segunda-feira, 19 de março de 2012

Então eu fui comprar alfajores

Yo tengo pintada en la piel
la lagrima de esta ciudad.

Jorge Drexler
Tenho o péssimo hábito de deixar as coisas mais importantes para depois. Vou me dedicando ao que é menor, mais fácil, explico para mim mesmo que se trata de um aquecimento para o que vem depois... E corro o risco de muito tempo ser tempo demais. Na ânsia de fazer perfeito, acabo não fazendo.
Foi assim com minha crônica sobre Montevidéu. Quando se trata de escrever sobre minhas viagens, não faz sentido eu não falar sobre Montevidéu. E, no entanto, até agora a cidade tem passado quase em branco, alvo de uma ou outra referência, mas não das palavras que eu queria e que ela merecia.
Então me dei conta de que já era hora; vamos à crônica, saia ela do jeito que sair. Certa vez, quando eu era pequeno, a tia Nini me deu dinheiro para que eu comprasse alfajores. Sempre amei alfajores, mas naquele dia morri de medo e vergonha: o que ela queria era que eu fosse sozinho até o mercado e pedisse alfajores, numa cidade que, por mais que já começasse a me soar familiar, não falava a minha língua. Quis recusar, mas ela insistiu para que eu fosse, para que eu não tivesse medo de falar com um montevideano desconhecido ou de falar errado. Acabei comprando os alfajores e ela me abraçou, orgulhosa. Aquela foi minha primeira experiência de negócios em língua estrangeira.
Não, a tia Nini não é minha tia de verdade, mas é como se fosse. É daquelas pessoas que a gente não sabe como qualificar, porque seria pouco chamar de amiga. É a tia Nini, e pronto, quem a conhece não precisa de mais para saber o tamanho do coração por trás dessas letras.
Minhas viagens para Montevidéu, quando eu era criança, aconteciam lá e cá - claro que pegar a estrada era especial, mas igualmente especial era receber os amigos uruguaios na nossa casa brasileira. Quando íamos para Montevidéu, muitas vezes no carnaval (nosso maior feriado, afinal de contas), eu virava as noites ao lado do tio Pepe, assistindo à transmissão em espanhol dos desfiles na Sapucaí. Tio Pepe, fã do futebol uruguaio e do carnaval brasileiro, tão tio quanto a Nini. Ele que me havia tomado nos braços num dia em que eu tive medo de morrer e gritei assustado, tudo porque eu era um guri de uns cinco anos que tropeçara e dera com a cabeça numa quina de pedra, sentia o sangue escorrer e meus pais não estavam por perto. Ali nos conhecemos, eu e o tio Pepe. Ficou na testa minha única cicatriz e no peito, mais indelével ainda, uma amizade.
Quando eles vinham ao Brasil, aproveitávamos para visitar os pontos turísticos do meu estado. Gramado, Canela, algumas praias gaúchas, um minicruzeiro pelo Guaíba... Muito do que conheço do Rio Grande do Sul acabou tendo um sotaque uruguaio. Tive a sorte de passar minha infância num Brasil-Uruguai de fronteiras fluidas.
E o lado de lá acabou ficando quase tão familiar quanto o lado de cá – mas não a ponto de perder o encanto. O tempo e a minha mudança para o Rio de Janeiro ameaçaram me afastar do Uruguai mas, no final das contas, só aumentaram a vontade de voltar. Voltei. O mate uruguaio, os parques da infância, o rio que parece mar (ou será o mar que na verdade é um rio?), as feiras de rua, o doce de leite. O Estádio Centenário, as calçadas centenárias, as árvores às centenas. E as risadas, e os sorrisos, sempre os sorrisos. Mais uma vez, voltarei.

