Como apaixonado pela minha cidade natal, eu estava devendo uma
carta sobre Porto Alegre. Afinal, apesar de já ter escrito sobre ela em
outros espaços, minhas
botas de tantas léguas ainda não haviam palmilhado o solo porto-alegrense como deveriam. Pois qualquer viagem, por mais longa que seja, começa sempre no ponto de partida, não é? Vamos, então, a Porto Alegre.
Como escrever sobre Porto Alegre? O que destacar, quais lembranças despertar, que foco e que lente usar? A resposta é difícil para quem tem tanto da cidade nas veias. Mas é preciso escolher por onde começar, e eu escolho a música.
Porto Alegre tem algumas canções muito emblemáticas, não tanto pelo ritmo em si, mas principalmente pelas letras, pela forma apaixonada, lírica e às vezes ingênua de evocar a si mesma. São canções que estão na ponta da língua de qualquer porto-alegrense, que são orgulhosamente repetidas no aniversário da cidade, no aniversário farroupilha, nas festas de final-de-ano, em qualquer ocasião. E são canções que tocam particularmente fundo em quem, tendo nascido e vivido lá, mora longe da cidade dos jacarandás. É o meu caso.
A primeira destas canções é Horizontes, de Flávio Bicca. Flávio é ator e a canção surgiu na década de 1980 como parte de uma peça de teatro chamada Bailei na curva, que ainda hoje faz bastante sucesso no estado. Horizontes tem um forte fundo político e a menção à cidade oscila entre o saudosismo, um certo desconforto e uma esperança. Tornou-se o hino extra-oficial de Porto Alegre. Como pode? A canção evoca temas caros a nós, gaúchos da capital: o cotidiano de uma cidade que, oscilando entre um lado provinciano e outro cosmopolita, cresce e se transforma. Não está imune aos percalços do tempo, mas sabe afirmar com convicção: “não vou me perder por aí”. Assume com orgulho sua identidade, como qualquer porto-alegrense.
Deu pra ti, da dupla
Kleiton & Kledir, exala Porto Alegre por todos os poros. A ponto de não ser facilmente compreendida pelos forasteiros. “Deu pra ti”? É a forma consagrada que temos de falar, com toda a propriedade, que “chegou, que o cara pode cair fora, pode tirar o cavalo da chuva, não faz mais sentido continuar o que vinha fazendo, já foi suficiente a demonstração de sua inoportunidade ou incompetência” – nada melhor que o
Dicionário de Porto-Alegrês do
Luís Augusto Fischer para explicar. Então o que Kleiton & Kledir proclamam, e não poderiam fazer melhor, é o sonho de todo desgarrado do pago: “Deu pra ti, baixo astral, vou pra Porto Alegre, tchau!”
E um passeio musical pela minha terra só pode terminar de maneira exaltada:
Porto Alegre é demais é o que escreveu
José Fogaça para sua mulher Isabela cantar. Acabamos todos os gaúchos cantando juntos. Afinal, a escala musical completa ainda é pequena quando se canta a saudade da terra natal. Saudade assim não se esgota: apenas dá uma trégua quando volto, quando revejo enfim o rio Guaíba e a cidade que ele banha. Não tem jeito: “é lá que eu vivo em paz”.