temas: excetuando-se um único outdoor de propaganda da marca de carros norte-coreana (Pyeonghwa), todos os cartazes que vi tratavam de exaltar as realizações do povo coreano, conquistas militares, mensagens ideológicas ou o carisma dos líderes. Além disso, chegando mais perto, percebe-se um terceiro ponto: a maioria dessas obras não são simples cartazes impressos como os que estamos acostumados a ver. São grandes mosaicos de azulejos ou pinturas feitas a mão, verdadeiras obras de arte. Fascinante. Numa ocasião, encontramos por acaso um artista a pintar um destes cartazes. O trabalho, lindo, já estava avançado, e naturalmente eu quis tirar uma foto. Apesar de os norte-coreanos serem normalmente bem tranquilos quanto a fotos, o rapaz (para minha tristeza) pediu que eu não fotografasse o trabalho inacabado. Acrescentou que não haveria problema em registrar a obra depois de pronta - mas eu não teria essa oportunidade.
E assim segue a vida em Pyongyang. A cidade também não está alheia ao comércio do dia-a-dia, embora o consumismo desenfreado (ainda bem) seja algo distante. Nossas guias faziam uso frequente do telefone celular, da mesma forma que pessoas de qualquer outro país. Nas ruas, veem-se alguns quiosques de comida e bebida. Aqui e ali, alguma loja. E tivemos a oportunidade de entrar em um grande supermercado, tão parecido com os nossos quanto se pode esperar de um supermercado asiático. Nas prateleiras, produtos norte-coreanos e alguns importados da China e de outros lugares da Ásia. Pessoas fazendo compras e pagando em dinheiro ou em cartão. Nesse gesto, aliás, desfaziam sem saber outra concepção equivocada que tínhamos: não é verdade que não haja cartão de crédito na Coreia do Norte, como não é verdade que não haja celulares ou internet; acontece é que eles usam sistemas diferentes dos nossos. Pensando bem, não era mesmo de se esperar que as bandeiras estadunidenses Visa ou Mastercard circulassem por lá. Tudo bem, pagamos em dinheiro mesmo e saímos com nossas compras: itens como chás, chocolates e uma lata de bolachas que, como tudo o mais, ajudaria a compor o mosaico desse país que, para nós, passava a ser cada vez menos misterioso e cada vez mais fascinante.

3 comentários:

Renata Teixeira disse...

Eu fiquei com muita vergonha dos preconceitos que levei à Coreia do Norte. Fui capaz de julgar todo um país por apenas três pessoas que “conhecia” de lá: seus administradores. Imagina qual será o julgamento do mundo sobre mim se considerarem meus governantes. Melhor nem pensar. O passeio de metrô foi muito gostoso. As estações lembram, descontando o tamanho, claro, as estações de metrô de Moscou: ricamente decoradas, um espetáculo aos passageiros. Foi muito estranho não ter que me preocupar com furtos e simplesmente deixar a bolsa nas costas. A biblioteca foi um encanto! Toda a visita preparada para nos receber. Quando visitei a Library of Congress, eles fizeram a mesma coisa: se prepararam para nos receber, com exemplares em português e com material sobre a indústria de petróleo. Quero aprender a receber visitantes como em essas duas experiências.
Sim, há muita arte nas ruas da Coreia do Norte e impressiona o fato de serem manuais. São tão lindas (eu não gosto da exaltação aos governantes estejam vivos ou mortos, mas descontando isso, são obras de arte muito bonitas) que eu tinha dificuldade de acreditar que não eram imagens plotadas.
Foram muitos preconceitos desfeitos e muito carinho dado e recebido. Viajar é mesmo maravilhoso!

rejane disse...

Fiquei querendo saber de que músicas brasileiras era o CD!

Eduardo Trindade disse...

Exatamente: as pessoas adoram julgar o que não conhecem, mas imagina um povo inteiro ser julgado com base em uma única pessoa!
Pyongyang é uma cidade bem mais bonita e colorida do que eu pensava. Fiquei encantado.
O que ouvimos lá era um CD com clássicos da música nordestina, como Luiz Gonzaga, Dorival Caymmi e outros. Mas teve outro dia em que estávamos mostrando músicas brasileiras para as nossas guias e uma delas conhecia “La Bella Luna”, dos Paralamas!