domingo, 11 de março de 2012

Little rain cakes

Uma das primeiras coisas que fizemos em Sarajevo, depois de instalados em nossa pousada, foi sair para dar uma volta e procurar um lugar onde comer. Ainda era cedo para o jantar, mas já passara bastante do meio-dia e não tínhamos almoçado.
Encontramos um restaurante pequeno (não mais que quatro ou cinco mesas), aconchegante e vazio (consequência tanto do horário quanto da época do ano). O cardápio oferecia opções que instigavam, eu já sentia água na boca e estava ansioso para provar a culinária bósnia. Concentrei-me naturalmente na página que listava as especialidades locais. Ali, havia uma opção que dizia (em inglês) doughnuts com queijo, achamos que seriam uma boa aposta para entrada ou acompanhamento. Fizemos nosso pedido incluindo os tais doughnuts, mesmo sem saber exatamente como seriam.
Quando chegou a comida, descobrimos que os doughnuts eram uma espécie de versão balcânica dos brasileiríssimos bolinhos de chuva, porém na forma de um aperitivo servido com um tipo de cream cheese. Deliciosos. Os outros pratos também estavam excelentes, assim como o clima do ambiente, mas sem dúvida os doughnuts roubaram a cena. A essa altura, já não tínhamos nas mãos o cardápio, mas ficamos tratando de fazer associações; eu não lembrava do nome bósnio daquele prato, mas sugeri que doughnut poderia ser talvez uma tradução literal. Comentamos casos engraçados em que tínhamos visto isso acontecer (um restaurante carioca que traduzia contrafilé como against-fillet...) e então saiu: "Fosse no Brasil, o nome disso seria rain cake. Aliás, little rain cake". Bolinho de chuva, little rain cake. Perfeito! Rimos um bocado, saciamo-nos, saímos de lá extasiados.
Dias depois, em Mostar, fomos a outro restaurante e lembramos de procurar little rain cakes no cardápio. Não esperávamos que estivessem com o mesmo nome de doughnuts, mas o cardápio tinha fotos dos pratos, o que facilitava nossa vida, e lá estavam eles, os little rain cakes! Em bósnio, uštipci. Pois então: garçom, uštipci! Estavam ainda melhores que os de Sarajevo, e era uma porção bastante farta (dez bolinhos para nós dois, e se tratava apenas da entrada!) com queijo até não poder mais. Foram little rain cakes antológicos (o nome já tinha pegado).
No dia seguinte, de volta a Sarajevo, tínhamos uma ideia fixa: o lugar que escolhêssemos para almoçar teria de servir little rain cakes. Um problema: havíamos, mais uma vez, esquecido o nome bósnio da iguaria. Mas não me fiz de rogado. Num lugar que anunciava algo suspeito de se parecer com os little rain cakes, eu parava e perguntava - mas eram apenas hambúrgueres. Noutro, chegamos a sentar, chamei o garçom e usei toda meu conhecimento linguístico para descrever, em bósnio, os little rain cakes e perguntar se eles tinham algo parecido. O garçom ficou um tanto em dúvida, por esse e por outros motivos (o cardápio de maneira geral não tinha nos agradado) saímos e fomos tentar a sorte noutro lugar. Caminhamos bastante, já tínhamos fome e os restaurantes pareciam se esconder de nós, até que dei de cara com uma placa em que reconheci logo a palavra mágica: uštipci! Entramos, sentamo-nos e fomos direto ao ponto. Desta vez, os bolinhos só não estavam melhores porque a porção era pequena (isto é, menor que a de Mostar). Como a oferta de queijo, neste e nos outros lugares, era sempre farta, brincamos que os bósnios calculavam mal: os bolinhos que traziam eram poucos para aquele tanto de queijo! Mas a verdade é que nos fartávamos, ainda mais quando nos lembrávamos de que, nos botecos do Brasil, não é raro servirem "porções" de apenas duas ou três unidades. O que tínhamos pela frente era little rain cakes para toda uma família! E, sendo só nós dois e só uma entrada, devorávamos todos sem dó.
A essa altura, os restaurantes bósnios devem estar sentindo falta dos gulosos brasileiros. Nós só não sentimos mais falta deles porque, bem, ontem mesmo eu fiz little rain cakes - digo, uštipci - aqui em casa. Ficaram bons, mas é verdade que precisam ser aprimorados. Não tenho muita experiência em fazer bolinhos de chuva, que dirá uštipci. Mas não chega a ser um problema: sempre é bom ter um motivo para praticar este tipo de coisa, não é mesmo?